No folhetim Janelas, publicado em jornal mexicano, Eduardo Galeano narra curioso episódio cujo protagonista é o poeta espanhol Juan Ramón Jiménez, Prêmio Nobel de Literatura em 1956.
Hospitalizado em Madri, o autor de Platero y yo recebeu uma carta do Peru. Era de uma leitora apaixonada, Georgina Hübner. Ele respondeu e assim teve início uma correspondência tão intensa e auspiciosa que, segundo consta, abreviou-lhe a enfermidade. Mas as cartas, vejam só, eram obra coletiva. Quem as escrevia era uma corja de safardanas, numa tasca de Lima.
Embuste semelhante subjaz na crônica literária rio-platense.
Horacio Quiroga publicou o conto Miss Dorothy Phillips, mi esposa na revista La Novela del Día, em 1919, e dois anos depois o incluiu no livro Anaconda. É a história de um argentino que, fascinado por Dorothy Phillips, que vê nos filmes norte-americanos, urde uma farsa para avultar seus méritos e vai aos Estados Unidos com a intenção de casar-se com ela. O final é surpreendente, mas não vem ao caso.
Tal como a personagem, Quiroga amava a bela Phillips. E tendo revelado esse sentimento a amigos, um deles pregou-lhe uma peça. Falsificando letra, endereço, selos e carimbos, fez com que chegasse a Quiroga uma foto da atriz, com carinhosa dedicatória. Segundo José María Delgado e Alberto J. Brignole, primeiros biógrafos do escritor, a falsificação era tosca, mas “Quiroga não teve a menor dúvida sobre sua autenticidade, quando até o mais simples dos cândidos teria percebido o logro”.
Induzidos ao sonho, tanto o espanhol como o uruguaio andaram queimando a raia do delírio.
Juan Ramón, ao deixar o hospital, anunciou à sua correspondente que iria ao Peru para conhecê-la, e só não o fez porque a súcia limenha, apreensiva, mandou dizer pelo cônsul peruano na Andaluzia que Georgina “falecera”. Quiroga, por sua vez, chegou ao ponto de assinar suas notas sobre cinema com o pseudônimo de “O esposo de Dorothy Phillips”.
Lá estavam duas paixões sem corpo.
Mas Quiroga e Juan Ramón, embora sonhadores, eram homens de ação, o que o primeiro já demonstrara em sua saga missioneira e o segundo em suas andanças pelo mundo.
Desprovido de um corpo na arte fílmica, recrutou-o Quiroga na arte poética. Na mesma época em que suspirava pela atriz norte-americana, encetou vulcânico romance com a poeta argentina Alfonsina Storni. Ela evoca Quiroga no poema Encontro, incluído em seu livro Ocre: “Encontrei-o numa esquina da Calle Florida/ mais pálido do que nunca, distraído como antes./ Por dois longos anos ele possuiu minha vida”.
Juan Ramón não desistiu da América Hispânica e à sua abstração incaica substituiu-se uma concretude oriental que, como a Storni, também freqüentava as musas: no inverno montevideano, aqueceu-se ao lado da poeta Idea Vilariño, que aos 28 anos era uma Afrodite. Pouco depois, estando em Buenos Aires, escreveu uma carta à autora de La suplicante:
Gostaria de te ver agora, de ter continuado te vendo, querida Idea enlutada com verde olhar lento, para conseguir, verdadeiramente, beijar teu coração (assim como pode o inverno beijar a primavera). Me lembrei de ti a cada dia (…). Sim, querida Idea, continuo sentindo tua mão na minha mão contra teu quadril direito, na sacada de um hotel da cidade que te guarda. E continuarei sentindo.
Com um beijo, Juan Ramón Jiménez.
A semelhança acaba aí.
Quiroga, naqueles anos, era um homem livre — sua primeira esposa, Ana María Cirés, suicidara-se em 1915 —, mas Juan Ramón era casado e bem-casado com Zenobia Camprubí, a tradutora espanhola do escritor indiano Rabindranath Tagore, donde se infere que, sobre delirar no sentido que os psicólogos dão ao termo, que é figurado, delirou também no sentido próprio: esse verbo vem do latim delirare, que quer dizer sair dos trilhos. No caso, algo como pular o muro.