Elefantes no céu de Piedade

Trecho do novo romance de Fernando Molica narra o início da derrocada de uma família suburbana no início dos anos 1970
Ilustração: Denise Gonçalves
01/10/2021

A estreia do Opala acabou transformada em pretexto para um encontro familiar, um discreto ato de solidariedade ao tio Alfredo. Minha mãe fez questão de chamar o irmão, a mulher e a filha para dar uma volta, a primeira. O carro é grande, cabe todo mundo com muito conforto, insistiu. Queria animar meu tio, ainda abatido com o assalto e com as horas passadas na delegacia. Eu vibrei por outro motivo, a superlotação do banco traseiro implicaria em minha promoção compulsória para o dianteiro. Aos 35 anos, minha mãe parecia ter menos idade, apesar de seu esforço em esconder a juventude com roupas discretas, bem-comportadas, que faziam o possível para torná-la quase invisível. Seus vestidos mantinham ombros e joelhos preservados de eventuais olhares, as sandálias abertas eram poucas se comparadas com a quantidade de sapatos fechados, de salto baixo — Roupas de velha, sentenciava Marisa, que também criticava o tom da tintura escolhida pela tia para cobrir os cabelos brancos. Para ela, o louro cinza-médio não passava de uma cor que não representava cor alguma, tinha que ser algo mais forte, chamativo, louro puro. A discrição e a busca de um certo envelhecimento serviriam talvez para tentar diminuir a diferença de onze anos que a separava do marido. Na época, um homem de negócios suburbano de mais de 40 anos não tinha alternativa que não fosse a de se vestir como um homem de negócios suburbano com mais de 40 anos, um velho. Naquela tarde, os padrões foram mantidos, ela usou um vestido de um verde clarinho — para combinar com o carro, justificou —, mangas que iam até os cotovelos. Meu pai foi com seu quase uniforme de trabalho, calça preta, camisa cinza e sapato social. Os cabelos, grisalhos, começavam a rarear; como um exército acuado, os fios restantes usavam como trincheira o alto da cabeça, tentativa vã de impedir o avanço da calvície, inimigo que fizera terra arrasada do território logo acima da testa. O Brylcreem, uma pasta branca oleosa, era usado para manter unido o que lhe restava de cabelo.

Pouco se conversou na ida à Ilha do Governador, ao aeroporto, um dos passeios favoritos da família. Nenhuma palavra sobre os acontecimentos da véspera, meu tio estava amuado, quieto, parecia desconfortável, cercado por pessoas que dele queriam arrancar alguma informação sobre os incidentes. Sentindo-se pressionado, ele retrucava com o silêncio, mudez agressiva, que rechaçava qualquer possibilidade de questionamento, era evidente que preferiria não estar ali. Ainda tentei lhe fazer uma pergunta, mas fui travado pela minha mãe, Hoje é dia de falar de coisas boas, do carro. O banco não é macio? Está gostando de ver a rua daqui? Eu, pequeno, pouco conseguia alcançar o para-brisa, minha linha de visão ficava na altura do painel, para observar o caminho precisava olhar pelas janelas laterais. Mas eu estava na frente, num Opala quatro portas, com cheiro de novo, era o que importava. Havia novas janelas, novos enquadramentos, novas maneiras de ver o mundo. Molduras que tornavam melhor o quadro, a paisagem, as ruas, as árvores, as pessoas, a cidade. Ali, ficávamos mais fortes e seguros, menos vulneráveis aos buracos, às imperfeições do caminho, às ameaças que poderiam nos chegar das calçadas povoadas de pessoas pobres, sem dentes, sem carros, sem ar-condicionado em casa. A suspensão do Opala cumpria o papel de alisar caminhos, de torná-los mais prazerosos e exclusivos. Não haveria obstáculos para os que rodavam num carro que chamava a atenção por onde passava, cartaz que alardeava nossa sintonia com o progresso do país, estávamos no mesmo passo da nação que tanto avançava. Como num anúncio do Conga, tênis vagabundo e então onipresente. A foto de um menino marchando, vestido com um uniforme escolar, era acompanhada de uma frase direta, imperativa: “Pise firme que este chão é seu”. A imagem do garoto fora captada de baixo para cima, destacava a sola do calçado, o gesto de pisar, de conquistar, de ignorar barreiras e inimigos, de mostrar quem mandava. Rodávamos com firmeza, as ruas eram nossas, sucumbiam à força de nosso carro.

No início da noite, deixamos meus tios e prima e voltamos para casa. O Obrigado dirigido aos meus pais foi uma das poucas palavras que ouvi meu tio pronunciar ao longo da tarde. Conseguira o objetivo de ficar praticamente mudo, respondera com murmúrios às tentativas feitas por tia Laura para animá-lo. Ao chegarmos, meu pai disse que eu e minha irmã podíamos ir para a rua, brincar um pouco. Eu reclamei, queria ver televisão, mas ele insistiu, tinha que conversar com minha mãe, a tardinha estava agradável, nós poderíamos levar nossas bicicletas. Na volta, prometeu, contaria uma novidade. Não era comum que fôssemos para a rua na hora em que a mamãe costumava nos chamar para tomar banho. Mas aquele era um dia excepcional, o Dia do Carro Novo — até que seria legal contar para os amigos como tinha sido o passeio no Opala, tão grande, tão confortável, tão macio. Montado na bicicleta, ao descer a suave ladeira numa das extremidades da rua, eu imitava, com a boca, o barulho do motor da nova conquista da família: brrum, brrum brrum, o ruído dos 80 cavalos, das 2.500 cilindradas.

À noite, assim que sentamos à mesa da cozinha para jantar, meu pai revelou a novidade: um sobrinho, filho de seu irmão mais velho, viria passar uma temporada conosco. Ele era adulto, 19 anos, morava em Vitória, e precisava ficar uns dias lá em casa. O rapaz andou meio doente, o médico recomendou que ele trocasse de ares, consultasse especialistas no Rio.

— Onde ele vai dormir? No meu quarto? — quis saber.

— Não, acho que não —, respondeu meu pai. — Ele não quer incomodar, e existe um risco, ainda que pequeno, de a doença dele ser um pouco contagiosa. Eu conversei com sua mãe, achamos melhor que ele ocupe o quarto de empregada, mais afastado. Até porque a Jandira vai ficar fora por duas semanas.

Empregadas domésticas não tinham direito a férias, mas um acordo com minha mãe garantia a Jandira quinze dias de folga anuais, uma concessão para quem acompanhava nossa família desde o nascimento de Fátima. Pelo que entendi, o período de afastamento de Jandira tinha sido antecipado para garantir espaço e privacidade ao visitante. Meu pai disse que colocaria uma mesinha e uma cadeira lá no quartinho, para que ele pudesse estudar durante o dia. O quarto é pequeno, mas confortável, se ele dobrar a Dragloflex durante o dia, fica até espaçoso, tentou justificar. O malabarismo verbal de meu pai não seria suficiente, porém, para alargar as dimensões do quartinho, um cubículo onde mal cabiam a cama dobrável, uma estrutura de ferro preenchida por uma lona azul, e um pequeno armário. No lugar de janela, havia um basculante — engenheiros e arquitetos deviam achar que empregadas, além de ocuparem menos espaço, tinham pulmões menores e não sentiam tanto calor assim, o que justificaria a ausência de janelas amplas nos quartinhos a elas destinados.

— Qual é o nome dele? — quis saber Fátima.

— Carlos, Carlos Alberto — respondeu meu pai.

— E quando é que ele chega?

— Amanhã, bem cedinho, na rodoviária.

— Você vai buscar ele? Posso ir com você? — completei.

Meu pai demorou um pouco para responder, virou-se para minha mãe, que desviou o olhar. Ele então cortou o assunto, sairia muito cedo de casa, não faria sentido me acordar, eu acabaria perdendo o horário da escola.

Minha mãe não pareceu muito contente com a vinda do sobrinho. Quase sempre falante, permaneceu calada, quieta, observava as unhas, retirava nacos do esmalte já quebradiço, volta e meia encarava o marido. Um silêncio compartilhado por meu pai quando perguntei por quanto tempo o Carlos ficaria entre nós. Ele se limitou a fazer um muxoxo, um levantar de ombros, e tratou de ocupar a boca com outra garfada de comida. Para não me deixar sem resposta, falou em uns quinze dias.

Naquela noite, minha mãe sequer cumprira o ritual de recitar a lista de opções que tínhamos para comer, a comida feita pela Jandira: o arroz, o feijão, a carne assada com batatas coradas, a salada de alface e tomate, o refresco artificial de maracujá. As únicas vozes ouvidas vinham da TV que dominava a sala e permanecia ligada durante o jantar, diálogos que marcavam o início da novela, história passada numa cidade chamada Coroado, irmãos envolvidos em disputas em torno de um diamante. Ao contrário do que sempre ocorria, minha mãe foi a primeira a terminar de comer, levantou-se, levou o prato até a pia, disse que iria para o quarto, não estava se sentindo muito bem, não assistiria ao novo capítulo. Antes de sair da cozinha, virou-se para meu pai e, num tom mais duro, sem sorrir, disse esperar que ele soubesse bem o que estava fazendo, não queria que nossa família fosse colocada em risco.

— Fica tranquila, Eneida. A doença dele está sob controle, nem nós, nem muito menos as crianças correremos qualquer perigo. Falei com meu irmão, não há problema, é para que ele respire novos ares, e consulte um especialista.

— É o que espero. Ah, Jorge, a louça hoje é por sua conta, dispensei a Jandira, ela foi pra casa dela, e você sabe que detesto acordar com a cozinha suja. — Mesmo em condições excepcionais, minha mãe demonstrava que não abria mão de manter a casa muito limpa.

Antes de sair, abriu a gaveta em que os remédios eram guardados. A exemplo de tantas outras noites em que ficava um pouco mais tensa, ela recorreu ao comprimido de Vagostesyl, um calmante, como se dizia, para conseguir pegar no sono. É fraquinho, quase água com açúcar, costumava dizer.

Meu pai esperou minha mãe entrar no quarto para propor o que classificou de uma espécie de jogo, uma brincadeira. Ressaltou que todos se conheciam na vizinhança, nosso antigo apartamento ficava na mesma rua, e as pessoas, vocês sabem, são muito fofoqueiras. Não seria bom comentar sobre a chegada do nosso primo, ele estava se recuperando de uma doença. Não, ninguém corria risco, mas há muita gente faladeira, que gosta de aumentar as histórias, criar confusão. Dali a pouco haveria aqueles que ficariam com medo da tal doença, isso poderia criar problemas, até atrapalhar a recuperação do Carlos Alberto. Ele então nos pediu para guardarmos segredo absoluto sobre a presença do nosso primo, não deveríamos falar nada de nada com ninguém, nem mesmo com nossos melhores amigos. Depois, quando tudo estivesse resolvido, ele faria um churrasco no quintal, talvez até uma feijoada, chamaria os vizinhos, daria uma festa, comemoração pela casa nova. Mas, por enquanto, o melhor seria deixar tudo em segredo, Está certo? Papai chegou a prometer um presente para quem cumprisse com mais afinco as regras do jogo — em caso de um desejável empate entre os irmãos, a premiação seria dupla.

Estava certo, sim, fazer o quê? Lembrei da música do Caetano que Roberto Carlos tinha acabado de lançar. Tudo estava tudo certo como dois e dois são cinco. A soma dos fatos narrados pelo meu pai fazia tanto sentido quanto o resultado da conta citada na canção. Receberíamos a visita de um parente que seria mantida em segredo, ninguém deveria saber de sua presença em nossa casa. Um rapaz que tinha uma doença que poderia e, ao mesmo tempo, não poderia ser passada para outras pessoas. As explicações tortas provavam que, sim, o resultado de dois mais dois poderia ser cinco. Como aprenderia anos depois na faculdade, números também podem ser torturados, constrangidos a expressar a verdade que interesse ao seu algoz. Meu pai elaborara uma equação torta, violência matemática que traria consequências sérias para nossa família, episódios que em muito superariam a brincadeira formulada pelo autor da música. O que estava em jogo era muito mais do que uma crítica aos descaminhos de uma relação amorosa como a delineada naquela canção do Roberto. Sequer teríamos tempo para digerir todas as notícias ou para tentar refazer aquela aritmética capenga. Como um Fittipaldi em sua Lotus preta, o primo que acabara de nos ser anunciado já apontava na linha de chegada, numa velocidade meio incompatível com a modorrenta vida suburbana.

Fernando Molica

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1961. É escritor e jornalista, com passagem por alguns dos principais veículos do Brasil. Publicou, entre outros livros, Notícias do Mirandão, Bandeira negra, amor e O homem que morreu três vezes. O romance Elefantes no céu de Piedade será lançado em breve pela Patuá.

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