Espelho

Conto de Ray Silveira
01/06/2006

Sem mais nem menos, todo mundo me encarando. Cuidei ser um sonho. Às vezes acontecia sonhar sabendo ser sonho e me esforçando por despertar. Não era o caso. Começou lá fora. Para mim, lá fora e lá dentro têm outros significados. Posso estar sozinho no banheiro, estando lá fora, e caminhar no meio da multidão, lá dentro. Lá fora é só o que não acontece dentro de mim. Quem primeiro me encarou foi o meu gato. Não dei importância, não era raro acontecer. Comecei a me assustar, ao tomar o elevador quase lotado. Dei bom dia e os perantes não aceitaram. Todos se afastaram e me olhavam como se eu fosse uma aparição. Apavorado quanto à aparência, não saí e voltei ao apartamento. Olhei primeiro a face. Não vendo nada anormal, tirei a roupa e pus um espelho diante do outro. Embora o alvo tivesse sido a cara, examinei cada milímetro do meu corpo. Nada diferente de ontem; ou de sempre. Vasculhei a roupa. Idêntico resultado. Ainda assim troquei o terno. Voltei ao elevador; desta vez vazio. Desceu comigo ao térreo um terror de ter de interromper meu trabalho. Tomei o automóvel. Na saída do prédio, os porteiros esticaram as cabeças e também quiseram ver. Verão. Mas a mornidão do sol estava fria e a sua luz, escura; pois os raios se coavam em nuvens carregadas de preguiça. Durante o trajeto, formavam-se renques de gente nas calçadas. Pelo retrovisor, vi uma senhora ir de encontro a um poste, olhando pra trás. Luto para não me deixar envolver pela atmosfera de olhares, não olhando. Medito. Me dito lentamente um trecho do Velho Testamento e acelero o automóvel. Fico confuso se estou seguindo muito depressa, por causa da velocidade do veículo, ou se estou demasiado lento, pela lentidão da minha meditação. Deixo no estacionamento o carro e arrasto o resto de harmonia. O manobrista tropeça numa pedra. O encarregado não vê as próprias mãos tirando e me entregando o tíquete. O que está olhando? Depois do bom dia no elevador, foi a minha primeira fala. Não obtendo resposta, repito a pergunta duas vezes. Parecia falar a uma estátua. A caminho do escritório não foi diferente. Os transeuntes me encaravam como a um ET. Evitava revidar, não por temê-los, e sim para preservar os últimos resquícios do meu me gostar. Não havia tumulto. Ninguém parava de caminhar. Exceto curiosidade, não transparecia qualquer emoção. Muito preocupado, continuei caminhando. A preocupação foi se transformando em ansiedade e esta em princípio de pânico. Pensei que ia endoidecer; não de doidura, mas de excesso de lucidez. A consciência de mim próprio era tamanha, a ponto de ver nos circunstantes os verdadeiros loucos. Sentia como se vissem em mim não um semelhante, mas um semideus. Longe de me lisonjear, tal sensação me incomodava, por me sentir o monarca de um reino de faz-de-conta, cujos vassalos eram todos imbecis. O único humano numa nação de asininos. Um gênio do aqui, cercado por uma multidão de obtusos do ali. Não era o meu habitat; não possuía identidade alguma com aquela gente. Pertencia a um país remoto, cujos habitantes eram donos de um talento excepcional. Eles, sim, eram os meus verdadeiros semelhantes. Vi-me ameaçado. Acreditava estar sendo vítima de complô, traição, espionagem, perseguição, envenenamento ou intoxicação com drogas. As pernas começaram a pesar. Cada passada, um passo em falso, que, a muito custo, se transformava em outro, mais falso ainda. De súbito, um clarão intenso. Uma voz, saindo de dentro, ordenou assumir a minha predestinação. O desânimo foi substituído por uma feroz energia, como jamais tinha experimentado. Instantes atrás, eu me sentia carregando o mundo nas costas. Agora, o mundo parecia existir somente para me carregar. Subiu num caixote de madeira e começou a falar. Os vocábulos saíam dele, mas não eram elaborados no cérebro. Existia uma consciência sobre-humana dizendo através da sua boca. E um entusiasmo, com o qual jamais sonhou existir, o contagiou. De repente, se convenceu de que o mundo era a sua platéia e ele, o verdadeiro Messias. Enquanto escutavam, hipnotizados, falou, sem nenhum enquanto, durante quatro horas. As palavras jorravam de sua boca como águas de maré cheia, formando ondas de frases sem nexo, anexadas umas às outras, quebrando numa ressaca de idéias desconexas. Percebeu que aquela gente sentia sede de palavras, mesmo que estas não se traduzissem em qualquer significado coerente. Então, passou a falar cada vez mais rápido. Primeiro, abordando temas de nada, sob a forma de coisa alguma, rica de conteúdo vazio. Em seguida, passou para a crítica literária, que é, de fato, alguma coisa, mas da qual nunca entendeu. Depois, partiu para a filosofia, a hermenêutica, a epistemologia, a egiptologia e até a espeleologia. Discorreu sobre colunas de estalactites brotando do solo das cavernas, e de pingentes estalagtites descendo do teto úmido dos subterrâneos. A platéia, fascinada, escutava em silêncio. Quando terminou, uma explosão de aplausos saudou a falação e foi carregado pela multidão. De súbito, tive um insight: aquelas pessoas que olhavam e escutavam, não tinham visto nem ouvido o orador, e sim, a si próprias, como se estivessem diante de um espelho sonoro… O mesmo teria sucedido com todas as demais que o encaravam desde as primeiras horas do dia… Este que falou por último sou eu mesmo, com quem, de vez em quando, converso. Tudo o quanto ele contou foi verdadeiro… Quando me deixaram só, o sol já tinha apagado e as primeiras estrelas se acendiam. O estacionamento há muito fechara. Então, tomei o meu outro eu pelo braço e, sobrebastando pernas, voltamos para casa a bordejar as ruas da noite. Dentro do meu quarto, me reexamino. E desta vez me assusto. Quem eu vejo não sou eu. A imagem refletida é diferente daquela que sempre foi. Nunca fui tão alto, tão magro, não usei bigodes, não tinha cabelos ruivos, nem aquele nariz aquilino, nem aqueles olhos… enfim, nunca vi, em mim ou em qualquer outra pessoa, aquela figura. Mas era eu, sim. Repugnantemente eu…

Ray Silveira

Nasceu em Massapé (CE). É médico e escritor, autor de Contos a conta-gotas.

Rascunho