Estavas tão bonito, recolhendo meu olhar pela calçada. E eu aqui a te observar com o olhar que me sobrou. Recolhias meu glóbulo que agora nem sei se ainda é olhar, fora do meu rosto. Minha orelha que pende no meio-fio é ouvir? E essa mão minha na mão tua que tiras do asfalto, como se me tirasse para dançar? Pena que é só ela que vai, já que meu braço foi descansar lá do outro lado no momento em que o carro me partiu em duas, três, quatro, tantas. Mas agora sou apenas uma, um olho só, uma cabeça só a te mirar tão lindo. O que sentes neste exato momento em que seguras firme uma das minhas coxas? Percebes minhas horas de academia, meus anos de balé?
Tem nome essa tua profissão de recolher meus pedaços, meu sangue do chão? E importam nomes agora que encontrei um homem capaz de tocar cada pequeno canto de mim? Olha, que lindo, tu reparas, eu era feita de mínimos detalhes, notas o mindinho do meu pé esquerdo que, não imagino como, se desgarrou, foi para longe dos quatro irmãos, que devem estar ainda com o pé (com a perna) em algum lugar que este único olho que me resta não consegue alcançar.
Quem me dera ter sido forte e resistir ao impacto do pára-choques, do capô, dos estilhaços, quem me dera ter caído inteira no asfalto, para depois ter caído inteira nos teus braços. Mas, fosse assim, tu virias me recolher? Ou seria um enfermeiro, cuidando para que eu sobrevivesse?
Isso sim seria a morte, não descobrir que algum homem, alguma vez na vida, poderia recolher meu tronco com o zelo, com o carinho e com a firmeza com que pegas esta parte de mim. Veja, lindo, teu olhar agora encontra este meu. Vens por ele ou pela cabeça, ou, devaneio, por isso tudo que sinto? Sinto onde se meu coração já está naquele saco preto? Mas sinto, sinto, sinto em algum lugar dessa sobra de mim que agora sou, sinto que esse homem que recolhe minha cabeça da calçada como se fosse me dar um beijo é o homem da minha vida, mesmo que nessa hora derradeira, em que me dela me despeço.
Estás tão bonito aí fora, lançando minha cabeça aqui no saco preto.