Escritor inato

Conto inédito de Fred Linardi
Ilustração: Juliano Soares
01/03/2022

No dia certo, quando enfim decidiu cumprir o plano de escrever um livro, previu que, uma vez por semana, seria interessante quebrar a rotina. Levaria seu caderninho ao parque para escrever à sombra de uma árvore. Ou num café. Talvez na biblioteca municipal, desde que tivesse uma mesa com o mínimo de privacidade. Decidiu pelo café, pois conhecia um bistrô com poltronas estofadas perfeitas para aquela dor na lombar que o atormentava havia dois anos. Lembrou que no mês passado um amigo, também escritor, havia dito sobre o Café Brasileiro, onde Eduardo Galeano tinha uma mesa praticamente cativa, perto da janela. E logo pôde conferir no celular do amigo uma foto em Montevidéu, posando diante da janela de vidro numa calçada do centro da capital sombreada de antiguidade.

Respirou fundo e olhou para a casa. Antes de quebrar qualquer rotina, era ali que faria seu habitat de escritor. Da estante de livros vinha o cheiro que definia como um fetiche, uma fantasia de carreira literária não realizada depois de trinta anos como diretor de departamento financeiro. Começara como um jovem estagiário de engenharia, para ajudar a pagar os estudos, edificando-se com uma assinatura na carteira de trabalho, promoções de cargos e bonificações até acabar de pagar os estudos dos filhos. Construiu sua família e montou sua biblioteca. Agora também tinha cada vez mais tempo para ler e poder ser um pouco mais participativo na roda do clube de escritores, que começou a frequentar neste último ano, antes de pedir a aposentadoria.

Cheirou os livros e, pela primeira vez, se incomodou na própria biblioteca. O ambiente era escuro, mesmo no verão, quando o sol bate enviesado, do lado oposto da escrivaninha-xerife. O melhor para traçar suas linhas seria a pequena mesa perto da janela no canto da sala de estar. A vista pegava metade do muro da casa ao lado e a mesa era simples, de pedra redonda emoldurada com madeira clara. Aquela simplicidade lhe dava um prazer desmembrado entre o orgulho e a autocompaixão. Reviu no seu banco de imagens os lugares de trabalho dos escritores célebres. Virginia Woolf lhe causava aquela sensação da simplicidade como alicerce de um grande gênio. Olhou de novo a foto da sala da grande escritora e se deteve mais uma vez nas bordas carcomidas da mesa. Sorte a de Virginia, que não tinha de lidar com as agruras da tecnologia que o atormentavam havia mais de um mês.

Por isso, no dia seguinte, antes de começar qualquer primeiro parágrafo, achou melhor trocar seu notebook que só fazia travar, especialmente quando entrava naqueles sites que desarranjavam toda a sua navegação com a abertura de janelas e mais janelas lhe pedindo número de cartão de crédito, ou soltavam uma sirene de ameaça de invasão sob um link inseguro. A partir de agora, se houvesse risco de qualquer bloqueio, que fosse apenas o da sua criatividade, e não a porcaria de um computador. Sabia que, no que dependesse da competência como escritor, ele estava garantido. Pois desde que ganhara, aos 17 anos de idade, o concurso de contos promovido pelo Matias de Cássio — o saudoso colunista cultural do finado O Vespertino —, suas motivações não adormeceram com o passar de tantos anos. Ele nunca se furtou de dizer que ganhara o concurso municipal de contos, ou como preferia, de contos de ficção. “Sou engenheiro aposentado, mas escritor também, vencedor do concurso de contos de ficção Matias de Cássio, na categoria escritor local.”

Ao longo deste ano que marcava sua aposentadoria como gestor e a reestreia na escrita, apresentava-se a cada novo colega do clube de escritores rememorando sua titulação. Os amigos antigos replicavam com um entusiasmo desarticulado e, poucas frases depois, encontravam um alinhamento cúmplice de autoria coletiva. Assumiam-se nada surpresos, afinal o intelecto do caro escriba vinha de berço e agora estava apenas à espera de mais uma contribuição a nossa literatura.

Na megastore, que oferecia as melhores condições de garantia estendida, além do notebook, achou por bem comprar um caderno novo. Pegou um vermelho, que vinha com um elástico preto abraçando a capa de couro. O toque artesanal celebrava o ato da escrita e lhe garantia mais dignidade nas quebras de rotina, quando fosse esticar seus punhos no café. Em direção ao caixa, passou pela papelaria e escolheu um lápis B12, de grafite forte o bastante, e uma caneta quatro cores para grifar o livro sobre escrita que havia encontrado na ala sul da mesma loja. Resolveu dar uma chance para aquelas orientações para almejantes escritores.

No terceiro dia, voltou ao shopping. Não parava de pensar na cafeteira de prensa francesa, que faria jus ao Café do Mercado que veio na cesta com sabores do armazém presenteada pelo filho no último aniversário. Antes de fechar a compra, adicionou mais um pacote de cinco quilos de café, pois nunca se sabe, ainda mais num recesso de fim de ano, quando o tempo passa diferente e a dispensa se esvazia em pleno silêncio da ressaca.

No quarto dia, após a ponta do lápis quebrar e ele maldizer a si mesmo por ter se esquecido de comprar um apontador, decidiu abrir o novo livro sobre escrever narrativas de ficção. Leu o índice e se deparou com elementos sobre os quais já havia escutado dos amigos. Não se aquietou. Foi até a papelaria na rua universitária, e voltou para a casa com um apontador de ferro, como aqueles antigos. Neste, a manivela foi substituída pela lâmina giratória, a pilha. Calculou o tanto de linhas que escreveria até o lápis acabar e o número de vezes que o recipiente se encheria de casquinhas de lápis. Certificou-se de avisar Magda que a partir de agora ela deveria incluir nas próximas faxinas o descarte destes resíduos. Aliás, no dia seguinte seria o dia da faxina no térreo da casa, o que lhe dava um certo incômodo, de forma que talvez fosse melhor ele assumir hábitos mais notívagos, tal qual ouviu Jô Soares certa vez num Roda Viva. Lamentou não poder ter aquela mesma rotina do intelectual a quem tanto admirava. Sabia que o gordo puxava o ronco até quase meio-dia e não tinha netos para buscar na escola de vez em quando. O segundo lamento era por ter levado tantos anos para voltar a escrever. Agora ficou muito tarde para um dia sentar-se na poltrona do talk-show e falar sobre seu romance de estreia, este que talvez fosse o único, pois já decidira que sua ambição consistia em alçar voos baixos. Seria alguém de breve bibliografia, como Juan Rulfo.

Sentado ali na mesa de canto, na sala de estar, era só um escritor que apontava seu lápis novo. Aquele ambiente por si só já lhe causava um nostálgico bem-estar. Voltou ao livro sobre técnicas para escritores e leu o prefácio assinado por alguém desconhecido da literatura brasileira contemporânea.

Enroscou na leitura quando Magda veio avisar que estava de saída. O jantar, na panela em cima do fogão. Cinco páginas depois, já à mesa da copa, enquanto tomava o ensopado de carne respingando no guardanapo preso à gola da camisa, comentou com a esposa sobre a leitura recém-iniciada. O livro seria ideal para o sobrinho, que sonhava ser escritor. Esse ainda tinha muito que aprender. Ligou para o motorista, antes que encerrasse o expediente, e mandou levar o livro para o rapaz.

Fred Linardi

Nasceu em Americana (SP), em 1982. É jornalista, escritor, mestre e doutorando em Escrita Criativa pela PUCRS. Seus trabalhos foram contemplados no Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães (2017); no Concurso de Contos Paulo Leminski (2018) e no Prêmio Literário Cidade de Manaus (2019). Autor do livro infantil Biscoitos (2019).

Rascunho