Matemática nunca me entusiasmou, mas agora fiquei chocado: algum maluco resolveu contar os números fracionários. Se tomarmos todos os números com quantas casas decimais quisermos, teremos infinitos deles, claro. Mas em qualquer intervalo temos infinitos também: conte quantos existem entre 3,1765 e 3,1766, por exemplo. Aí o sujeito se perguntou o quanto o intervalo entre zero e um é “menos infinito” do que o conjunto dos reais (que tem tudo, menos as raízes). E descobriu que tem tantos números entre zero e um quanto em todo o conjunto. Quer dizer: se contarmos todos os números entre zero e um (incluindo meio, 0,1 ou 0,67) e todos de todos possíveis (incluindo os anteriores e mais -1000 e 7 e 546782828273745,8572934857234 e qualquer outro que pudermos imaginar), descobrimos que nestes dois conjuntos há a mesma quantidade de números.
Minha mente não chega a tudo isso. Se não consigo nem cozinhar receitas com mais de quatro ingredientes, não é “Cardinalidade de Conjuntos Infinitos” que vai na boa. Mesmo que seja lendo essa revista de divulgação científica feita para crianças e analfabetos funcionais. Meu tio Dirceu percebe meu ar de dificuldade, identifica o título da revista, enrola um jornal nas mãos e, sem falar nada, me dá uma jornalada na cabeça, usando o caderno de imóveis. — Vai estudar, cacete. — Minha mãe vê de longe o que acontece, mas não liga. Ela sabe que, apesar do meu herói ser o outro tio, o pescador-barra-livreiro, esse aí, formado no ITA, me conquistou ainda na infância, sempre brincando e me sacaneando quando podia. Com a minha cabeça encolhida nos ombros, percebo um cadarço desamarrado no sapato dele e o desejo de vingança torna-se um plano imediatamente.
Não vai ser difícil arranjar oportunidade nessa bagunça. A família inteira está aqui no aniversário da vó, os três filhos e famílias, incluindo dois bisnetos, mais alguns tios-avôs. Vinte pessoas. É como se a humanidade inteira estivesse reunida: nós somos esse intervalo de um a zero que tudo contém, que tem tanto quanto o conjunto inteiro.
Ninguém aqui tem a mesma idade, já perguntei. O resultado é que todos estamos mais ou menos sozinhos, não conseguimos fazer blocos naturais ou panelinhas, e somos obrigados a sair de nossas conchas, nossas moradas individuais, ou então fazer como um primo, que fica num canto com ar irritado de obrigação indesejada. A maioria se alegra, contudo: um tio-avô se diverte com o mais novo da família, que saiu das fraldas há pouco tempo. Brincam de contar: “Um, dois” e “Três, quatro”. A dona da casa, tia Clara, anuncia orgulhosa e sorridente que a sobremesa será o original e exótico manjar de amoras e maracujá, disputado a tapas. É o que sempre servem nas datas importantes, nem precisava anunciar: se fosse outra coisa, acho que ninguém viria.
— Dezenove! — berra o caçula da família, estragando a seqüência.
Tio Dirceu se distrai um pouco conversando com um cunhado, ambos com cervejas nas mãos. Me esgueiro por trás da mesa de jantar e com alguma dificuldade entro debaixo dela, chegando no pé esquerdo do meu tio. Tomo muito cuidado para não gargalhar enquanto lentamente dou o nó nos cadarços dos dois pés. Um priminho me vê e faz cara de curioso. Apenas ponho o dedo entre os lábios, como quem faz um chhhhh de silêncio, sorrio e ele entende a piada e dá uma risada.
— Dois, dois, dois! — O tio-avô então devolve:
— Gosta do dois, não é? E quanto é dois mais dois?
— Cinco!
— Não, não. É quatro.
Esse tio-avô quer ganhar uma discussão com uma criança, o que é impossível. Deve estar velho: paciente demais, muito apegado a regras e hábitos, não consegue fazer concessões e não desiste.
— Cinco! Cinco!
Chamada para as mesas, comida pronta sendo servida. Penso nos outros. Todo mundo aqui é ou quer ser alguma coisa de verdade: médico, engenheiro, lojista, dono de restaurante. Até ser aposentado parece real, até as crianças sonham em ser astronautas ou banqueiros, enquanto esse meu curso não me empolga, não me diz nada. Me sinto o rabinho da vírgula decimal, um espaço insignificante entre um milionésimo e outro. Ou entre um bilionésimo e outro. Ou trilionésimo, sei lá.
Meu tio Dirceu, engenheiro orgulhoso formado no ITA, se vira e tenta dar um passo, mas um dos pés não se move (surpresa!) e ele despenca rodando por cima da sua cunhada, que vai ao chão numa chuva de guardanapos. Ambos tentam disfarçar as mãos dele apoiadas nos seios dela. A velha matriarca se emputece com uma explosão vulcânica e todos silenciam, escutando tensos o esporro interminável de uma voz poderosa, que não parece sair daquele corpinho frágil. Demora tanto que a comida esfriou um pouco quando sentamos. Ninguém me dedura, meu tio só me olha de esguelha, adivinhando sem ter provas ou testemunha. Se tivesse, eu estava morto. Minha avó é um bicho ruim, malvada mesmo. Estranho que a família inteira ame essa velha.
Almoçamos, os pratos são levados e então há um suspense pela chegada da sobremesa. A dona da casa vem da cozinha lentamente com um sorriso satisfeito, mas desatenta, no centro das atenções, tropeça no tapete e o enorme pote vai ao chão, quebrando-se em vários pedaços e esparramando o manjar por todo o lado, desde a sala até a porta do banheiro. Ainda existem cacos repicando quando ela se levanta, e antes que alguém possa esboçar uma reação, fosse uma risada ou um “que pena”, seu rosto se torce, sem susto, mas com uma decepção enorme, um desespero que a toma inteira, começando a lacrimejar, gaguejando algumas sílabas perdidas. Olho em volta: todos temos a mesma expressão, uma tristeza por aquela pessoa, uma compaixão, um reconhecimento por aquela dor estranha, doméstica e simples, dura. Somos a mesma pessoa, nós vinte, as mesmas sobrancelhas curvadas, testas franzidas e olhos emudecidos, apenas alguns pequenos traços nos diferenciam nessa hora.
Meu primo, filho da tia Clara, aproxima-se dela, consegue fundir um sorriso à face triste e diz à mãe que vai ficar tudo bem. Beija-a, manda a sua esposa e a sua irmã comprarem sorvete naquele mesmo instante; acomoda aquela senhora desolada na cadeira da ponta da mesa e lhe dá um abraço. Ela consegue sorrir um pouco, enxugando as lágrimas.
— Bom, sempre teremos o domingo que vem, enquanto estivermos vivos. É só um manjar — diz ela, com a voz fraca.
— Um puta manjar bom — eu arremedo. Todos dão uma risadinha. Percebo meu parente menor de todos com creme na mão em frente a um grande monte de sobremesa perto da janela. O moleque está lambuzado na boca, e diz:
— Um!