Dois contos

Leia "Sentimento nº 01403" e "Jardim", do livro "A teta racional"
Ilustração: FP Rodrigues
28/09/2016

Sentimento no 01403
Minha primeira filha tinha acabado de completar um mês. Eu estava na estação de metrô, voltando para casa. De repente, olhei em volta e percebi que todas as pessoas na estação eram filhos de alguém. Eles não eram mais homens nem mulheres. Eram filhos, apenas. O filho de uniforme cuidando das catracas. A filha de tranças procurando moedas na mochila. O filho de meia-idade carregando uma pasta de couro. O filho de cabelos despenteados falando sozinho. A filha de jaleco dormindo com o queixo enfiado no peito. Para alguém, em algum lugar, aquela era a pessoa mais importante do mundo. Mais importante do que o cara que inventou o fogo, a roda, a luz. E então senti o que todas aquelas mães sentiriam, individualmente e somadas. Uma comoção coletiva. Uma vontade de sair amarrando todos os cadarços, segurando todas as sacolas, ajeitando todas as roupas, erguendo todas as cabeças, penteando todos os cabelos, fazendo graça para todos os tristes. Para uma mãe, não importa o quanto o filho esteja bem, há sempre algo a ser feito. Um gesto que carregue a ilusão de salvar o filho de todas as dores do mundo.

Ilustração: FP Rodrigues

Jardim
A filha mora em outra cidade, está só visitando. Depois do jantar, senta com uma revista no jardim da casa dos pais. De repente, ouve os passos do pai atrás dela, a água do regador caindo nas plantas. Ela continua olhando para a revista, mesmo na penumbra, mesmo não enxergando direito o que está escrito, porque tem essa necessidade de quem mora sozinho de às vezes ficar no seu canto.

O pai chega mais perto dela e olha para cima e comenta sobre o céu, como o céu está limpo. Ela diz que tinha até esquecido a quantidade de estrelas que existem, onde ela mora são tão poucas por causa das luzes. O pai diz que ela deveria visitá-los mais. Ou, melhor ainda, voltar a morar com eles. Ela diz: quem sabe, pai, quem sabe um dia. Depois os dois ficam em silêncio, só a água caindo numa planta e na outra, uma cigarra chiando lá longe. Até que o pai termina o que estava fazendo e diz boa-noite para a filha.

Antes de ele entrar, ela pergunta se ele sempre faz isso, regar as plantas tão tarde. Ele diz que não, nunca, e os dois sorriem um para o outro.

Giovana Madalosso

Nasceu em Curitiba (PR), em 1975. É autora de A teta racional (livro de contos finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional), e dos romances Tudo pode ser roubado (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura) e Suíte Tóquio.

Rascunho