Escalavra

Trecho do romance de Marcelino Freire
Ilustração: Oliver Quinto
01/05/2024


Faz o pai e faz o filho o que ninguém quer fazer, não para por aí o serviço _de montar tijolo nas paredes da fossa quando quebra, a engrenagem do fluxo dos estercos, levar o adubo nas costas erguido para alimentar os bichos da terra de muita bosta, os chorumes do lixo que descem pelos cotovelos, restaurar covas caseiras para o sossego dos mortos _é verdade que mesmo depois de enterrados crescem nos corpos-defuntos unhas e cabelos?
_faz o pai e faz o filho o rejunte de pisos nunca vistos, por eles lustrosos de tão vermelhos _quando se tem dinheiro o proprietário quer assentar com banha de cera a sala de visita, dar brilho na beirada das telhas _para quem mexe com palhas, folhas de cipós de parcas bananeiras, não é mistério subir em cima das cumieiras sem medo de morcegos que dormem de cabeça revirada e cagam tanta sujeira _dinheiro pago em centavos, moedas poucas para tantos remendos nos quintais alheios _por mais que ali nos quilômetros da cidadela não haja ricos quintais, enxovais, instâncias minerais, sempre tem alguém que tem mais grau de condições, agricultores de serragem, mirrados fazendeiros, cabeças de algum gado no pasto irrigado com caminhões particulares de água _sem contar os maquinários que têm chegado para roubar ventania _e há ainda as caixas do professor _é preciso saber do que se trata o tanto de caixa _o pai não gosta nadinha do professor e não gosta de livros, nunca gostou _o tanto de livro que muito pesa espera por eles _amontoados compêndios, dicionários, volumes ilustrados, romances em cordel _será mais de uma tonelada de papel no lombo do filho analfabeto e no lombo do pai carregador


Ilustração: Oliver Quinto

Depois de tantas léguas, aqui e ali uma sombra de pássaro, no céu um barulho de estilhaços do passado, aquela explosão que até hoje reverbera pedaços de pernas, botinas de soldados expulsas no ar, as guerras mais antigas ainda podemos escutar pelo caminho, árduo caminho
até chegar ao miolo da crosta, bate mais sol nos
silicatos de alumínio _o menino gosta da novidade que é a cidadela, embora ela já tenha começado a perder o cheiro que ele guarda da casca de aroeira mansa, da brisa quando descansa da viagem que faz e senta refém para apreciar a cantoria da água que se retém embaixo da raiz do umbuzeiro, um chuveiro subterrâneo _qual o serviço de agora, qual será o encargo sub-humano? _porque os dois retirantes, pai e filho, não têm tempo nem de parar para acompanhar o grande parque eólico se expandir, a cidadela virou uma promessa de progresso _vejam ali _foram adquiridas mais terras, mais hélices para os aerogeradores, os doutores de capacetes calculando os números a céu aberto _quanto mais gente de fora por perto, mais trabalho para os músculos ferros _ei, bora avexe-se _o endereço do patrão que o chamou é mais adiante, um ou outro passante cumprimenta sem desprezo os visitantes _não tem quem não conheça as duas verdadeiras pedreiras-criaturas que são o homem de machado na mão e esse menino, merecedor de nosso apreço, tão esforçado, crescerá ainda mais, ficará da altura daquelas enormes torres de vento _sabe como ninguém sabe sobre o sistema gerador do movimento dos beija-flores


Ilustração: Oliver Quinto


O pai na companhia do filho chega à casa do fiscal de obras, uma casa com porta para bater, sineta para tocar e esperar debaixo do calor, lá dentro tem aparelho de ventilador para refrescar e uma água que vem em copo que depois joga-se fora _o pai leva o copo embora, não descarta qualquer sobra de plástico, garrafa de coca-cola _olha quem está de chegada _e o fiscal de obras bate nas costas do pai, se espanta com o tamanho do filho _varapau _perdeu a mãe muito cedo, coitado, um dia era menino, hoje um combatente, cavaleiro valente, medieval _arregimentado, o pai espera o patrão oferecer uma cadeira _de longe enxerga a geladeira que deixa a vida mais fácil, a luz elétrica e agora aquele futuro energético a olhos vistos _viu os bons ventos que sopram? _e tem gente que não concorda, defende a liberdade dos besouros, ora, bosta, ô, tranqueira, raça de gente ruim que vem ao mundo só para reclamar, arruaçar, tirar o que é nosso, o nosso roçado _o menino emburra toda vez que vai ao palácio do chefe promulgador, bate um cansaço, daqui a pouco a mesma conversa de futebol _gosta de jogar esse potranco, pivete? _está ficando de maior com as pernas tortas _ei, ei _torce por qual time? _eu vou te comprar uma bola _ei, ei _no arranco, enrola a língua, bufa um discurso infindável de político que gosta de falar bonito, de dar conselho, um alerta, um aviso _tenho uma notícia boa, aquele professor finalmente, desta vez morreu, num pó de giz desapareceu, se apagou _e volta a bater nas costas do pai, procura a cabeça do filho para ciscar feito um papa, um padre, um sacerdote costuma ciscar as mãos por cima e o menino, já posto na janela, avista a menina que outro dia viu passar, sem coragem pobre de olhar, baixou o olho _a imagem ficou tremida, arrepiou _não dê confiança para essa garota, qualquer hora vai se perder, ela e a avó dela, uma trepeça, nenhuma presta _o fiscal de obras explica que na casa que o professor abandonou, foi reparar _um chão que afundou, uma parede caída precisa ajeitar e não para de chegar livro apreendido, vai tudo então para lá _segundo ele um presídio de palavras perigosas, algumas páginas é preciso queimar, talvez guardar, muita coisa jogar fora, será feita uma varredura fina _eu passarei um olho ligeiro _preciso conversar uma coisinha com seu pai, por que seu filho não vai um pouco para a rua, sai para admirar as engenhocas de nossa energia limpa? _quem se diz revolucionário não enxerga essa verdadeira evolução eólica, ecológica _nada está bom para essa tropa de beneficiado do governo _daqui a dois anos o nosso povoado vai se tornar independente, vai ter um prefeito _vou lançar minha candidatura a favor da pátria e do meio ambiente, a grande luta será contra qualquer futuro comunista dirigente



As turbinas eólicas, comedoras de gavião, de fato não deixavam de impressionar _já eram quase dez, um, dois, seis os dedos da mão do menino pensando, arquitetando guardar desde já, em caixas secretas, o pulmão das cavernas, ir ao topo da rocha gritar feito um beduíno faz para espalhar a voz no deserto, a respiração que de repente parou quando a menina que ele avistou chegou-se mais perto

NOTA
O romance Escalavra, cujos capítulos Marcelino Freire denomina de “blocos”, será lançado no segundo semestre pela Amarcord. O título do livro, extraído de um poema de Max Nunes, vem do verbo “escalavrar”, que quer dizer esfolar, limar, roçar, deixar em carne viva. Freire diz que Escalavra é um “romance megalítico”, daí a estrutura da linguagem, centralizada, de alguma forma simular os antigos monumentos feitos pela junção de pedras gigantes, “é a história, quase uma pré-história, de um pai, de um filho, e do silêncio sepulcral entre eles”.

Marcelino Freire

Nasceu em 1967 em Sertânia (PE). Escreveu, entre outros livros, Contos negreiros (Prêmio Jabuti 2006) e o romance Nossos ossos (Prêmio Machado de Assis 2013). É criador da Balada Literária, um dos principais eventos literários do país.

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