Epigramas

Marcial é considerado “o pai do epigrama”
Ilustração: FP Rodrigues
12/04/2016

Apresentação e tradução: Rodrigo Garcia Lopes

Marcus Valerius Martialis (Bílbilis, Espanha, 38 d.C.—90 d.C. aproximadamente) passou a maior parte da vida em Roma, então no auge de seu poder. Embora Marcial seja considerado “o pai do epigrama”, a origem do gênero é grega e bem anterior a ele: epigramma significa inscrição e vem de epigraphein (“escrever sobre”, epígrafe). Chamavam-se epigramas as inscrições em lápides, estátuas, copos, medalhas e outros objetos, na forma de epitáfios, oferendas votivas, dedicatórias, sentenças. No processo de saltar do objeto para o papiro e para o livro, o epigrama foi perdendo sua função utilitária e adquirindo status literário. Então chegou Marcial, que acabou reinventando e estabelecendo o epigrama moderno, tal como conhecemos hoje, tornando-se um modelo para outros autores através dos tempos: um poema curto, satírico e de final picante, geralmente com uma corrosiva crítica social e de costumes. Sua obra é extensa. São 15 livros de poesia, publicados num período de 18 anos (de 80 a 98 d.C.), contabilizando cerca de 1.561 epigramas. Se há alguma musa em sua poesia, ela se chama Roma: é da cidade que ele tira sua matéria-prima. Como um dublê de poeta-humorista-colunista-cronista social — munido de uma câmera portátil e verbal, o epigrama — ele nos convida a “espiar” os espaços públicos e privados de Roma no século 1 em todas as suas contradições: sua opulência e sua miséria. No prefácio do Livro 1 Marcial defendia o “realismo” de sua linguagem, a “verdade lasciva das palavras” (lasciva verborum veritas), situando-a dentro da tradição satírica da poesia romana de Catulo, Marso, Pedão e Getúlico. Marcial recomendava aos seus leitores romanos que se deixasse a seriedade excessiva de lado, e que seus epigramas fossem lidos ou declamados de noite, com bons vinhos, comida e na companhia de amigos. Se ele acabou sendo obscurecido por outros autores clássicos por sua obscenidade, mais um motivo para que Marcial seja resgatado para os leitores de hoje, quase 2.000 anos depois. As traduções publicadas pelo Rascunho integram o livro Epigramas, a ser publicado pela Ateliê neste ano, em edição bilíngue.

I, I
Você já leu, pediu, aqui está ele:
Marcial, famoso em todo o mundo
por seus argutos livrinhos de epigramas:
Leitor fã, você lhe deu em vida
a glória que a uns poetas é concedida
apenas quando viram cinzas.

Hic est quem legis ille, quem requiris,
toto notus in orbe Martialis[1]
argutis epigrammaton libellis:
cui, lector studiose, quod dedisti
viventi decus atque sentienti,
rari post cineres habent poetae.

…..

VI, LXXXII
Agora mesmo, Rufo, um sujeito me examinou,
parecendo comprador de escravos ou treinador,
me encarou, apontando o dedo pra mim:
“É você, não é?, aquele Marcial,
cujas piadas sacanas todos conhecem
e só um batavo não entende patavina? ”
Sem graça, sorri, com um aceno admiti.
“Então por que usa essa merda de capa? ”
Respondi: “Vai ver sou um poeta de merda”.
Pra que isso nunca se repita com o poeta,
Rufo, me mande uma capa bonita.

Quidam me modo, Rufe,[2] diligenter
inspectum, velut emptor aut lanista,
cum vultu digitoque subnotasset,
“tune es, tune” ait ‘ille Martialis,
cuius nequitias iocosque novit
aurem qui modo non habet Batavam?”[3]
subrisi modice, levique nutu
me quem dixerat esse non negavi.
“cur ergo” inquis “habes malas lacernas[4]?”
respondi: “quia sum malus poeta”.
hoc ne saepius accidat poetae,
mittas, Rufe, mihi bonas lacernas.

…..

XII, LXI
Tem medo que eu faça, Ligurra,
um poema falando mal de você
e quer parecer digno do medo.
Seu medo é vão, e vão o seu desejo.
Leões líbios rugem para os touros,
não fazem mal às borboletas.
Se quer ter seu nome mencionado
procure num puteiro um poeta bebum
que escreva com giz ou carvão
enquanto caga um tolete.
Sua testa não merece meu ferrete.

Versus et breve vividumque carmen
in te ne faciam times, Ligurra,
et dignus cupis hoc metu videri.
sed frustra metuis cupisque frustra.
in tauros Libyci ruunt leones,[5]
non sunt papilionibus molesti.
quaeras censeo, si legi laboras,
nigri fornicis ebrium poetam,
qui carbone[6] rudi putrique creta
scribit carmina quae legunt cacantes.
frons haec stigmate[7] non meo notanda est.

Ilustração: FP Rodrigues

XI, LXIII
Espia a gente no banho, Filomuso,
e fica perguntando por que meus escravos
têm caralhos tão grandiosos.
Vou te dar uma resposta simples:
Eles comem o cu dos curiosos.

Spectas nos, Philomuse, cum lavamur,
et quare mihi tam mutuniati
sint leves pueri subinde quaeris.
dicam simpliciter tibi roganti:
pedicant, Philomuse, curiosos.[8]

…..

VII, LXVII
Fílenis machorra enraba garotinhos e,
mais selvagem que um marido tarado,
fode por dia onze menininhas.
Põe o calção e sai pra jogar bola,
depois da luta, amarela de pó, levanta fácil
um halteres pesado até pra um atleta.
Toda imunda do chão do ginásio
recebe uns tapas do oleoso massagista.
Ela não janta nem senta pra comer
sem antes vomitar seis copos de vinho
e percebe que é hora de repetir a dose
depois de traçar uns dezesseis bolinhos.
De novo com tesão, não faz boquete
(acha que isso é coisa de viado)
e sim devora a racha das meninas.
Fílenis, que os deuses te deem cabeça,
se acha coisa de macho chupar buceta.

Pedicat pueros tribas Philaenis
et tentigine saevior mariti
undenas dolat in die puellas.
harpasto[9] quoque subligata ludit
et flavescit haphe, gravesque draucis
halteras facili rotat lacerto,
et putri lutulenta de palaestra
uncti verbere vapulat magistri:
nec cenat prius aut recumbit ante
quam septem vomuit meros deunces;
ad quos fas sibi tunc putat redire,
cum coloephia sedecim comedit.
post haec omnia cum libidinatur,
non fellat (putat hoc parum virile),
sed plane medias vorat puellas.
di mentem tibi dent tuam, Philaeni,
cunnum lingere quae putas virile.

…..

X, CII
Você quer saber como Fileno,
que nunca fodeu, virou papai?
Pergunta pro Gaditano, Avito:
Ele não escreve nada e é poeta.

Qua factus ratione sit requiris,
qui numquam futuit, pater Philinus?
Gaditanus, Avite,[10] dicat istud,
qui scribit nihil et tamen poeta est.

…..

IV, LXXXVII
Um bebê, Fábulo, sua mulher carrega
por onde vai, é só gugu-dadá.
Que eu saiba, a Bassa não é babá.
Então por quê? Adora peidar.

Infantem secum semper tua Bassa, Fabulle,
collocat et lusus deliciasque vocat,
et, quo mireris magis, infantaria non est.
ergo quid in causa est? pedere Bassa solet.

Ilustração: FP Rodrigues

V, XXXIV
Entrego a ti, Frontão meu pai, e minha mãe Flacilla,
esta criança, Erócion, delícia e luz da minha vida.
Que ela não tema as trevas do inferno
nem a bocarra monstruosa de Cérbero.
Seria este o frio do sexto inverno
se ela tivesse vivido mais seis dias.
Que ela agora brinque entre seus protetores
e com voz gaguejante murmure meu nome.
Não pese em seus ossos, ó terra,
ela que pisou tão leve em ti.

Hanc tibi, Fronto[11] pater, genetrix Flaccilla,[12] puellam
oscula commendo deliciasque meas,
parvola ne nigras horrescat Erotion[13] umbras
oraque Tartarei[14] prodigiosa canis.
impletura fuit sextae modo frigora brumae,
vixisset totidem ni minus illa dies.
inter iam veteres ludat lasciva patronos
et nomen blaeso garriat ore meum.
mollia non rigidus caespes tegat ossa, nec illi,
terra,[15] gravis fueris: non fuit illa tibi.

Ilustração: FP Rodrigues

III, XXXVII
Seus amigos ricos são rápidos na ofensa.
Nada chique, mas a economia compensa.

Irasci tantum felices nostis amici.
non belle facitis, sed iuvat hoc: facite.

…..

 

XII, LXXXVI
Trinta meninos e meninas dando sopa
mas o pau não para em pé. E agora, José?

Triginta tibi sunt pueri totidemque puellae:
una est nec surgit mentula. quid facies?

…..

VI, XV
Na sombra do pinheiro uma formiga
ficou presa numa gota de resina.
Se em vida não valia muita coisa
seu funeral a faz linda e preciosa.

Dum Phaethontea[16] formica vagatur in umbra,
inplicuit tenuem sucina gutta feram.
sic modo quae fuerat vita contempta manente,
funeribus facta est nunc pretiosa suis.

O tradutor
Rodrigo Garcia Lopes
É autor de Experiências extraordinárias (2014) e do romance policial O trovador (2014), entre outros. Site www.rgarcialopes.wix.com/site. Vive em Florianópolis (SC).

notas

[1] Quando Marcial publicou o Livro 1 dos epigramas (aprox. 86 d. C.) era já bastante conhecido em Roma e fora dela, com três livros publicados: De Spetaculis, Xenia e Apophoreta. Já tinha, portanto, uma legião de entusiastas e estudiosos (segundo o poeta).

[2] Rufo: um dos patronos de Marcial.

[3] Batavos: tribo bárbara que habitava a Batávia (atual Holanda). Sendo estrangeiros e bárbaros, com certeza não entenderiam os poemas-piadas de Marcial.

[4] Lacerna: tipo de capa.

[5] Líbia: um dos lugares de onde vinham os leões, geralmente de cor escura, utilizados nos espetáculos do circo romano. O ferrete é o instrumento de ferro para marcar animais. Para Marcial, Ligurra não é digno sequer de ser insultado em seus epigramas.

[6] Referência às inscrições anônimas de banheiros, algo como os contemporâneos grafites e pichações.

[7] Estigmata: carimbo, ferro de marcar gado, ferrete.

[8] Estátuas de Príapo e seu pau gigante eram colocadas pelos donos nos jardins das casas para prevenir furtos e ameaçar que o ladrão seria sodomizado (estuprado), caso os roubassem.

[9] Harpasto: jogo com bola parecido com o rugby, uma das práticas desportivas comuns nas termas, ao lado de outras como luta-livre, levantamento de halteres (masculino), box (com um mestre, magistris), esgrima, e vários jogos com bolas.

[10] Avito: o poeta se dirige a Lucius Stertinius Avito, seu amigo e patrono.

[11] Fronto: Frontão, pai de Marcial.

[12] Flacilla: mãe de Marcial.

[13] Erócion: ou “pequena Eros”, escrava de Marcial, a quem é dedicada essa elegia.

[14] Tartarei canis: Cão do Tártaro, i.e., o cão do Inferno, Cerberus (três cabeças).

[15] Alusão à conhecida inscrição em lápides: S.T.T.L, ou Sit tibi terra levis (“Quer a terra lhe seja leve”).

[16] Faéton: M. retoma o tema de outro epigrama (IV, XXXII), substituindo a abelha do primeiro pela formiga. Ovídio, em As Metamorfoses, descreve como as irmãs de Faéton foram transformadas na árvore choupo e suas lágrimas transformadas na seiva com âmbar. Âmbar com insetos preservados em seu interior eram mais valiosos.

 

Marco Valério Marcial
Rascunho