Lírica impura III
I
O poeta não pede.
Implora.
O poeta não vibra.
Cala.
Estranho vício
de ser hóspede
do silêncio.
Azul e branco
faço do meu ofício
essa sede de luto
essa espiral do tempo.
Sei que o poeta implora.
Sei que o poeta cala.
Atravessando a ponte
vejo uma sombra do tempo
todo navio, soçobra, um dia
eu penso.
Eco da solidão
e o poeta dorme
alucinado hóspede
do silêncio.
O poeta nada fala
apenas
FITA.
II
Fechado pra balanço.
Ando mais cinza que o cinza.
Meio nublado eu diria.
Meio aquela chuvinha
fina interminável
interminável tempo
eu não tenho sono
tenho frio somente
e amanhece.
Fechado dentro de mim
anoiteço lento
enquanto o sol se fortalece
numa audácia que me afronta.
Mais escuro que o cinza
alguma coisa negra
se impõe
escorre
dentro de mim
vermelho negro
uivo do infinito
eu tenho sono sim
mas me recuso
me recuso a acordar em mim
tomado pela luz que afronta
fisga súbita
fere fundo
CEGA.
III
O amor também pede trégua.
Anoitece.
Desidrata.
E quando alguma luz
quase acontece
de novo o ocaso
das coisas livres mas gastas
tão gastas
que até mesmo o tempo
nelas se refaz como se nunca
tivessem sido
outra coisa
que o derruído.
O amor também pede trégua.
Pede o afeto do amigo.
Mão alheia que seja.
Mas que seja
breve
insana
fogo que súbito se alastra.
…
PRELÚDIOS MÍNIMOS
Para meu espírito
Se nem no silêncio
somos cúmplices
de nós mesmos
o que nos restará?
Para meu corpo
Boca e olhos.
Todos os membros
e vísceras.
Depois
o sopro e o sangue.
E o sempre estar
grudado à matéria.
Para um deus
Os que te fizeram
preso a uma cruz
esqueceram
que a estória de um deus
é muito mais
que o sádico
espetáculo
do sofrimento.
Mar
Diante dele
Nosso olhar desaparece.
Depois de um tempo
Somos só água.
Ninguém
Nada.
Diante da morte
Tenho fome e sede
Quando chega a hora.
Vejo o azul mais além.
Aqui: absoluto escuro.
Dia seguinte
Ainda não é.
Mas terá sido
Sem que ao menos
se perceba.
Fotografia
Sem rosto
Ficaria menos
propenso
às lágrimas.
Da morte
Aprender
Que cada dia
É um dia a menos.
Ou a mais.
Resumo da ópera
Que o excesso
Seja o sumo
De tudo que vivi.
E a sentença.