Dolorida

Conto de Ronaldo Correia de Brito
Ronaldo Correia de Brito, autor de “Galiléia”
01/12/2005

Sete nós na camisa e o Pai-Nosso resmungado de trás pra frente. Era esse o conjuro das catimbozeiras de minha terra pra mudar de signo, se tornar diferente, melhor ou pior. Só isso. Nada de coração de bode preto, língua de víbora, cabeça de codorna, miolo de asno, fava-moura, pedra-ímã, flor de hidra, corda de enforcado, unha de cobra, sombra de mulher menstruada, nadinha de nada. Sete nós numa camisa, um espojadouro de cavalo, a encruzilhada em lua cheia, meia-noite de uma quinta pra sexta-feira. Arre! Cuspo de raiva! Fiz pior que tudo isso. Arribei-me do meu mundo distante, saí à cata de outro destino. E no que deu? Nisto. Uma cidade grande, uma rua, uma esquina, um viaduto, caixas de papelão, sacos plásticos, e a mesma fome me roendo por dentro.

Dei os sete nós na camisa e vesti pelo avesso. Cumpri o que ensinaram pra reverter a sina ruim. E agora, que sou eu? Dolorida. E esse homem morto aos meus pés? Um homem. Uma carniça que os urubus estão doidos pra comer, mas não comem porque não deixo. Eu, Dolorida. Esse é meu nome, mesmo. Parece nome de gente? Parece não, mas é o que carrego desde que nasci. Dolorida, para me dolorir bem muito. Xô, desgraça! Xô! Xô! Só porque o meu velho era um bêbado e vivia caído pela rua, pensam que vão levar? Levam não! Nem o corpo e nem a alma. O Diabo que experimente. Ninguém me passa a perna. Ele não prestava, nunca prestou, mas é meu. Podre do jeito que está é a única coisa que tenho. Xô! Xô! Vão agourar a mãe.

Ah, memória fraca e perdida. Esqueci tudo. Desde hoje eu tento me lembrar de uma reza. Queria rezar pra meu morto. Eu sabia tantas. Na minha terra se rezava pra tudo: pra chover, pra caírem os dentes, pra nascerem outros, pra tirar olhado de menino, pra espinhela caída e carne trilhada. Meu Deus, até pra casar! Como eu rezei pra casar com esse homem.

Meu São Roque
aqui estou aos vossos pés
sem me rir e sem chorar
a vós pedindo que me dês
um noivo para casar.

Meu São Roque, faz tanto tempo, era tão longe. Ainda existe aquele lugar? Um povoado com nove casas, ou dez, ou onze, nem me lembro mais. Mergulhamos no esquecimento e, quando acordamos, o Diabo aparece e carrega a gente. Mas este Ele ainda não carregou. Só se me levar junto. Meu velho não valia nada. Não dizia coisa com coisa. Desde que viemos embora e nos perdemos neste mundo grande de cidade, ele se apalermou. Meu São Roque, por que você não disse pra gente não vir? Agora tudo é longe. Está escuro sem ser noite. E este morto, aqui do meu lado, marca o meu tempo. O que foi que eu deixei de ver?

Um dia, olhando pela janela vi passar um homem cheio de feridas. O que é isso tão feio, ninguém falou a mim que existia? É a doença, responderam. Numa tarde, olhei de novo pela janela e vi uma mulher se arrastando, enrugada como estou agora. Disseram que era a velhice. Não é possível que ainda falte conhecer coisa pior.

Não! Não! Xô! Xô! Xô! Não levam o meu velho que eu não deixo.

Conheci a morte. Este homem caído aos meus pés está morto. Morto, mesmo. Duro, amarelo, frio, sem respirar. Quando São Roque me deu ele em casamento, não me disse que íamos ficar velhos, doentes, miseráveis e, por cima de tudo, morrer.

Se eu não viesse embora pra cidade, será que ele teria morrido? Teria, sim. Os de lá também morrem. Mas, pelo menos, aparece um conhecido, uma vizinha que ajuda a encomendar o corpo e rezar bonito. Aqui, estou sozinha. Sozinha com ele, que não valia nada, mas era meu marido.

Uma incelência…

Se passa alguma pessoa e escuta, acha que estou doida. Cantar para um morto… Só na minha terra. Lá, as pessoas adoecem e morrem em casa. Aqui, vão morrer nos hospitais.

Uma incelência…

Eu cantava a noite toda. Até pra vestir o defunto, peça por peça.

Arrecebe pecador
a derradeira camisa
os anjos tão te esperando
pra levar pro paraíso. 

E vestia a calça, as meias, a camisa… Meu Deus, eu não tenho nada pra vestir no meu homem! Ele só tem a roupa com que morreu.

Uma incelência da Virgem da Conceição
ai que dor, minha mãe
ai que dor no coração
ai que dor, minha mãe… 

Duas incelências…

Era assim mesmo, eu me lembrei. E tinha outra. Como era a outra? Meu Deus, se nós esquecemos quem fomos, o que será de nós? Eu não tenho nada, mas posso ter, pelo menos, a minha lembrança. Como era aquela outra, eu cantei muito quando minha mãe morreu!

Uma incelência
da estrela madona
galho de alecrim
rosa manjerona…

Eu me lembrei dessa, também. Escute, meu velho. Enquanto as mulheres cantavam pro morto, na sala, os homens bebiam cachaça no terreiro. Quando morria um menino, a gente levava pra enterrar e ganhava doce, bolo e ponche de laranja. Parecia que o povo se alegrava porque um anjinho tinha subido ao céu.

Está ouvindo, meu velho? Se você fosse um anjo eu fazia uma mortalhazinha de cetim branco, colocava você num caixãozinho azul e enterrava bem alegre. E quando fosse de noite, olhava o céu, procurava uma estrelinha e dizia: lá está ele piscando os olhinhos de anjo pra mim. Não é, meu anjinho papudo? Todo anjinho vai pro céu. Mas os velhos como eu e você podemos queimar no inferno ou no purgatório. Como se não bastasse o que já padecemos na terra. E se formos pro céu, ainda temos de passar no purgatório, pra vomitar o leite que mamamos. Minha mãe falava e eu lembrei agora. Tinha esquecido tudo. Sinto um arrepio só de lembrar. Não sei se é bom, nem se é ruim. Sei que estou lembrando.

Você está morto, eu estou viva, nós estamos sozinhos. Ou é o contrário? Sou eu que estou dormindo? Daqui a pouco chega um Anjo ou o Diabo pra levar você. Mas ninguém leva. Xô! Xô! O Anjo São Miguel vinha buscar as almas boas. O Diabo carregava as almas ruins. Bastava eu fechar os olhos pra ver o Satanás. As mulheres cantavam, os homens bebiam cachaça, o defunto não se mexia na cama. Os meninos se agarravam com medo às saias das mães. O vento apagava as lamparinas e o Diabo entrava de mansinho. Era preto, vestia paletó branco e tinha os olhos vermelhos. Xô! Xô! Daqui você não leva nada! Xô! Eu, Dolorida, não deixo. Xô! Xô! Xô!…

Ronaldo Correia de Brito

Nasceu no Ceará e vive em Pernambuco. É contista, romancista e dramaturgo. Autor do romance Galileia, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2009. Publicou ainda os volumes de contos Faca, Livro dos homens, Retratos imorais, O amor das sombras e os romances Estive lá fora e Dora sem véu. Tem livros e contos traduzidos para o francês, espanhol, inglês, alemão, italiano, búlgaro, húngaro, hebraico, e adaptados para cinema e televisão.

Rascunho