Aquele que tem olhos de ver que veja,
aqueles que têm ouvidos de ouvir que ouçam.
Mateus 13:9
Tenho onze anos e um par de olhos verdes, que minha tia diz serem castanhos porque ela é daltônica. Também sou mirrado para a minha idade e aparento ter no máximo oito anos. A casa inteira fede a móveis velhos, óleo de peroba e urina de gato — embora não haja gato algum.
Quase tudo na casa é verde: cortinas, toalhas, o tecido do sofá, e minha tia pensando em outros matizes porque é enganada pelo cérebro.
Minha tia respira como um bule resfolegando e tem um andar arrastado de jabuti por conta da ciática, da velhice e do sobrepeso; mas eu sei secretamente que é por culpa da partida do meu primo para estudar Medicina noutra cidade porque minha mãe me contou isso em segredo, de modo que eu jamais posso falar sobre o ausente. O desgosto dela a faz comer mesmo quando não sente fome. A figura dela toma quase por completo o vão da porta da cozinha, de modo que do lá fora só passa para minha visão um pouco do vazio do mundo.
Estou de férias no sítio dos meus padrinhos — que chamo de tios — e os dias ruins vão se acumulando como lixo não recolhido porque não há nada de interessante para se fazer aqui. Até que uma coisa pior do que o tédio acontece.
Meu tio grita comigo porque não quero subir no lombo da égua. Como moro na cidade e estou de férias nesta bosta de lugar, subir no animal parece ser a coisa certa a fazer. Mas vejo a Morte no olho esquerdo da égua e tenho medo. Quanto mais tenho medo, mais meu tio se enerva. Me chama de mulherzinha. Olho para o chão e as pedras estão sedentas e implorando por alguma chuva, mas é em vão porque ali chove apenas a cada dois anos.
“Quer dizer que você tem medo de uma eguinha à toa? Quer dizer que você nunca vai montar numa égua?”, diz meu tio, e a ironia escorre da voz pegajosa dele, como se fosse pus. “É isso que mandaram para cá nessas férias, uma mulherzinha?”, meu tio diz. Então me reboca para o barracão de ferramentas por trás da casa principal, e a cada empurrão me sinto menor, me empurra para cima de um monte de feno e me violenta. Eu grito e não escuto meu grito porque é como se eu estivesse embaixo d’água — uma das mãos dele tapa a minha boca e meu coração bate tão forte que é impossível ouvir qualquer outra coisa. A mão dele tem gosto de corda de amarrar cachorro, suja, e a pele grudenta dele tem cheiro de Áqua Velva. É como se tivessem me enfiado um cabo de vassoura. Penso que vou morrer ou desmaiar, mas nada disso acontece. O que acontece sou eu todo sujo de ranho, sangue, lágrimas, esperma e vergonha.
De longe vem a voz da minha tia me mandando tomar banho porque iremos à igreja à noite. Lá fora tudo está manchado pelo sangue do fim do dia e pelo grito inútil das cigarras. Faz-se noite muito cedo aqui. Dentro de casa está tudo na penumbra. Eu passo direto para o banheiro do corredor que minha tia chama de banheiro das visitas.
Quando tiro as roupas não sei o que fazer com elas, por conta da sujeira. Não sei o que fazer comigo, por conta da sujeira.
Quando a água cai quente do chuveiro devido ao calor do dia, eu penso que vou derreter e ir com ela pelo ralo, mas isso não acontece. Coisa alguma que desejo acontece e eu nunca consigo me acostumar com isso, pois estou sempre aguardando algo. A penumbra da casa é estuprada pela música evangélica que toca do rádio e me pega no corredor. Fico o tempo todo de cabeça baixa na hora do jantar e mal toco na comida. Minha tia quer me empurrar um monte de comida goela abaixo. Estou sem fome, eu digo, e minha voz sai arrastada e mole como uma lesma. A comida é o bálsamo para todos os males do mundo, é assim que ela pensa.
Meu tio fala para a minha tia que a culpa é dele, que eu estou emburrado porque ele insistiu para que eu aprendesse a cavalgar, mas depois do culto vou me sentir bem porque não há nada como ouvir a Palavra.
“Amanhã será melhor”, anuncia meu tio. Estou de cabeça baixa, mas sei que ele está sorrindo.
Meu tio está vestido para o culto. O terno é de um tecido duro e barato, cinza cor de rato, botões igualmente ordinários da mesma cor cinza, mas com pigmentos brancos, para ficar parecendo mármore, mas o que conseguem é ficar parecendo cagadas de pombo endurecidas.
Como o terno é duro como um pau, meu tio parece vestido por um caixão barato. Ah, meu tio de fato é todo feito de madeira, tendo um cabo de vassoura no lugar do órgão sexual, eu penso. E penso também que dentro dessa casca dura mora um homem completamente diferente. Por dentro ele é mole e podre como uma fruta estragada ou um verme. Como um percevejo, com aquela casca dura escondendo o de dentro mole e fedorento quando a gente o esmaga por entre os dedos.
Minha tia está vestida de toalha de mesa ou cortina, pelo menos é o que parece, toda enrolada por uma renda bege.
Há um tal espírito de boa vontade forçada nos membros da Congregação, todos igualmente mal vestidos com ternos baratos e duros como se fossem de madeira. É a farra dos homens-caixão. As mulheres vestem vestidos longos, mesmo assim deixam à mostra as pernas cabeludas.
No culto, o Pastor — um sujeito atarracado com uma coisa lustrosa no cabelo — fala de um Deus amoroso que exige de Abraão o sacrifício do próprio filho, Isaque. Fala em Ló, que ofereceu as próprias filhas impúberes a uma turba, dizendo que podiam fazer com as crianças o que bem entendessem. Mulheres e crianças podem ser sacrificadas à vontade, essa é a mensagem desse Deus sanguinário do Velho Testamento, e como esse Deus pode ser amoroso eu não entendo. Na sala abafada, os gritos de Aleluia e Amém mais altos são das mulheres. Algumas beiram o delírio a tal ponto que se, o Pastor berrasse açúcar café pão margarina, elas continuariam a gritar Glória! Amém! Aleluia!
O Pastor diz que aquela Congregação está salva porque ali são todos Filhos de Deus remidos pelo Sangue do Cordeiro, e eu me pergunto como uns esmolambados daqueles podem ser filhos de um Rei quando estão mais para lacaios mal vestidos.
Ao final do culto meu tio toca violino. Meu tio muito se orgulha de não ter frequentado nenhuma escola de música e fala que “toca de ouvido”, como se isso fosse a coisa mais respeitável e incrível do Universo, tipo alguém conseguir uma façanha olímpica. Que ouvido ruim da porra ele deve ter, eu penso, porque o que ele toca é tão desafinado quanto o zumbido de uma muriçoca.
Por conta de meu tio não tocar bonito nem afinado, eu fico sentindo uma pontada na boca do estômago. Não adianta tentar engolir em seco porque o som do violino é um punhal que fica remexendo o estômago, a ponta dele começa a doer no umbigo e sobe me rasgando por dentro até o esôfago, e do esôfago até a garganta. Entro em pânico porque estamos sentados bem no meio da Congregação e terei de me esgueirar entre as pernas dos adultos, onde há pouco espaço, preciso chegar logo ao vaso sanitário.
Deus prova Sua existência realizando o milagre de eu conseguir chegar até o sanitário e vomitar os restos do jantar e do dia quente. Uma menina com vestido azul cor de céu lavado me vê passar na volta do banheiro e é como se ela soubesse tudo o que aconteceu comigo hoje. Fico congelado por essa sensação. Então volto a ver a Morte. Está no olho esquerdo dela, assim como estava no olho esquerdo da égua.
A menina tem uns cinco anos, a mesma idade que eu tinha quando vi um anjinho pela primeira vez. Na época, minha avó chegou à minha casa e me arrastou para o enterro de um anjinho. Minha avó era carpideira, “mas em enterro de anjinho eu não cobro, não cobro, vou por gosto e por devoção a São Miguel, padroeiro dos mortos”, dizia ela. Eu então me vi afobado de contente porque seria muito excitante ver um anjinho, mesmo num enterro, o que à época eu não sabia muito bem o que era. Minha avó me arrasta, eu meio que corro e meio que pinoto, na excitação feliz de conhecer o anjinho. O sol nos aniquila durante a subida da colina, eu penso que estamos indo para o Céu pois o esforço de subir o aclive é imenso, mas a verdade é que o cemitério de Barra de Guabiraba fica no topo de um morro que é pedregoso e cheio de talos secos de capim e por isso mesmo é a paisagem mais oposta ao Paraíso que possa existir. E o anjinho era uma criança de uns dois anos de idade na capela do cemitério, com a pele azul como o seu pequeno caixão e do mesmo modo azul céu do vestido da menina que vejo na saída do banheiro da igreja e todo esse mar azulado de lembranças se funde e me devolve à náusea, chego a sentir o cheiro enjoativo dos cravos-de-defunto que estofavam o caixão do anjinho.
Na volta da igreja minha tia diz que eu deveria aceitar Jesus, pois é a Única coisa certa a se fazer nesta vida, e quanto mais cedo e sem pecado, melhor. O carro é velho e sacoleja, fazendo a rádio sair de sintonia o tempo todo e a música evangélica é partida em pedaços – Je—sus vol—-ta—rá/ele é meu—– re—-gio.
Minha tia comprou para mim uma camisa de malha verde e só agora se lembrou disso; é uma pena que eu não fui ao culto com a camisa nova, ela diz. Estou ficando velha e esquecida, ela diz, e sua voz tem a honestidade dura do arame esticado nas cercas lá fora. Ela sempre me dá roupas desde que nasci. Mas nada disso importa porque acredito que estou no limite, como aquelas cordas do violino do meu tio, que se arrebentam por conta dos maus-tratos; penso que vou morrer hoje mesmo e para mim não haverá nenhum amanhã.
A surpresa é que além de não ter morrido, no dia seguinte acordo com uma fome que jamais tive e a partir daquele dia passo a comer mais e mais e vou ficando um garoto gordo. A partir daquele dia serei gordo para o resto dos meus dias.
Minha tia acha um milagre eu começar a comer daquele jeito e não se contenta de feliz ao me ver devorar tudo o que ela bota na minha frente, principalmente as geleias caseiras, pois eu sinto uma vontade sem fim de comer todo o açúcar do Universo. E sua alegria dura até o meio-dia, quando a égua desprezada por mim acerta um coice na testa do meu tio e ele tem morte instantânea.
O corpo trevoso do meu tio mal esfria e a égua é sacrificada com um tiro de espingarda dado por minha tia, que volta ofegante do celeiro, mas ainda assim com a satisfação escrita em vermelho na sua cara gorda.
É o fim precoce de minhas férias. Minha mãe vem para o enterro e me leva de volta. Mal tenho tempo de ver a casa inteira com os homens-caixão da Congregação religiosa.
Minha mãe diz que meu padrinho era uma pessoa muito amada e que sua morte é uma tragédia. Ela está elétrica, totalmente agitada e falando o tempo todo porque novamente parou de tomar o lítio e o depakote. O ônibus de volta engole os pedaços de Mata Atlântica devastada pelos canaviais das duas famílias ricas que são donas de quase todo o estado, engole os postes de energia elétrica e a luz do pôr do sol até que reste apenas noite.
Quando volto para casa, minha mãe não me reconhece. Como se eu estivesse vindo de um país que sequer existia mais. E tão curtas foram as férias. O plano era me levar ao circo, que durante anos acampa em nossa cidade por essa época do ano, mas algo deu errado com o número do engolidor de fogo e o circo acabou desaparecendo nas chamas. Por isso minha mãe não sabe o que fazer comigo até o recomeço das aulas; então me dá dinheiro para comprar revistas em quadrinhos e ir ao cyber, onde jogo Galáctica e tento destruir o maior número possível de naves alienígenas. O alemão dono do cyber nem se importa com o espancamento da máquina porque a negra linda que era mulher dele foi embora com outro homem e ele passa a maior parte do tempo cheio de caipirinha e dizendo “Sie wird zurückkommen! Sie wird zurückkommen!” (Ela vai voltar! Ela vai voltar!), por isso os meninos que frequentam o cyber botaram nele o apelido de seu Zurück.
Pego todas as revistas de heróis da banca e quando vou pagar por elas vejo a Morte no olho esquerdo do jornaleiro, e ele morre com um tiro, durante um assalto na tarde daquele mesmo dia, enquanto tentava a sorte fazendo uma aposta numa casa lotérica. Tudo foi filmado e fica passando e repassando na tela da nossa tevê e eu vejo e revejo enquanto lambo a mistura de manteiga com açúcar do pão ainda quentinho que minha mãe acabou de comprar na padaria.
Enquanto revejo e revejo a morte do jornaleiro, que fica acontecendo a tarde toda, descubro que tenho aquela espécie de superpoder que é ver a Morte no olho esquerdo de éguas e pessoas e um frio de satisfação percorre minha espinha e dura até o momento em que olho para minha mãe, procurando a Morte no olho esquerdo dela. Aquilo passa a ser um inferno durante as semanas, meses e anos seguintes; então, assim que faço dezessete anos e seis meses eu me alisto no Exército e saio de casa para sempre.
Odeio o Exército e o Exército igualmente me odeia porque sou gordo. Segundo ele, só sirvo para o trabalho no depósito de munição. Descubro que sou bom em ficar sozinho em lugares quietos, sou bom com números e sou bom em classificar e arrumar coisas, por isso, apesar das dezenas de pedidos de transferência, nos muitos anos de Exército, minhas solicitações nunca são atendidas e me deixam mofar em paz no almoxarifado que faz o controle de armas. Quero ir para algum lugar, mas não sei exatamente onde. Quero outra função, mas não sei exatamente qual. O Exército me dá uma casa para morar e um refeitório onde às vezes vejo baratas escapando furtivas por entre os grandes panelões de rango. Comida ruim dos infernos porque há desvio de verbas e por isso consumimos produtos de quinta categoria, sempre com validade vencida.
Sem saber exatamente como começou, cada vez mais pessoas me procuram em momentos soturnos e trazem fotos de mulheres, filhos e mães doentes; alguns vêm e mostram fotos de desafetos e me perguntam quando vão morrer. Às vezes sou capaz de ver a Morte nas fotografias, porém, na maioria dos casos, eu digo que não consigo ver nada e nada importa ser isso verdade porque nunca acreditam em mim. Mas também acontece de, às vezes, minhas pupilas dilatarem e as palavras de confirmação saírem de minha boca como se outra pessoa tomasse posse do meu corpo.
Esse aí não dura uma semana.
Essa está com os dias contados.
Esse não escapa até o fim do mês.
Todos os dias pela manhã, ao tirar a barba, eu me pergunto se não estaria vendo minha própria morte no meu olho esquerdo e negando-a — como minha tia, que nunca nunca nunca viu ou verá a cor verde.