Prólogo
Engasgo.
Quando eu engasgo, eu choro pelo olho direito.
Esse sonho eu tenho que contar:
Acordo numa cama de hospital com uma ferida na cabeça.
Sento e olho em torno tentando reconhecer alguém.
Levanto e percebo que tenho que sair dali sem ser notada.
Já na rua ando por uma calçada muito larga, parece que estou no bairro onde cresci.
Um homem muito grande e forte com cara de mau diz que não posso andar daquele lado da rua.
Fala que pertence a alguém que eu deveria conhecer.
Atravesso sem olhar para os dois lados pensando que deve ser um novo tipo de roubo.
Através da intimidação sinto um medo absurdo. Muito medo.
Do outro lado também há um guardião do pedaço só que ele é quase uma criança.
É um menino magro.
Tento desviar dele e acabo entrando num labirinto.
Ele me segue rindo.
No final do labirinto tem uma porta fechada.
Tenho que retornar.
Os dois me esperam.
Riem.
Me levam para dentro de uma casa, um galpão onde acontece uma festa.
Continuo com a mesma preocupação de encontrar alguém que eu conheça.
Sem que ninguém fale nada, entendo que preciso participar da farsa.
Tento não chamar atenção para mim.
Em um momento em que as pessoas estão distraídas com um tipo de telão na parede, aproveito para agarrar pela cintura uma mulher que, na simulação deles, é minha mãe, só que ela é jovem e bonita.
Ela usa um vestido vermelho.
Eu a agarro pelas costas, segurando a sua cintura e a deito no meu ombro esquerdo.
Bato a cabeça dela com muita força, atrás de mim.
Ninguém percebe o que acabou de acontecer.
Continuo festejando com o grupo quando algumas pessoas notam o corpo dela caído, eu finjo que estou horrorizada também.
Mas ela não morreu.
Ela abre os olhos e olha pra mim.
Ela sangra.
Ela senta no chão e aponta na minha direção.
Homens vêm andando para o meu lado.
Um deles tem uma cadeira na mão esquerda.
Fecho os olhos para não sentir o golpe.
Acordo no mesmo hospital.
Passo a mão na cabeça que está ferida.
Sinto o sangue.
Engasgo.
Capricho na data ao usar a primeira folha do diário.
Mamãe mandou entregar em casa. Com papel de presente e tudo.
O médico disse que seria bom se eu pudesse escrever. Registrar impressões, sonhos, lembranças, tudo que quiser. Mamãe se sentiu culpada. Finge que ajuda, que se preocupa.
Estou no metrô.
Ele sorri pra mim.
“Olá! Desculpe! Pensei que fosse outra pessoa…”
Ele falou comigo assim: “outra pessoa…”
Não consigo nem ser esta, como teria condições de ser outra?
O livrinho diz: “apaixone-se por você”. Eu não me interesso por mim. Não me sirvo de paixão. Busco a paixão do outro.
O médico disse para ser aleatória.
“versos e prosas”
Pela primeira vez Felipe entra no quarto de Laura.
Essa é a primeira página do seu diário.
Laura está deitada com a barriga pra baixo, virada para o lado direito. Esquerdo para quem olha. A mão esquerda repousa próxima ao rosto e a direita está oculta, sob seu tronco. Suas pernas formam o número quatro ao contrário. Se olharmos rapidamente, podemos dizer que ela está dormindo, mas Felipe sabe que Laura está morta.
Do lado direito, no chão, há um montinho de roupas. Em cima, o vestido vermelho. Cuidadosamente dobrado. Como alguém que prepara a roupa que vai usar no dia seguinte.
Abaixa a cabeça e fecha os olhos.
Parte 1
Ela quer repetir todos os movimentos do dia anterior.
Faz o sinal da cruz de forma mecânica.
Não acredita que está protegida mas não sai da cama sem ele.
Senta na beirada da cama e encara o vestido vermelho. Esperava ter mais sorte com ele. Pisa no vestido e vai descalça para o banheiro. Se ainda morasse com a mãe seria reprimida.
No banheiro, olha para o pequeno e redondo espelho que gira em várias direções. Analisa a mancha vermelha dentro do lábio inferior. Foi um ótimo tombo. Se o óculos tivesse quebrado poderia ter ficado cega desse olho, o médico disse.
Laura mora em um pequeno apartamento no centro comprado por sua mãe. Se nos esforçarmos um pouco podemos visualizá-la recolhendo as roupas do chão e colocando na máquina de lavar. Vai acumulando durante a semana e no sábado lava tudo de uma vez só. Mistura brancas e coloridas. Roupa de baixo com roupa de cima. Faz isso só para irritar sua mãe.
Se diverte com as pequenas tarefas domésticas. Brinca de casinha.
Passa o fio dental, escova todos os dentes, fio dental de novo. Sempre que tem dentista ela capricha na escovação. Não gosta de levar bronca. Seu dentista fala com ela usando timbre infantil. Repreende sua higiene bucal. Sempre. Nunca acerta.
Ela não ganha a cartela de adesivos que ele oferece às crianças após o pequeno martírio. Ela diz que ele deveria oferecer balas e chicletes para garantir o próximo cliente. Ele ri alto e diz: “ai, Laura, só você mesmo.” Ela repara nos seus dentes limpos e brancos. Ele não deve comer nada. Acho que passa o dia escovando os dentes.
Pára na cozinha, abre a geladeira em busca do café da manhã. Sente dor nas costas. O tombo foi feio. Não quer ir ao médico, mas se a mãe souber vai obrigá-la.
Mamãe vai saber. Ela sempre sabe.
Não tem nada na geladeira que lhe convença a sujar mais pratos, copos e talheres. Mesmo que quisesse sujar teria que lavar um primeiro, porque estão todos dentro da pia. Toma somente um pouco de água direto da jarra. Assim não precisa escovar os dentes de novo.
Sai e pára na porta do elevador. Volta. Decidiu levar uma blusa.
Já tentou contar quantos passos dá de sua casa ao metrô, mas nunca chega ao fim. Sempre lembra de alguma coisa que a distrai. Dessa vez foi uma propaganda que está passando muito na tv.
No comercial, que oferece produtos de limpeza como drinques (2 em 1), você limpa toda a sua casa e no final da faxina, coloca os pés na mesinha da sala e degusta o saboroso frescor de Limpex. Aquele que limpa por dentro e por fora.
Essa lembrança lhe traz outra. Na infância. Quando se trancava no banheiro e simulava formas de suicídio. Agora não vai mais brincar. Quer fazer pra valer. Acabar de vez com a brincadeira. Cansou. É a dona da bola. Não vai mais jogar.
Mas hoje não.
Ela ainda quer ver mais umas vezes o belo rapaz do metrô. Há dias que ela o vem perseguindo. Estuda horários e vagões. Está seguindo seus passos. Até previsão do tempo ela começou a acompanhar. Ele é lindo. Ela se vê dando gritinhos, agitando as mãos para cima.
Parece galã de novela.
Parece não, ele é um galã de novela.
Chegou ao metrô sem saber quantos passos levou…
É no metrô que Laura escreve. Conselho de seu médico. Como ela se recusou a fazer terapia, ele pediu que ela escrevesse. Mamãe comprou os cadernos e mandou entregar em casa. Embrulhados pra presente.
Durante as quatro estações que precisa percorrer, de segunda a sexta, para ir e voltar do trabalho, Laura escreve.
Escreve melhor quando ele está no mesmo vagão. Escreve para que ele a observe e fique curioso em relação a ela, é um jeito de chamar a sua atenção, agradar ao médico e a mamãe.
“nada no bolso ou nas mãos”
quando a vida pára você precisa andar
Não me sinto doente
Sofro de ausência
Às vezes, preciso esquecer de mim.
nos dias que não quero falar também não faço questão de escutar…
próxima estação
costureira na boca das crianças
palavras que saíram da tua boca
grita no metrô
ela grita no metrô
ela fala de tudo um pouco
ela cospe no chão sem pedir desculpas
mochila na janela
no vão do museu
não vai parar, não vai mudar
e eu aleatória
aleatoriamente “em versos e bocas”
“o que não tem sossego nem nunca terá”
finda a estação
finda a linha
consolação
Inventou um novo horóscopo baseado no tal rapaz que ela espera encontrar no metrô.
Se ele chega correndo, se está vestido de verde, azul ou branco, se está de mochila ou mala e se usa seu fone de ouvido ou não.
Faz previsões a partir dele.
Laura fantasia sua vida inteira.
Mentalmente escreve um roteiro para que ele atue.
Ela como mocinha.
Ele, seu herói.
Sua supervisora seria a vilã e sua mãe a sua mãe mesmo.
Ela não sabe ler os sinais. Não tem intuição.
Seus sentidos são péssimos. Todos. Enxerga mal. Tem dificuldade para ouvir. Não diferencia odores e sua supervisora disse que seu paladar é pobre.
Mulher sem sentidos. Ri do que poderia ser o título dessa história que, como já sabemos, não termina bem.
A vida nunca acaba bem.
A vida sempre acaba.
No escritório o tempo passa como no cinema. Vê cenas acelerarem enquanto tem cinco textos enormes para datilografar. Seu almoço é em câmera lenta porque ela come muito rápido e fica sentada num sofá de dois lugares em frente a uma pequena televisão. Há também uma mesinha ao lado do sofá onde sempre encontra café, chá e água fresca. “Água fresca”, fala alto, sozinha.
Pequenos estalos com a boca. Criança.
De volta a sua sala de trabalho percebemos que ela não está sozinha. Tem outras moças que trabalham com ela. São sessenta e quatro ao todo. Mais a encarregada que tem uma pequena sala no fim do corredor.
Eu me sento por um minuto ao lado da nossa protagonista. Sinto falta de um pouco de Limpex para beber.
O escritório em que ela trabalha é responsável por datilografar todos os manuscritos que são feitos no edifício. É uma forma limpa e correta de permitir que todos os textos sejam legíveis. Algumas pessoas têm letras codificadas. É aí que nossas meninas entram.
Todos os textos uniformes.
A letra bem preta sobre o papel bem branco. Quanto ao conteúdo? Não nos importa o conteúdo. Produzimos textos limpos e escritos na forma correta.
No final do expediente, um imenso relógio branco colocado acima da sala da supervisora informa que é hora de ir pra casa.
De segunda a quinta, todos devem se dirigir para casa mas na sexta, obrigatoriamente, devem participar de alguma forma de diversão com os colegas de trabalho. Beber, dançar, ir ao cinema, teatro ou show.
Está no regulamento. É simples e funciona.
Quem desobedece recebe uma advertência. A cada três advertências o indivíduo recebe uma punição. Pode ficar uma, duas ou até três rodadas sem jogar. Pode passar todos os seus pontos para o adversário a sua direita, ter que prestar serviços voluntários para o jogador à esquerda ou mudar de grupo.
Tudo é julgado por um grupo de seres superiores que decidem as regras e as punições. Tudo funciona perfeitamente.
Laura pega sua bolsa, se vira para o corredor e esbarra numa colega.
A moça pronuncia as palavras de uma forma muito rápida que ela não tem tempo de ordená-las. Sorri e concorda com a cabeça.
No dia seguinte, em grupo, se preparando para entrar no escritório, Laura entendeu que se tratava de um passeio que fariam à praia no fim de semana.
Há dois meses evitava compromissos sociais e isso lhe geraria mais uma advertência. No novo sistema, se você afirma um compromisso você tem que cumprir. Principal regra da boa convivência.
Mamãe e papai estão na cozinha. Sinto o cheiro do pão queimando. Levanto e procuro algo na escrivaninha. Dois pacotinhos pequenos me aguardam. Abro e descubro um saquinho de balas de goma e que vêm acompanhadas de um pozinho colorido. Juntos, na boca, explodem.
Passo pela porta de minhas irmãs e agradeço em silêncio. Sempre que elas saem de casa eu peço: “me traz uma coisa?”. Elas perguntam “o quê?”.
“Uma surpresa” — sempre respondo.
Tem dias que elas não trazem nada, dizem que é uma surpresa também.
Pego meus brindes e guardo na mala da escola. Sou uma criança obediente. Sei que não devo comer doces antes do café da manhã. Não conto as madrugadas que procuro uma lata de leite em pó que mamãe guarda na prateleira mais alta do guarda-comida.
Refazendo o percurso ao voltar para casa Laura sempre se irrita. O metrô é lotado, ela não pode escrever nem observar o comportamento das pessoas.
Volta vazia. Não há nada para preencher seu caderninho.
Ao chegar em casa, deita e dorme sem trocar de roupa. Hoje não queria parar. Gostaria de produzir o tempo todo.
Nunca sonha. Só tem pesadelos.
Acorda de madrugada, passa a limpo o texto que escreveu no metrô:
Não posso cair da cadeira hoje.
Hoje não tem biscoito da sorte
Fechado para balanço
Fechado por motivo de luto
Hoje? Só amanhã
Tem mas acabou
É o que temos pra hoje
Mais tarde talvez
Não há previsão de lançamento
Ela veio mas você não estava
Não deixou recado
As notícias não são boas
A gente combina
Fica pra outra semana
Então não, a próxima, a outra
Foi melhor assim
Não é um bom sinal
Passe amanhã
Amanhã
Passa na banca e adquire o Novo Manual de Conduta:
– Não acreditar no livro que lê
– Não ouvir a conversa dos vizinhos
– Esperar o elevador sem sorrir
– Não escrever pensamentos aleatórios
– Não brincar de roleta russa
– Não desviar a atenção do motorista
– Não cantar, assoviar ou batucar nos transportes coletivos
– Não concordar com a cabeça
– Favor emitir opinião
– Não desviar os olhos
– Nunca pronunciar a palavra nunca
– Não desembarcar na estação errada
– Não errar o destino
– Não chegar cedo nem tarde demais
– Não manifestar interesse
– Não esperar pelo próximo
– Não se alimentar do outro
– Nada de cuspir orelhas na sala de jantar
O bebê cai do seu abraço. Era falso. Ela usava um boneco embrulhado para garantir os melhores lugares no metrô.
Aquele senhor bondoso que me segue se abaixou e pegou o bebê.
Entregou em silêncio. Algumas coisas é melhor não comentar.
Como aquele dia que não corri para entrar no metrô e vi um cara se jogar no trilho. Não tive reação. Fiquei ali olhando. As pessoas entrando na minha frente e me impedindo de ver o corpo.
Algumas saíram em busca de socorro, outras ampararam quem estava por perto e tiveram crises de pânico, choro e/ou riso.
Eu, imóvel. Visualizei de longe o corpo amassado, desossado. Partes despedaçadas.
Eles vieram e evacuaram a estação. Organizaram filas por ordem de tamanho. Na ausência de anões e crianças fui uma das primeiras.
Nos conduziram em direção a saída. Antes disso, assinamos um termo dizendo que não comentaríamos, lembraríamos ou divulgaríamos aquele fato. Ainda bem que tenho facilidade para esquecer.
Cheguei à rua e não reconheci meu bairro. Atordoada. Uma senhora percebeu minha confusão e me apontou a direção correta. Nessas horas eu entendo a necessidade em usarmos crachás que nos identificam: nome, telefone, endereço residencial e comercial.
Ninguém se perde.
Mesmo com crises constantes de ausência, eu sempre chego em casa.
Há alguns anos nossos dirigentes vêm treinando cidadãos que tenham capacidade para ajudar aos outros em situações que envolvam choque emocional, grandes sustos, crises de soluços e outros.
O governo, todos os anos, faz um mapeamento dos mal-estares que ocorrem de forma individual ou em grupo. Estudos anuais sobre o comportamento diante de suicídios, passeatas, festas folclóricas ou pequenos passeios do fim de semana. Tais ajudantes não precisam necessariamente de uma licença para tomar conta da vida dos outros. Agem apenas em situações onde os despreparados não conseguem agir.
Foi o caso de Laura diante do suicida no metrô.
Ela requisitou dez dias de folga e foi prontamente atendida. Sua empresa reconhece que o funcionário precisa se sentir bem física e emocionalmente para produzir mais e melhor. No primeiro dia da licença esqueceu que tinha feito uma promessa de nunca mais ir ao cinema. Justamente nesse dia estava acontecendo uma convenção dos entendidos de filmes extensos e incompreensíveis.
A bilheteira sorriu ironicamente como se tentasse enviar-lhe um sinal, mas Laura não entendeu.
Entrou na sala e as saídas foram bloqueadas após o início da sessão.
A cada quinze minutos de projeção do filme, a sessão era interrompida pelos grandes experts entendedores de cinema. Na cadeira, Laura não agüentou a segunda intervenção do grupo. Suas pernas começaram a tremer, sentiu seus olhos gelarem e ao passar a mão pelo cabelo sentiu que estava tendo uma crise de irritação profunda porque seus cabelos estavam caindo. Se não agisse rápido ficaria completamente careca nos próximos minutos.
Fingiu um desmaio. Alguém do seu lado a socorreria, tinha certeza. Sempre tem alguém tomando conta da sua vida. Não falhava nunca.
Mesmo com medo de ser advertida por fingir uma “perda momentânea” dos sentidos ela preferia uma advertência a suportar aquela tortura.
Passou os nove dias restantes de sua folga internada no hospital.