Estrela d’Alba

Conto de Maria de Santa-Cruz
Ilustração: Marco Jacobsen
01/07/2006

Escreve e recordarás. (Jorge Luis Borges)

Sonho de uma noite de Verão. Love me tenderly. Saia e gravata de um azul escuro. Meias até ao joelho. A Vigésima Quinta Hora proibida, lida à vigésima quarta, sob o lençol e a coberta, à luz de uma lanterna de bolso.

As janelas do colégio dando para a praça, o jardim, o cinema. Por vezes, o circo. Sentir o tumulto que chega, distante, ao dormitório do terceiro andar, a vida tão perto e inacessível.

Serenatas dos rapazes do liceu. Ao domingo, a cabeça baixa e os olhos a espiar. Esta semana, as meninas fizeram muito apostolado: a capela estava cheia de galarotes atrevidos — ironizavam as freiras, castigadoras e agradadas.

O cantochão. Pedais ronceiros do harmónio e as vozes frescas em uníssono. A estante com a enorme pauta, para que as quatro vozes acompanhem a música e a letra. Ecce Sacerdos. Tantum ergo. Sursum corda.

Namoros inventados e recadinhos enviados e recebidos por intermédio das externas. Bilhetes que se julgavam obscenos passando de mão em mão durante as aulas de inglês e francês. I love you, Je t’aime. Wó-Ai-Ni, traduzira a Inês Li-Ching. Do que vocês precisam é de mbolo e kuxinda, desbragara a Helena Nhungué. Sim, um desejo crescente e vivo. Sem se saber de quê. Amo-te, Toni, Mário, Dinis, Carlitos. Esta noite vou sonhar contigo. Agarro a almofada e beijo-te a alva pele de linho, acaricio-te as rendas e o richelieu. Meu amor que não conheço.

Vestir hipocritamente o escapulário antes do banho. Despi-lo depois de fechar a porta. Deixar a água escorrer pelo corpo nu, as mãos ávidas moldando os redondos nascentes. Amo-te, desejo de mim.

Ouvir, ouvir tudo atentamente. Fixar. Fórmulas químicas, teoremas, definições. Inventar mnemónicas. Observar. Olhar o mundo pela primeira vez. Notar os variados tons do mar — Quando, à noite, eu vejo o mar… Forte, e ousado, como um-um leão…canção feita para nós pelo paternal professor da infância comum —, o progressivo aumento das formas, as pupilas a dilatar ou a diminuir. Perspectivas. A geometria do parquet e de um portão de ferro forjado. A aguarela da rosa-chá e a transparência da gota de orvalho. Tinta-da-china entornada na folha cavalinho, mesmo no momento de entregar. Saborear a frustração. Saborear. Lentamente, o chá com leite, o pecado do café forte sem açúcar, o dióspiro-caqui, manga e limão com sal, a casca de laranja, pétalas de flores. Sentir o cheiro enjoativo dos flocos de aveia de manhã, a colónia ou after shave do professor de matemática, o adocicado do incenso e da cera das velas, o mofo dos paramentos roubados da sacristia numa terça-feira gorda, o odor salgado do Índico que recebe a formatura nos domingos à tarde. Da lavandaria, aroma de roupa lavada às terças, quintas e sábados. Cheiro de graxa e borracha do casier dos sapatos, às quintas. Arrumar todas as manhãs o armário dos livros. Esticar bem a colcha. Riscar os minerais. Misturas e compostos. Anastásio, o esqueleto articulado, escancara a maxila do sarcasmo.

Insípida, inodora, a macieza amorfa, o silêncio e a transparência da hóstia consagrada. Será Deus? Mastiguei. E, antes, tinha comido dois bombons. Engulo e não o sinto. Só a frescura tranquila da capela, tão agradável nas tardes tropicais.

A aliança da madre bate no genuflexório. Um toque: levantar. Dois toques: ajoelhar. Todas ao mesmo tempo. Uniformizadas no gesto piedoso. As pequenas à frente, depois as médias e, a seguir, as grandes.

Meias altas e cinto-de-ligas, sete saiotes (alguns, emprestados), a cintura bem vincada pelo cinto muito apertado: excitação das noites de concerto, libertas da farda. Beleza máscula do pianista, mais novo que o professor de matemática. Cochichos, risinhos e autógrafos.

Exames no liceu, onde os rapazes olham como na capela, mais trocistas, galanteadores e desejados. O tédio das férias, sem lições, nem professores, sem serenatas, sem segredinhos e bilhetes proibidos. E a ampla franja obscura dos lugares e das gentes de que apenas sabemos o que nos permitem, obedientes ao conformismo da impotência. Só os romances. Lidos, sonhados, escritos às escondidas e depois queimados. Evite a rima na prosa, menina teimosa. Memória das meninas sem história. Evitar…

Ele apareceu um dia, sem distâncias, como nos tempos da infância comum. Longe, as tardes em que arriscavam mergulhar no turvo rio Zambeze, depois da escola, iludindo a vigilância das mães. Aventuras terminadas no dia em que viram a flutuar, acercando-se da margem, a cabeça da criança que o pouco apetite do crocodilo rejeitara. Ele apareceu um dia, muito depois das tardes de mergulho, a infância arredada, e convidou-a para um passeio a sós. Assim tão longe da cidade grande, sem o fundo do colégio, do liceu ou da capela obscura, parecia mais bonito, mais real e menos desejável. Desdobraram-se em risos, recordando os olhares velados, elas na forma, depois do terceiro toque do anel bento, e eles no fundo da capela; as serenatas interrompidas por baldes de água suja, que a caridade das freiras aspergia sobre as capas negras emprestadas com perfume de naftalina. Ela calou os beijos na almofada que por tantas noites o substituíra. Ele dava-lhe a mão quando desceram o planalto, por entre o mato, capim ressequido ou queimado, raízes aéreas, pedregulhos. Sentiu a pele dele, húmida e quente.

Ela perguntou Onde me levas? Vou-te mostrar um tesouro escondido, espera. E caminharam em silêncio. Descansaram junto ao grande penedo, por baixo do imbondeiro. Olharam um para o o outro, a rir, e recomeçaram a andar.

Sabias que o imbondeiro é habitado pelos xipòkués que não se abrigam na cabeça dos homens? Dizem que são como a mulher por quem nos apaixonamos, buscarei nas outras todas un signo tuyo, como dizia o poeta. Instalam-se e corroem o nosso pensamento. Ela apenas sorriu e encolheu os ombros, reconhecendo com pena que o tempo de silêncio se esgotara.

Depois do liceu, que vais fazer? Talvez vá para o outro lado, enquanto é tempo, disse ele. Para onde fugiu o teu irmão… E não tens medo?

E tu, aqui parada, à espera, não tens medo?

Apertaram mais as mãos, sentindo que só aquela coisa muito forte os unia. E era o medo. Que mais posso fazer senão ficar parada e à espera? O pai quer mandar-me estudar para Lisboa. É, consentiu ele, talvez seja o melhor. Aqui não temos nem a merda de uma universidade. Lá, podíamos fazer alguma coisa se não fossem aqueles filhos da puta. Não troco uma universidade por aqueles coirões. Que vais fazer, sozinha na grande cidade estranha? Lá, eles não sabem que nós existimos, só depois da nossa morte nos hão-de descobrir e a tudo isto. E então, tudo será outra coisa.

Ela quis mudar de conversa, adiar a separação. Escolheu o mais fácil e familiar. Sabes que a Maria das Dores saiu do colégio? Sei, a Dores contou-me que as freiras a expulsaram por ela estar a foder com a almofada. Ela parou e soube que se fizera vermelha. A Dores disse-te mesmo assim? Não sei, talvez tenha dito fornicar ou masturbar, vai dar ao mesmo. Ela pensou Sou estúpida. Nunca se lembrara de ligar as duas coisas e achara uma grande injustiça mandarem embora uma boa aluna só por cavalgar a almofada durante a sesta, hora e meia de repouso obrigatório, interrompido pelos seus gemidos e tremores. Ele ainda comentou que a Dores não era daquelas que um homem escolhia para casar. E tu tens tempo. Agora casam todas de repente com esses oficiais que nos estão a invadir, julgam que vocês são milionárias e chamam-vos filhas de negreiros. Nós, os da terra, teremos de casar com a filha da minha lavadeira. Disse, com raiva. Era cruel.

Por entre os eucaliptos apareceu, de repente, a casa abandonada, transformada por ele num gigantesco pombal.

É o meu velho navio, apresentou. Casa colonial, de largas varandas a toda a volta e paredes maticadas, de adobe, e muito espessas. Nas portas e janelas, a rede mosquiteira pendia, rasgada e salpicada da caca dos pombos. Ele foi buscar o saco da ração a um armário velho. A porta chiou e o eco repercutiu o gemido na grande casa vazia. Depois, tirou a harmónica do bolso e tocou a Tristesse, como nas noites de serenata, enquanto as pombas iam poisando à sua volta.

Nunca consegui descobrir se elas vêm à música ou à mapira, disse depois da Tristesse, batendo com a harmónica na coxa, para sacudir os resíduos de saliva. Pegou na mapira e arremessou os pequeninos grãos em círculo. Elevou a voz . Era a Granada.

Mi cantábaaaaaaaaa Tenho pombos correios, mas isto era um segredo só meu e dos meus irmãos. Vais jurar que não dizes a ninguém. Juro, disse ela. Quando formos velhos, havemos de nos rir de tudo isto.

Já somos velhos. Já nascemos velhos e sem futuro, contrariou ele, voltando a ser adulto. Nada disto é tão inocente como pensas, disse, muito sério. Vais guardar segredo, ameaçou com aquele ar que o tornava terrível de repente. Seria capaz de tudo?

Depois, sorriu, suavizou a voz. E tu, não hás-de mudar, conservo a minha infância no teu rosto. Guardarei sempre a tua imagem assim, no meio do meu pombal. Apenas as estrelas, alarmantes, hão-de crepitar em teus cabelos, acrescentou, pondo-lhe na cabeça a mão de uma ternura pesada.

Ainda hoje arranquei dois, confirmou ela. Dois quê?, estranhou ele. Esquecia depressa aquilo que mais tarde lembraria.

Dois cabelos brancos. Ele troçou, oh oh oh, encurvou o corpo e imitou um bêbedo de andar balouçante, recitando outra vez, em voz pastosa Floriram por engano as rosas bravas…veio o vento desfolhá-las… Em que cismas, meu bem? Por que me calas as vozes com que há pouco me enganavas …?

Então ela reparou como ele já era, realmente, velho. Ou estaria no meio da vida. Só um velho podia dizer foder com tanta facilidade, sem rir nem corar, sem elevar a voz de galarote provocante ou sussurrar a palavra mais temida. Só um velho podia falar de velhice com calma, ironia e aquela poesia. E o que teria feito com a Dores, nessa intimidade do palavrão? Sentiu um ciúme que não doía, apenas a enojava. Agoniou-se. Ele agarrou-a e passou-lhe o braço pela cintura. Cheirava a alho, a tabaco e a caca de pombo. Esse seria o cheiro dos homens feitos. Afastou-se enjoada e evitou o abraço. Ainda não.

Vamos, faz-se tarde, e em casa vão notar a nossa falta. De novo ele lhe agarrou a mão com a mão suada e saíram da fresca protecção da casa velha e assombrada pelo eco do arrulho dos pombos.

Mas não tomaram o caminho de regresso. Ele encaminhou-a para a frente, na direcção do desfiladeiro, por entre mato alto. Seguiam como dois cegos, sem destino nem palavras. Ele, ofegante, tocava, como sem querer e sem a olhar, o lado da anca, o bico do seio, o pescoço, os cabelos, a nuca, o nicho da orelha dela, e a mão fizera-se leve e amável.

Ela fechara os olhos, agradada da ternura, julgando-se pronta para o conhecimento ainda indesejado.

Quando entraram na clareira, sentiu-se empurrada devagar e logo se reclinou sob o suave peso. Esperava encontrar o chão. Surpreendeu-a uma friagem húmida, muito antes de chegar ao solo, como se alta cama de inverno os esperasse ali. Mesmo assim, não quis abrir os olhos, com medo de perder a coragem e ficar sem saber como seria. E se nos vêem, disse. E ele, Ninguém — Ninguém meu amor — Só nós

Deitara-a e cobria-a, chegando os lábios grossos de alho e cigarro aos gomos da boca almofadada que já o beijara em sonhos. Ela respondeu com a paixão de ensaio com que esgarçara a almofada. Ele, como se lesse, Nadie sabia que martirizabas un colibri de amor entre los dientes…Mas logo repetia, irritante, a intervalos, não tenhas medo, não te faço mal, não tenhas medo… Ninguém — Ninguém meu amor — Só

Ela desejava isolar-se do mundo e sentir o paraíso lido em alguns romances em vez daquele calafrio e da dureza do mármore por baixo da fina camada de capim. E ele, repetindo o refrão que não seria só dela, ia procurando as redondezas da carne por baixo da blusa de linho, sem estranhar a estranheza do lugar.

Onde estamos?, quebrou ela, sentindo maior o desconforto que o desejo. Onde estamos?, insistiu, desviando o corpo arrepiado e abrindo os olhos.

Ele ergueu-se, zangado, sobre ela em contraluz. Olhou à volta e também ficou surpreendido, inteiriçado de pasmo perante o campo onde chegara sem ver. Mas logo adivinhou e resolveu procurar a certeza.

Começou a explorar o capim alto da clareira rodeada de eucaliptos, excitado pela descoberta das lajes. Apareceu um pedaço de cruz. E outra. E outra ainda meio erguida sobre o leve relevo das sepulturas. Ele capinava o mato com furor, rasgava mãos e camisa nos espinhos das micaias e arrancava girassóis, a fúria crescendo no rosto congestionado, cada vez mais adulto, mais belo e temível.

Um Ce-mi-té-ri-o. Descobrimos um Ce-mi-té-ri-o, gritou, vitorioso como o padre dominicano que encontrara a Laje de Prata no Zumbo, ou como Livingstone do alto do desfiladeiro do Songo.

Ela varreu as ervas da pedra onde estivera deitada, ansiosa e pronta para o sacrifício. Ajoelhou sobre a laje, limpando-a com a fralda da blusa desapertada, e procurou um lenço no bolso das calças justas.

Havia uma inscrição e, em esmalte, por baixo dos limos, um retrato. Nele se notavam ainda as feições miúdas e roliças de uma jovem de sépia pálida, toda folhos e rendas nos seus catorze ou quinze anos. Das letras, esvaídas pelo tempo e a intempérie, apenas conseguiram decifrar

                                   MARIA

                        MDCCXLI – MDCCLVII

Maria de Santa-Cruz

Nasceu em Portugal. Morou até 1978 em Moçambique. Regressou a Lisboa, onde se doutorou em Literatura Brasileira e por mais de 20 anos lecionou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Publicou A dama do Pê (contos, 1994) e Katastrophe (poemas, 1997).

Rascunho