Em nome do pai

Conto inédito de Marcelo Degrazia
Ilustração: Denise Gonçalves
30/01/2020

Eram três irmãos, o mais velho recém atingira a maioridade, o caçula devia ter uns quatro anos a menos. Não tinham irmã, e isso para eles era mais um atributo de sua virilidade.

— Andretti que se preza não bota mulher no mundo — dizia o pai deles.

Já a mãe, na banca do Mercado onde vendia peixes, avisava nos sábados de manhã ao estripar um jundiá:

— Prendam suas cadelinhas, porque os meus cachorrinhos estão soltos.

Edmundo, o do meio, vendia maconha por toda cidade. Fazia as entregas de cinquentinha, e, chispando pela faixa preta, deixava atrás uma nuvem azulada de óleo queimado. Não se podia olhar sério para ele, que ele logo encarava: “Quer casar comigo?”. Levava sempre um cabo de aço na jaqueta. Matara um engraxate por estrangulamento, diziam, mas isso nunca foi provado.

Seguindo o rastro do pai, se gabava:

— Só mulher bota a mão em mim.

Jonas, o caçula, já aprontava na saída dos colégios. Suas vítimas preferidas eram os filhinhos de papai com mochilas novas, roupas limpas e bem passadas, os cabelos assentados com gomalina.

A sua provocação para esses era:

— Já vai pra casa, mulherzinha?

Um olhar apimentado e o caldo Andretti engrossava. Mas os garotos cruzavam reto e empertigados, mudos. Ele então atirava um osso para um velho desafeto, que o devolvia de longe no mesmo tom desaforado. Perto de Jonas, alguns ainda zombavam dos fugitivos.

Arquimedes, o mais velho, era o demônio, vivia de faca na cintura atrás de um motivo. Quando se abria uma clareira nos bailes do Cassino, ele pulava no centro, apalpando o ar com a peixeira surrupiada na banca da mãe. Segundo as vozes, tinha rasgado o couro de um milico num Baile do Chope, e de dois rivais antigos, em brigas por causa de parceiras de dança.

Também tinha a sua sentença:

— Não jogo nem bebo, o meu vício é mulher.

No futebol da várzea, atrás da igreja ou no Sovaco da Cobra, e nos bailes de Carnaval ou de Debutantes no Caixeiral, se houvesse confusão, podíamos apostar sem erro: tinha Andretti no meio.

— Mas o pior deles é o pai — dizia Eusébio.

Eu voltava do colégio com o primo. Ele morava duas casas depois da nossa. No longo estirão para vencer as sete quadras e mais a Praça Matriz — que cruzávamos chupando o néctar dos hibiscos rosas —, púnhamos os assuntos em dia, trocávamos gibis e figurinhas de jogadores da Copa 70. Na verdade, eu mais ouvia do que falava, pois os dois anos a mais de Eusébio, além de prudência, lhe davam histórias que eu nem sonhava conhecer. Toda vez que contava um caso dos Andretti floreava o que podia, não se importando de repeti-lo quantas vezes eu pedisse. Quando algum bestalhão mexia comigo, apartava como protetor.

Era verão, nos demoramos na saída do colégio porque eu negociava com um colega a figurinha do Pelé, a mais valiosa do álbum, por três da Seleção uruguaia. Essas delongas nos faziam avançar o meio-dia. Sabíamos quando nos atrasávamos porque o trânsito morria e não se avistava uma única alma nas calçadas. Então tínhamos que correr, para evitar as amolações na chegada em casa. Às vezes o pai me fazia almoçar sozinho, na mesa da cozinha, e isso me tirava o chão. Quando o atraso sacrificava o almoço, o pai me esperava com o relho pendurado no espaldar da cadeira, e isso me tirava o couro.

Mas nessa vez, Eusébio puxou da pasta um gibi especial do Tarzan. Era o primeiro número em cores do herói, com a capa plastificada, num papel mais grosso do que as edições ordinárias. Eusébio mostrava-se feliz e orgulhoso. Havia anos acompanhava as aventuras do homem-macaco: todo mês corria até a banca do Félix, num dos cantos da Praça Matriz, para comprar o seu exemplar reservado. Alguns deles iam parar depois em minhas mãos. Eu admirava esse sobrevivente da selva, que encantava os animais com o magnetismo de seu caráter reto, justo e generoso.

Eu já brincava de Tarzan desde a antiga casa, mas, com o novo verde da natureza produzido pela Ebal, me senti ainda mais próximo da personagem. A rica variação dos matizes, nas páginas, dava às folhagens de minhas brincadeiras uma vivacidade insuspeitada, insólita, exótica até. Na memória e no papel. Queria parar e admirar melhor os quadrinhos, uma chuva de cores que era uma festa para os olhos. Mas o primo, sempre no controle dos nossos passos, me empurrava pelas orelhas.

— Mais depressa. — Eu podia apenas ver as figuras.

Andávamos nisso, quando, na esquina anterior à Praça Matriz, demos de cara com a trinca dos Andretti. A simples visão de um deles já era perturbadora, mas vê-los juntos, como agora, era semelhante à aparição dos bandidos do velho oeste no Cine Contursi. Apenas semelhante, porque no calor do sol a pino, na luz de água fervente desse meio-dia, o susto veio acompanhado de uma virada nas tripas. Instintivamente, diminuímos o passo, e a conversa morreu. Cruzei a rua anterior à calçada deles olhando as figuras — não via nada —, procurando controlar o tremor das mãos.

Subimos no meio-fio e o Arquimedes disse:

– Deixa eu ver a revista.

Olhei para Eusébio com um princípio de culpa, eu não tinha forças para me opor a uma iniciativa dos Andretti. Eusébio olhou para o chão.

Entreguei o gibi, que ainda cheirava a tinta fresca, e os outros se acercaram do irmão mais velho, um de cada lado.

— Nossa! — disse Arquimedes, visivelmente impressionado com a beleza da revista. — Essa eu ainda não vi. — E passou a folheá-la com entusiasmo.

— Nem eu — disse Edmundo já pegado ao irmão.

Jonas fez o mesmo pelo outro lado, formando a malíssima trindade, como também eram conhecidos. Durante um minuto, que se arrastou feito uma lesma ao cruzar a calçada, admiraram as imagens. Riam num tom crescente. As expressões, que no início pareciam de um interesse genuíno, ganharam traços de fanfarronice. Logo a revista nas mãos deles já era um joguete de puro divertimento.

— Olha a tanguinha dela! — disse Arquimedes afinando a voz, referindo-se possivelmente à Jane, mas não era de se duvidar que caçoasse da tanga do herói.

— Uau! — fez Edmundo no mesmo tom, como se apontasse para uma imagem fora das páginas.

Jonas manteve uma atenção aparentemente inocente pelos quadrinhos. Mas, algum tempo depois, ele também já parecia excitado com outra coisa.

Arquimedes tirou os olhos da revista e os fixou em Eusébio:

— Venham com a gente, vamos lendo a revista.

Minhas tripas, que já estavam viradas, se reviraram.

— M-mas nós temos que ir pra casa — disse Eusébio com voz de suco de laranja do céu, aguado. — Ainda não almoçamos.

— Não demora — disse Arquimedes. — É só uma voltinha no quarteirão, o tempo de ver a revista. — E se dirigiu para a calçada que juntava com a nossa e levava para os confins da cidade.

Edmundo e Jonas foram atrás. Se quiséssemos recuperar o gibi, não nos sobrava alternativa senão ir com eles. Eu evitava olhar o primo. Ele já havia tomado o meu partido em outras ocasiões; agora, segurando a pasta contra a cintura, ia calado. Eu também. Lembrei o livro do Pinóquio, o trecho em que o menino de pau se desvia do caminho, contra as recomendações do velho Gepeto, para seguir os homens do circo. Aqui, ao contrário, não era uma escolha sob a sedução de moedas de ouro ou de um futuro brilhante no picadeiro. Era uma frágil resistência, mais certo uma aderência, para não ceder de todo a pedra preciosa.

Eles na frente, nós imediatamente atrás, seguíamos para o arrabalde de São Donato. Os Andretti moravam para além da prisão da cidade, onde o pai deles mofava já havia alguns anos. O forte calor do sol era outro motivo de sufocação, minha camisa, já ensopada de suor nas axilas, grudava nas costas. Era a rua de nossos bisavós, tive a esperança de que um deles aparecesse na janela. Fantasiei uma corrida até lá, depois de arrancar o gibi das mãos de Arquimedes numa valentia cinematográfica. Mas os avós, assim como os vizinhos e os cães das casas, não apareciam. A rua, a cada passo, mais deserta e abafada.

De vez em quando, um deles disparava uma interjeição aguda.

— Arqui, olha só o tamanho do gorila — disse Jonas.

— É uma gorila, seu idiota — disse Edmundo.

— Como é que tu sabe?

A pequena discórdia me deu a esperança de que uma briga entre eles provocasse um tom de inibição ou seriedade favorável a nós. Os desacordos aumentaram, cada um prevendo sequências diferentes para os episódios. No clímax das divergências, quando Arquimedes folheou com brusquidão uma página, Edmundo reagiu, agressivo:

— Ainda não li o último balão, volta atrás!

— É um tartamudo — disse Jonas num tom de desforra.

Edmundo, já que seu irmão mais velho não cedia, tentou ele mesmo voltar a página, mas como Arquimedes segurava firme a revista, rasgaram a folha.

Arquimedes empurrou Edmundo contra o muro de uma das casas, já bem próximos da esquina:

— Olha aí, seu imbecil! — E virando o rosto para o ombro, falou na direção de Eusébio: — Ó, não fui eu que rasguei, foi esse analfabeto.

Eusébio, a voz mais forte que da outra vez, pediu cuidado, era o primeiro número da nova coleção, e tinha sido caro.

Edmundo se desculpou, mas Jonas zombou de sua preocupação:

— É o dinheirinho do papai, é?

Em seguida dobramos a esquina à direita, naquele enorme ‘n’ que parecia não ter fim. Com algum alívio, notei a prisão banhada de amarelo-ferrugem na outra esquina, mais cem metros e tudo estaria resolvido.

Alguns passos adiante, Arquimedes levantou os olhos dos quadrinhos para o vazio à sua frente:

— Não vai dar pra terminar, nos empresta ela?

Jonas sorriu com escárnio:

— Tu vai é vender a revista dele, seu calavera.

— Não te mete! — ralhou Edmundo.

A voz de Eusébio perdeu força outra vez:

— Mas eu ainda não li.

— Não enrola — disse Edmundo. — A gente viu que vocês vinham lendo.

Eu me arrisquei, mas a voz saiu mais da garganta que do peito:

— A gente tava só olhando as figuras.

Depois de um silêncio mascado a chiclete, Arquimedes disse:

— Não te preocupa, devolvo amanhã, na esquina.

Diante da possibilidade de encontrá-los outra vez, o medo de perder o gibi se dissipou. Era um tipo de pacto que eu nem Eusébio gostaríamos de fazer.

Já bem próximos da outra esquina, mas ainda no meio do inferno, Eusébio extraiu das próprias veias um dedal de sangue frio:

— Amanhã a gente se vê, aí vocês terminam de ler.

Ao chegarmos na esquina, Arquimedes propôs:

— Então vocês esperam, enquanto a gente olha.

De costas para a calçada da prisão, os três realinharam-se lado a lado para seguirem as imagens. De tempos em tempos, Arquimedes perguntava se podia virar a página, e assim que recebia a anuência dos outros, imprimia um gesto ríspido como se fosse arrancar a folha. Demoravam-se tanto que eu podia imaginar o atraso de minha chegada em casa. Por suas expressões, apostava que somente Jonas e Edmundo liam o gibi. Arquimedes parecia ter o olhar suspenso entre as figuras e a ponta de seu próprio nariz. A fisionomia dele não traía nenhum sinal de emoção que não fosse uma expectativa irônica, e com traços de sadismo, como se estivesse ali não apenas para segurar o gibi. Sua satisfação parecia apoiada em outro ponto.

Quando finalmente viraram a última página, Eusébio disse:

— É aí que o pai de vocês… ele ainda tá preso?

Arquimedes era alto, tinha um rosto quadrado e a mão parecia uma raquete de pingue-pongue. Ele a fechou num instante, me entregou o gibi, agarrou Eusébio pela gola da camisa e levou o outro braço para trás, como se puxasse a corda de um motor potente que já fosse roncar. A seguir, impulsionou o punho para frente, rápido e certeiro. O golpe explodiu no plexo solar do primo, que se dobrou sobre si mesmo.

Arquimedes disse alguma coisa, Jonas ainda cuspiu em Eusébio. Em seguida, soltando gracinhas, atravessaram a rua na direção do presídio.

O primo, com o veneno queimando no estômago, abria e fechava a boca em falso, repetidas vezes, feito um pardal sedento em convulsões de morte. Ainda encurvado, o rosto tinto de sangue, abraçado à própria barriga, lutava com o mundo — por um gole de ar. Ele ficou assim, de costas para o presídio por longos segundos, sem outra reação que digerir o golpe, com ganidos secos e abafados.

Quando se viu em condições — os olhos pequenos e molhados —, pegou de mim o gibi e a pasta — eu a recolhera do chão enquanto ele lutava pelo ar — e tomou o rumo da Matriz para concluirmos o ‘n’. Em silêncio, retomamos o caminho de casa, no sentido contrário ao de Arquimedes e seus irmãos.

Eu não conseguia dizer nada. Não sabia que palavra ou gesto serviria de consolo àquela violência, chocante também por sua aparente gratuidade, e toda fora de lugar, embora a prisão ali perto.

Caminhamos mais meia quadra, nossos passos já próximos do normal, quando Eusébio disse num tom abafado de tristeza e raiva:

— O pai deles matou um homem.

Ao alcançarmos a praça, o episódio ainda girava na minha cabeça. Que pessoas afinal eram essas, eles e nós, tão distantes do homem-macaco? Uns pela falta, outros pelo excesso. Sua imagem, por um momento, cobriu a luz do sol; tão espessa que me cegou. Eusébio, de repente, como que se dando conta de que não tinham roubado a pedra mais preciosa de sua coleção, parou um instante e guardou o Tarzan na pasta, entre os livros do colégio. Eu, instintivo, me inclinei para o lado e arranquei a corola de um hibisco rosa, prendi-a entre os lábios e fui em silêncio, com o olhar no arco do monumento central da praça, sentindo na língua o néctar amargo do meio-dia.

Marcelo Degrazia

Nasceu em Itaqui (RS). É autor do livro de contos A bandeira de Cuba, vencedor do Prêmio Paraná de Literatura (2017) em sua categoria. Em nome do Pai integra uma segunda leva de histórias também ambientadas na fictícia São Donato.

Rascunho