Sob a luz feroz do teu rosto
Amar um leão usa-se pouco,
porque não pode afagá-lo
o nosso desejo de afagá-lo,
como tantas vezes cão ou gato
aceitam-nos a mão a deslizar
sobre seu pêlo;
amar um leão não se devia,
agora que já não somos divinos,
quando a flauta que tudo
encantaria, gentes animais
pedras, nós a quebramos contra
a ventania; amar
um leão é só distância: tê-lo ao lado,
não poder beijá-lo, o deserto
que habita em torno dele;
era mais certo amar um barco,
era mais fácil amar um cavalo;
amar um leão é não poder amá-lo;
e nada que façamos adoça
o que nele nos ameaça se
amar um leão nos acontece:
à visão de nosso coração
ofertado, tudo nele se eriça,
seu desprezo cresce;
amar um leão, se nos matasse;
se nos matasse o leão que amamos
seria a dor maior, mais que esperada:
presas patas fúria cravadas em nossa carne;
mas o leão, que amamos,
não nos mata.
Explicação de Miguel de José de João
O viúvo pensa que o mundo não passa de um triste
absurdo, ele é o homem mais triste do mundo, seu
espinho é o mais fundo e tudo é prenúncio da morte,
de seu triunfo. Uma palavra antiga, lembra: infortúnio.
Entre ele, pensa, e tudo em volta haverá para sempre
um muro e depois do muro o que houver há de ser
fútil; onde está é o certo, no escuro. Uma lembrança
flutua sobre o tumulto. Talvez nem seja exatamente
pensamento o que pensa se o que pensa, parado,
não vasculha coisa alguma que não o próprio soluço
e toda perspectiva, num instante, coagula-se. Ter vivido,
pesa, não foi senão preâmbulo de sua condição viúva.
Convulsa, jejua, recapitula, murcha; perscruta
as variações mínimas do vazio, quando uns pontos
claros que se desenham sobre o fundo de seu luto
parecem vagos turvos como o passado vistos
dali, do seu pensamento, que sobre a dor e doer
se debruça. O mundo é um espinho absurdo,
cada coisa. Quer morrer; por um minuto, não
pensa.
Exceto o que trazemos em nós
Tentou adivinhar a aurora esmiuçando
o intestino mínimo das aves, buscou-a
no fundo das xícaras porque soube que
boiava na borra do café um sentido
qualquer; olhos fechados para a evidência,
quis entender aquilo que se recusava
a seu alcance; mas agora nada disso
interessa; já não crê em Deus
e desacreditou dos deuses; danem-se
o marxismo, a psicanálise e outros
serviços de atendimento ao consumidor.
Acredita em Madame Thalita.
Por que não acreditaria? Resta lembrar
onde pôs o número do telefone
de Madame Thalita, que garante trazer
a pessoa amada em apenas três dias;
quatro mil trezentos e vinte minutos,
é muito. Se Madame Thalita traz os dias
de volta? Nem ela nem ninguém; melhor
assim, dias novos e nenhum mistério.
Sangue do meu sangue
A pulga que picou Murilo Mendes
veio pular aqui, na minha rede;
não me perguntem como adivinhá-la,
não há ciência mas eu sei que é ela;
decerto mais vetusta que Murilo,
à sombra das pirâmides do Egito,
picara escribas, sacerdotes, putas,
saltando sobre as altas sepulturas;
para mim é uma honra e uma alegria
pulga assim, tão velha e tão distinta,
sugar-me o sangue e no seu sangue-síntese
juntar-me a tanto e, por conseguinte,
ó, ectoparasita hematófago,
o teu salto há de ser minha metáfora
para dizer tudo o que sei do nada
que sei de nossa pouca eternidade.
Uma gaivota viesse
O amigo, em Lisboa, pergunta o que quero de Lisboa;
nada, respondo, não quero senão o que não vem nos postais
mais um ou dois postais de lugares onde nunca fui feliz
e, ainda assim, agora e sempre, eu quis, não quero, Alberto,
de Lisboa senão o que ela não dá, o que ela guarda e é preciso
roubar, secretíssima, a alegria que não cabe nos guias de turismo,
quero isso, mais uma ou duas coisas que vêm nos guias de turismo.
Vê esses rapazes e moças de olhos azuis? São holandeses.
Esses deuses e essas flores azuis? São azulejos. Como trazê-los?
De nada valem os antiquários; quando voltamos de Lisboa, tudo
o que trazemos, percebemos, está partido, por isso, Alberto,
não vale a pena trazer nada, que daí só trazemos, sem dar conta,
o que nos parte, o que nos corta, mal fechamos a mala, mal
abrimos a porta.