Tradução: Nilma Lacerda
Agora Denise está deitada sobre uma mesa de madeira, a mesma que o pastor usa aos domingos quando começa a pregar. Muita gente chegou para vê-la, e é como se estivessem esperando um milagre. Denise está concentrada, olhando o teto que eu mesmo consertei. Caso chova esta noite, a chuva não deve molhar seu rosto, ela não gostaria disso. Acima do teto está o céu, encapotado, as nuvens cinza esperando o anoitecer para despejar outro aguaceiro. Água é o que não faltou por esses dias, e até tem vizinhos que estão com as casas inundadas. Sobretudo a parte em que vivo, pra cima do campo de futebol, depois do quiosque onde vendiam refrigerantes após as partidas. Avisei ao pastor que em caso de goteiras sempre se tem que esperar, porque arrumam-se umas e aparecem outras. A água sempre sabe por onde correr. Mas agora o teto da igreja não pinga e entra chuva apenas pelos tijolos vazados da parede, principalmente quando há muito vento.
Todos os domingos, eu via Denise, ao lado da mãe. Sua mãe segurava a Bíblia na mão e cantavam aquilo de louvarei, louvarei o meu Senhor, mas Denise não cantava, os lábios ficavam cerrados e parecia que Deus estava em seu rosto de uma maneira diferente. Não como está na cara do pastor nem na cara da mãe dela, que é muito parecida com a de Denise. Às vezes, no culto, o olhar dela se encontrava com o meu, e ela o afastava rapidamente. Eu gostava do olhar de Denise.
Conheci-a no ônibus, quando voltava do colégio. Estava sentada dois bancos à minha frente. Não dava para ver seu rosto, apenas o cabelo preto, muito liso, mas disse pra mim: é a filha da senhora da loja, mas estou vendo-a por trás. Levava o uniforme do colégio, a saia curta de xadrez azul e uma mochila velha e surrada. Precisa de uma mochila nova, pensei. Devia descer no ponto seguinte e veio pelo corredor do ônibus na minha direção, as bochechas rosadas, os lábios finos, mas não me olhou, embora estivesse olhando para ela. Eu estava com as mãos no banco da frente e o rosto dela estava como que aceso.
Sua mãe tinha uma mercearia, mas não vendia bebida porque nossa religião não permite. Nem cigarros. Antes de me converter, tinha que os comprar um pouco mais longe, numa cafeteria onde havia umas mesas com cadeiras de plástico. Agora compro em outro lugar para que o pastor não saiba.
O primeiro presente que dei a Denise foi uma caixa com doze lápis de cor. Havia pensado em uma mochila, em chocolates, uns talcos, uma faixa para o cabelo, mas todas essas coisas estão proibidas por nossa religião. Além disso, para uma menina como ela, o melhor eram os lápis de cor. Podia desenhar o mundo, o céu e as nuvens, e a mim também, por que não? Esperei que ela subisse a escadaria e quando estava a certa distância comecei a correr atrás dela até que a alcancei. Esses lápis são seus?, ela disse que não, mas eu a convenci: fica com eles, alguma criança os deixou cair. Recebeu-os sem um sorriso. Fui eu quem sorriu para ela.
Não tinha nada pra falar e então perguntei como estava no colégio, e ela me disse que bem, em seguida perguntei por sua mãe e não me respondeu. E assim fui caminhando com ela até uma quadra antes de sua casa, ela na frente, eu atrás. Às vezes, eu a alcançava, mas ela acelerava uma e outra vez. Não se despediu, também não me agradeceu pela caixa de lápis. Fiquei por ali, perto da igreja, e foi nessa ocasião que o pastor me disse que havia goteiras no teto.
O pastor é um homem de cabelos brancos, um pouco gordo, que todos os domingos fala da misericórdia de Deus e de como encontrou o Senhor, assim que sua mulher o abandonou. E sabe o que aconteceu depois? Morreu em um acidente de trânsito, me contou antes de falar da misericórdia divina, por isso não se deve nunca buscar vingança pelas próprias mãos, porque é Deus quem se encarrega de castigar o mal. Sua presença me inspirava muito respeito. Quando prega no culto, levanta muito a voz, quase grita, mas em seguida apenas sussurra e as pessoas se sentem tocadas por sua pregação. Nunca me pagou por aquele trabalho, goteiras no teto, uma mão de pintura nas paredes. Me disse que lesse a Bíblia, que viesse ao culto e que, se buscava Deus, cedo ou tarde Ele me recompensaria.
E o pastor tinha razão. Quando comecei a frequentar o culto, minha vida mudou. Me apareceram mais serviços de construção e às vezes não tinha tempo de executá-los. Me mudei para um quarto maior, numa parte atrás do campo de futebol, para cima do quiosque de zinco. Às sextas-feiras, ficava no centro ou ia para o lado do mercado e me dava uma vontade danada de ir a um bar, mas o pastor havia dito que desse o dízimo segundo meu coração e que, se tudo o que entregávamos à bebida nós déssemos a Deus, o Senhor multiplicaria nossas riquezas. E todos os meses eu entregava meu dízimo, mas nunca pude deixar de fumar. Tem coisas que não se deixam e às vezes a gente pede a Deus que as afaste, mas o mesmo Deus volta a apresentá-las de novo, e quando alguém espera sempre tem que fumar.
Estava me acostumando a esperar Denise. Atravessava o campo de futebol, subia a lombada e seguia na direção da avenida e depois do meio-dia Denise aparecia e eu cruzava com ela. E dizia, olá, Denise, e ela respondia apenas, olá, sem sequer me olhar, e então eu mandava lembranças a sua mãe, e Denise se ia pelas escadarias, outra vez de costas para mim, a saia curta de xadrez, sua mochila, e eu pensava que talvez Denise nunca tivesse usado os doze lápis de cor que eu tinha dado para ela.
Quando chove o bairro se enche de lodo, porque estas ruas não têm calçamento. Chove há vários dias sem parar, mas no teto da igreja não tem uma só goteira. É uma coisa que dá pra ver. Agora que começou a chover me lembro de que havia uma goteira que caía bem ali, onde Denise está deitada. A última vez que me encontrei com Denise caía uma tempestade, com trovões, granizo e relâmpagos. Ela cruzava a avenida com a mochila sobre a cabeça, e eu levava o guarda-chuva na mão. Um raio varreu o alto da escadaria, muito perto dos cabos de luz, e logo se ouviram os trovões, como se o teto do mundo começasse a cair. Mas a única coisa que caiu foi a mochila de Denise. Eu a peguei do chão, ofereci meu guarda-chuva, e ela não o recusou. Disse a ela que esperássemos um pouco até que parasse de chover.
Ela não gostava de se molhar.
Fomos até o campo de futebol, e nos metemos debaixo do quiosque de zinco, onde antes vendiam refrigerantes. Disse que íamos esperar até que parasse a chuva e então arrebentei a corrente e abri a porta do quiosque. Mas Denise começou a chorar porque eu a agarrava pelo braço. Apertei-a contra mim para que deixasse de chorar, sua cara ficava grudada contra meu peito. Depois, ela não disse nada. Me deitei ao lado dela e toquei seu cabelo molhado. Perguntei pelos lápis de cor que tinha dado a ela e busquei-os na mochila, mas não os encontrei. Começou a chover mais forte, tanto que a água entrava no quiosque e me deitei sobre Denise para que ela não se molhasse. Senti que seu corpo estava tomado pelo frio. Quando a tormenta amainou, vi o rosto de Denise, branco e resplandecente. Tinha essa calma que se abre no ar depois de uma tormenta. Disse a ela que me esperasse um pouco, que não ia demorar. Me encaminhei para a igreja mas o pastor não estava. Ainda assim, olhei para dentro, para ver se havia goteiras. E percebi que não. Só havia entrado chuva pelo lado. Voltei para contar isso a Denise e disse que o pastor nunca havia falado como esse trabalho tinha ficado bom. Nem sequer tinha agradecido. Essa tarde falei muito com Denise, olhei seus cadernos e seus livros e seus desenhos pintados com os lápis que tinha dado a ela.
Quando começou a escurecer, disse que precisava ir, talvez voltasse amanhã. Mas nunca voltei. No dia seguinte, passei bem perto do quiosque e disse, sem que ninguém me ouvisse: adeus, Denise. E ela, como sempre, não me respondeu. Somente voltei a vê-la agora que a trouxeram para a igreja e a deitaram na mesa que serve para o sermão do pastor. Uns garotos a encontraram no quiosque. E o pastor nem sequer me perguntou quando foi que a vi pela última vez.