Tradução: José Rubens Siqueira
MAIO
Pertence à estirpe cada vez mais rara dos editores cultos, literários. E comovido assiste, todos os dias, ao espetáculo de ir se extinguindo sigilosamente no começo deste século o nobre ramo de seu ofício — os editores que ainda lêem e que sempre foram atraídos pela literatura. Teve problemas há dois anos, mas soube fechar a tempo a editora, que no fim das contas, mesmo tendo obtido um notável prestígio, caminhava com assombrosa obstinação para a falência. Em mais de trinta anos de trajetória independente, teve de tudo, sucesso, mas também grandes fracassos. A falta de rumo da etapa final ele atribui a sua resistência a publicar livros com as histórias góticas da moda e as demais ninharias, e dessa forma esquece parte da verdade: que nunca se distinguiu por sua boa gestão econômica e que, além disso, talvez pudesse ter sido prejudicado por seu fanatismo desmesurado pela literatura.
Samuel Riba — Riba para todo mundo — publicou muitos dos grandes escritores de sua época. De alguns, apenas um livro, mas o suficiente para que estes constem de seu catálogo. Às vezes, embora não ignore que no setor honrado de seu ofício restam em atividade outros valorosos quixotes, ele gosta de ver a si mesmo como o último editor. Tem uma imagem algo romântica de si mesmo e vive numa permanente sensação de fim de época e fim de mundo, sem dúvida influenciado pela suspensão de suas atividades. Tem uma notável tendência a ler sua vida como um texto literário, a interpretá-la com as deformações próprias do leitor empedernido que foi durante tantos anos. Está, além disso, à espera de vender seu patrimônio para uma editora estrangeira, mas as negociações estão estagnadas há tempos. Vive numa poderosa e angustiante psicose de final de tudo. E até agora nada, nem ninguém conseguiu convencê-lo de que envelhecer tem a sua graça. Tem?
Agora, está em visita à casa de seus velhos pais e olha-os de cima abaixo, com curiosidade nada contida. Foi contar para eles sobre sua recente estada em Lyon. Fora as quartas-feiras — data obrigatória — é um velho costume ir vê-los quando volta de alguma viagem. Nos últimos dois anos, não recebe nem um décimo dos convites para viajar que recebia antes, mas esse detalhe ele ocultou dos pais, dos quais escondeu também que fechou a editora, já que considera que têm uma idade avançada demais para lhes dar desgostos e, além disso, tem certeza de que não receberiam nada bem a notícia.
Alegra-se cada vez que o convidam para algum lugar, porque, entre outras coisas, isso lhe permite continuar desenvolvendo diante dos pais a ficção de suas múltiplas atividades. Apesar de que logo completará sessenta anos, sente por eles, como se pode perceber, uma forte dependência, talvez por não ter filhos, e eles, por seu lado, só terem a ele: filho único. Chegou a viajar para lugares de que não gostava muito, só para depois contar a viagem a seus pais e assim mantê-los na convicção — eles não lêem jornais nem assistem à televisão — de que continua editando e continua sendo solicitado em muitos lugares e, portanto, as coisas continuam bem para ele. Mas não é nada disso. Se quando era editor estava acostumado a uma grande atividade social, agora tem apenas alguma, mas não dizer nenhuma. À perda de tantas falsas amizades, juntou-se a angústia que tomou conta dele desde que, há dois anos, suspendeu o álcool. É uma angústia que vem tanto de sua consciência de que, sem beber, teria sido menos atrevido nas publicações como de sua certeza de que a afeição pela vida social era forçada, nada natural nele e talvez proviesse apenas de seu doentio temor da desordem e da solidão.
Nada caminha muito bem para ele desde que corteja a solidão. Apesar de cuidar para não cair no vazio, seu casamento também cambaleia, embora nem sempre, porque seu relacionamento matrimonial passa pelos mais variados estados e vai da euforia e do amor ao ódio e ao desastre. Mas ele se sente cada dia mais instável no todo e se tornou resmungão, desgosta da maior parte das coisas que vê ao longo do dia. Coisas da idade, provavelmente. Mas o fato é que começa a ficar inconveniente para todo mundo, e completar sessenta anos produz nele a mesma sensação que se tivesse uma corda no pescoço.
Seus velhos pais escutam sempre seus relatos de viagem com grande curiosidade e atenção. Às vezes, até parecem duas réplicas exatas de Kublai Kan ouvindo aquelas histórias que Marco Polo contava. As visitas posteriores a alguma viagem do filho parecem gozar de uma classificação especial, de uma categoria superior às visitas monótonas e habituais de todas as quartas-feiras. A de hoje tem essa classe excepcional. Porém acontece alguma coisa estranha, porque já está na casa há um bom tempo e ainda não foi capaz nem mesmo de abordar o assunto Lyon. E isso porque não consegue lhes explicar nada de sua passagem por essa cidade, porque esteve ali tão desligado do mundo e sua viagem foi tão selvagemente cerebral que não dispõe de nem um único episódio minimamente humano. Além disso, a realidade do que aconteceu ali não é nada simpática. Foi uma viagem fria, gélida, como esses trajetos hipnóticos que ultimamente ele realiza tantas vezes diante do computador.
— Então, você esteve em Lyon — insiste sua mãe, agora já um tanto inquieta.
Seu pai começou a acender lentamente o cachimbo e também olha para ele com estranheza, como quem se pergunta por que ele não conta nada de Lyon. Mas o que pode lhes contar de sua estada nessa cidade? Não vai se pôr a falar da teoria geral do romance que foi capaz de fabricar sozinho no hotel lionês. Não lhes interessaria em nada a história de como elaborou essa teoria e, além disso, não acredita que eles saibam muito bem o que possa ser uma teoria literária. E, supondo que soubessem, ele tem certeza de que ficariam profundamente aborrecidos com o tema. E poderiam até chegar a descobrir que, tal como afirma Celia, anda muito isolado nos últimos tempos, muito desconectado do mundo real e abduzido pelo computador ou, na ausência deste — como lhe ocorrera em Lyon — por suas viagens mentais.
Em Lyon, empenhou-se em nunca se pôr em contato com a Villa Fondebrider, a organização que o havia convidado a dar a conferência sobre a grave situação da editoração literária na Europa. Talvez porque nem no aeroporto, nem no hotel apareceu alguém para recebê-lo, Riba, à guisa de vingança pelo menosprezo demonstrado pelos organizadores, trancou-se no quarto de hotel em Lyon e conseguiu realizar ali um dos seus sonhos quando editava e não tinha tempo para nada: redigir uma teoria geral do romance.
Publicou muitos autores importantes, mas apenas no Julien Gracq do romance Le Rivage des Syrtes foi que percebeu um espírito de futuro. Em seu quarto em Lyon, ao longo de um sem fim de horas trancado, dedicou-se a perpetrar uma teoria geral do romance que, baseando-se nos ensinamentos que percebera desde um primeiro momento em Le Rivage des Syrtes, estabelecia os cinco elementos que considerava imprescindíveis para o romance do futuro. Esses elementos que considerava essenciais eram: intertextualidade; conexões com a alta poesia, consciência de um panorama moral em ruínas; ligeira superioridade do estilo sobre a trama; a escritura vista como um relógio que avança.
Era uma teoria ousada, uma vez que propunha que o romance de Gracq, normalmente considerado antiquado, era o mais avançado de todos. Preencheu uma porção de folhas comentando os diversos elementos dessa proposta de romance do futuro. Mas quando terminou seu árduo trabalho, lembrou-se do “sagrado instinto de não ter teorias” de que falava Pessoa, outros de seus autores favoritos e do qual tivera, em certa ocasião, a honra de poder editar A educação do estóico. Lembrou-se desse instinto e pensou como os romancistas eram às vezes tolos, lembrou-se de vários escritores espanhóis dos quais havia publicado histórias que eram o produto ingênuo de teorias educadas e extensas. Que grande perda de tempo, pensou Riba, filiar-se a uma teoria para escrever um romance. Agora ele podia dizer isso com toda fundamentação, porque acabara de escrever uma.
Por que vamos ver, pensou Riba, se o sujeito tem a teoria, por que vai querer fazer o romance? E no momento mesmo de fazer essa pergunta e seguramente para não ter uma sensação tão grande de perda de tempo, inclusive o tempo de perguntar, compreendeu que haver passado tantas horas no hotel escrevendo sua teoria geral havia lhe permitido, no fundo, livrar-se dela. Um fato desses seria, por acaso, desprezível? Não, claro que não. Sua teoria continuaria sendo o que era, lúcida e ousada, mas ia destruí-la atirando-a no cesto de papéis do quarto.
Celebrou um funeral íntimo e secreto por sua teoria e por todas as que tinham existido no mundo, e depois abandonou a cidade de Lyon sem ter entrado em contato em momento nenhum com as pessoas que o haviam convidado a falar sobre a grave — talvez não tão grave, Riba pensou durante toda a viagem — situação da editoração literária na Europa. Saiu do hotel pela porta dos fundos e voltou de trem para Barcelona, vinte e quatro horas depois de sua chegada a Lyon. Não deixou para o pessoal da Villa Fondebrider nem uma carta justificando sua invisibilidade em Lyon ou sua estranha fuga posterior. Compreendeu que toda a viagem havia servido apenas para erigir uma teoria e em seguida celebrar um funeral íntimo por ela. Foi embora com a plena convicção de que tudo o que havia escrito e teorizado em torno do que devia ser um romance não havia sido mais que uma ata erigida com o único propósito de se livrar de seu conteúdo. Ou, melhor dizendo, uma ata erigida com o propósito exclusivo de confirmar que a melhor coisa do mundo é viajar e perder teorias, perdê-las todas.
— Então, você esteve em Lyon — a mãe volta à carga.
Estamos em fins deste maio de tempo irregular, assombrosamente chuvoso para Barcelona. O dia está frio, cinzento, triste. Durante alguns momentos, imagina que está em Nova York, numa casa em que se ouve o tráfego em direção ao túnel Holland: rios de carros voltando para casa depois do trabalho. É pura imaginação. Nunca ouviu o ruído do túnel Holland. Logo volta à realidade, a Barcelona e a sua deprimente luz cinzenta de hoje. Celia, sua mulher, o espera em casa por volta das seis da tarde. Tudo está transcorrendo com certa normalidade, salvo a inquietação que vai tomar conta de seus pais ao ver que o filho não comenta absolutamente nada sobre Lyon.
Mas o que pode lhes contar do que aconteceu lá? O que pode dizer para eles? Que como bem sabem não bebe desde que, dois anos atrás, os rins maltratados o levaram a um hospital e que isso o prostrou num estado de sobriedade permanente que faz com que às vezes se dedique a atividades tão extravagantes quanto elaborar teorias literárias e não sair do quarto de hotel nem para conhecer as pessoas que o convidaram? Que em Lyon não falou com ninguém e que definitivamente, desde que deixara de editar, é o que vem fazendo diariamente em Barcelona ao longo das muitas horas que passa na frente do computador? Que o que mais lamenta e o entristece é ter deixado de editar sem ter descoberto um autor desconhecido que acabasse por se revelar um escritor genial? Que ainda está traumatizado por essa fatalidade inerente a seu antigo ofício, essa fatalidade tão amarga de ter de procurar autores, esses seres tão irritantemente imprescindíveis, uma vez que sem eles não seria possível a trama? Que nas últimas semanas sente dores no joelho direito, que seguramente são provocadas pelo ácido úrico ou pela artrite, supondo que sejam duas coisas diferentes? Que antes era um gozador por causa do álcool e que agora se tornou melancólico, coisa que seguramente foi sempre o seu verdadeiro estado natural? O que pode dizer a seus pais? Que tudo se acaba?
A visita transcorre com certa monotonia e chegam inclusive a lembrar, em parte por causa do tédio que domina a reunião, do já longínquo dia de 1953 em que o general Eisenhower se dignou visitar a Espanha e acabou com o isolamento internacional do regime do ditador Franco. Seu pai viveu esse dia com um transbordamento de entusiasmo, não por causa da batalha diplomática vencida pelo maldito general galego, mas pelo fato de que os Estados Unidos, vencedores do nazismo, tinham se aproximado por fim da desesperançada Espanha. É uma das primeiras lembranças de sua vida. Tinha cinco anos e alguns meses e desse dia se lembra sobretudo do momento em que sua mãe perguntou a seu pai a que se devia tão “exagerado entusiasmo” pela visita do presidente norte-americano.
— O que é entusiasmo? — o menino perguntou.
Recordará para sempre os termos exatos dessa pergunta, porque foi a primeira que fez na vida. Da segunda pergunta de sua vida lembra-se também, embora não tenha tanta segurança de como a formulou. Sabe, em todo caso, que era relacionado a seu nome, Samuel, e ao que haviam dito alguns professores e meninos da escola. Seu pai explicou que era judeu só por parte de mãe e que como ela havia se convertido ao catolicismo meses depois de seu nascimento, ele devia se tranqüilizar — isso lhe disseram: se tranqüilizar — e considerar-se filho de católicos e pronto.
Agora seu pai, como nas ocasiões anteriores em que falaram dessa visita de Eisenhower, nega que tivesse ficado tão entusiasmado aquele dia, e diz que isso é um equívoco inventado por sua mãe, que pensou que ele estava exaltado demais com a visita do presidente americano. Nega também que durante algum tempo seu filme favorito foi Alta sociedade, de Charles Walter, com Bing Crosby, Grace Kelly e Frank Sinatra. Eles o viram pelo menos três vezes, em fins dos anos 50, e ele se lembra que esse filme sempre deixava seu pai com excelente humor: ele adorava loucamente tudo o que vinha dos Estados Unidos; fascinava-se pelo cinema e pelo glamour das imagens que chegavam de lá; sentia atração pela vida que seres humanos como eles levavam naquele lugar que então parecia tão distante que era quase inacessível. E é muito possível que precisamente tenha herdado dele, de seu pai, esse fascínio pelo Novo Mundo, pelo encanto distante daqueles lugares que na época pareciam tão inalcançáveis, talvez porque parecia que lá viviam as pessoas mais felizes da Terra.
Hoje falam daquela visita de Einsenhower, de Alta sociedade e do desembarque na Normandia, mas seu pai, vez por outra, nega com obstinação que tenha sentido tanto entusiasmo. Quando já está parecendo que, para não empacar no tema, seus pais logo voltarão à questão de Lyon, cai a tarde com uma grande e estranha rapidez sobre Barcelona, escurece muito depressa e acaba chegando uma surpreendente tromba d’água, acompanhada de grandes descargas elétricas. Cai justamente no momento em que ele se dispunha a ir embora da casa.
Estrondo espantoso de um trovão solitário. Cai a água com raiva e força desconhecidas sobre Barcelona. Chega-lhe de súbito uma sensação de aprisionamento e ao mesmo tempo de ser mais que capaz de atravessar as paredes. Em algum lugar, à margem de um dos seus pensamentos, descobre um escuro que se pega a seus ossos. Não acha muito estranho, está acostumado a que aconteça isso na casa de seus pais. O mais provável é que nessa escuridão tenha se aposentado, momentos antes, um dos numerosos fantasmas úmidos — tranqüilos fantasmas de alguns antepassados — que habitam esse escuro mezanino.
Quer esquecer o espectro doméstico que se pega aos ossos, vai até a janela e então vê um rapaz que, sem guarda-chuva debaixo do aguaceiro, plantado bem no meio da rua Aribau, parece estar espiando a casa. Pode ser que se trate de um fantasma superior. E em qualquer dos casos, o rapaz é sem dúvida um fantasma do exterior, nada precisamente familiar. Troca com ele alguns olhares. De aspecto que parece hindu, o rapaz usa um paletó estilo Nehru, cor azul elétrico e botões dourados no peitoral. O que estará fazendo ali e por que se veste assim? Vendo que o sinal abriu e que os carros sobem de novo pela Aribau, o desconhecido acaba de atravessar para a outra calçada. É realmente um paletó estilo Nehru que está usando? Talvez seja só um blusão da moda, mas não está inteiramente claro. Só alguém como ele, que foi sempre leitor tão atento de jornais e que tem já uma idade respeitável, consegue se lembrar de pessoas como esse político de outros tempos, esse homem chamado Úrî Pandit Jawâharlâl Nehru, líder indiano do qual muito se ouvia falar quarenta anos atrás, e agora não mais.
Se pai de repente se mexe na poltrona e, num tom lúgubre, como se estivesse consumido por uma febril melancolia, diz que gostaria que alguém lhe explicasse. E repete isso duas vezes, muito angustiado, nunca o viu assim tão aflito: gostaria que alguém lhe explicasse.
— O quê, pai?
Riba acredita que ele está se referindo aos imensos trovões, e com paciência se põe a explicar para ele a origem e a causa de certas tempestades. Mas logo percebe que o que diz soa ridículo e que, além disso, seu pai está olhando para ele como se fosse um idiota. Faz uma pausa trágica e a pausa se eterniza, não consegue mais continuar falando. Talvez agora pudesse se decidir a contar para eles algo de Lyon. Inclusive, no pé em que estão as coisas, poderia acabar sendo oportuna uma manobra de distração e que lhes falasse da teoria literária forjada lá e também que, inventando um pouco, contasse que escrevera essa teoria em um papel de cigarro e que depois a fumou. Sim, que contasse coisas assim para os dois. Ou então que, para deixar as coisas ainda mais turvas, ele fizesse aquela pergunta que não lhes faz há anos: “Por que mamãe mudou para a religião católica? Preciso de uma explicação”.
Sabe que é inútil, que nunca responderão a isso.
Podia também lhes falar de Julien Gracq e daquele dia em que foi visitá-lo e saiu com o escritor para a sacada de sua casa de Sion e este se pôs a contemplar os raios e, com especial atenção, o que chamava de desencadeamento de energia equivocada.
Seu pai interrompe a longa pausa para dizer, com um sorriso de superioridade, que está perfeitamente informado da existência dessas nuvens cúmulos e de todo o resto, mas que em nenhum momento desejou que lhe contasse coisas que já havia aprendido em sua longínqua etapa escolar.
Segue-se um novo silêncio, dessa vez ainda mais prolongado. O tempo passa com uma lentidão extraordinária. Misturados à chuva e ao desencadeamento de energia equivocada, ouve-se perfeitamente o bater do relógio de parede que, quando estava em outra dependência da casa, testemunhou o seu nascimento e logo mais completará sessenta anos. De repente, estão todos quase imóveis, quase rígidos, exageradamente sérios. E, como de costume, nada exuberantes, muito catalães, à espera de não se sabe o que, mas esperando. Penetraram na mais tensa de todas as esperas de sua vida, como se esperassem o trovão que tem de chegar. Agora estão os três, de repente, completamente imóveis, mais à espera do que nunca. Seus pais são escandalosamente idosos, isso está mais que visível. Não é estranho que não se dêem conta de que não possui mais a editora e de que as pessoas o procuram menos do que antes.
— Eu estava falando do mistério — diz seu pai.
Outra longa pausa.
— Da dimensão insondável.
Uma hora depois, parou de chover. Dispõe-se a escapar da armadilha do mezanino paterno quando a mãe pergunta, quase inocentemente:
— E agora quais são seus planos?
Ele fica calado, não esperava a pergunta. Não tem nenhum plano em perspectiva, nem um maldito convite para algum congresso de editores; nenhuma apresentação de livro onde cair morto; nenhuma outra teoria literária para escrever em um quarto em Lyon; nada, mas nada de nada mesmo.
— Já sei que não tem plano nenhum — diz a mãe.
Atingido no seu amor próprio, deixa que Dublin venha em seu socorro. Lembra-se do estranho e assombroso sonho que teve no hospital quando caiu gravemente doente dois anos antes: um longo passeio pelas ruas da capital irlandesa, cidade na qual nunca esteve, mas que no sonho conhecia perfeitamente bem, como se tivesse vivido ali uma outra vida. Nada o assombrou tanto como a excepcional precisão dos múltiplos detalhes. Eram detalhes da Dublin real, ou simplesmente pareciam verdadeiros por causa da intensidade inigualável do sonho? Quando despertou, continuava sem saber nada de Dublin, mas tinha a estranha certeza, absoluta, de ter estado a passear pelas ruas dessa cidade durante um longo tempo e era-lhe impossível esquecer o único momento difícil do sonho, o momento em que a realidade se tornava estranha e comovente: o instante em que sua mulher descobria que tinha voltado a beber, ali, em um bar de Dublin. Tratava-se de um momento duro, intenso como nenhum outro dentro daquele estranho sonho. Na saída do pub Coxwold, surpreendido por Celia em sua indesejada nova incursão alcoólica, abraçava-se a ela, comovido, e acabavam chorando os dois, sentados no chão numa calçada de um beco em Dublin. Lágrimas para a situação mais desconsolada que até aquele dia vivera em um sonho.
— Meu Deus, por que voltou a beber? — Celia dizia.
Momento duro, mas também estranho, relacionado talvez ao fato de ter se recuperado do colapso físico e voltado a nascer. Momento duro e estranho, como se fosse um signo oculto, portador de alguma mensagem por trás daquele patético pranto dos dois. Momento singular pela força especial que assumia a intensidade mesma do sonho nesse lance — uma intensidade que só havia conhecido antes quando, em certas ocasiões, de maneira recorrente, sonhara que era feliz porque estava no centro do mundo, porque estava em Nova York — e porque, de repente, quase brutalmente, sentia que estava ligado a Celia além desta vida, um sentimento intransmissível e indemonstrável, mas tão forte e tão pessoal quanto verdadeiro. Momento que foi como uma pontada, como se, pela primeira vez em sua vida, sentisse que estava vivo. Momento muito delicado, porque lhe pareceu que continha em si — como se o sopro desse sonho procedesse de outra mente — uma mensagem oculta que o colocava a um passo de uma grande revelação.
— Amanhã poderíamos ir a Cork — Celia dizia.
E aí acabava tudo. Como se a revelação estivesse esperando por eles na cidade portuária de Cork, no sul da Irlanda.
Que revelação?
Sua mãe pigarreia, impaciente ao ver que ele está pensativo. E Riba agora teme que ela leia seu pensamento — sempre desconfiou de que, por se tratar de sua mãe, ela sabe lê-lo perfeitamente — e descubra que seu pobre filho está predestinado a se entregar à bebida outra vez.
— Estou preparando uma viagem a Dublin — diz Riba, sem mais rodeios.