Dois contos de Rinaldo de Fernandes

Leia os contos "O último segredo" e "Passarinho"
01/11/2001

O último segredo

 A mulher passa pelas pessoas, atropela-as, pede passagem, corre, cruza o sinal, atravessa a praça, investe contra o grupo ali arrodeando o rapaz caído, o rapaz sujo e sem camisa, o corpo cortado de rajadas, a mãe, o vestido frouxo, uma só sandália, despenca sobre o corpo, apanha-lhe o rosto, beija-o muito, as lágrimas pendem, grudam-se aos cabelos do rapaz, ela grita, Joca, meu pai do céu, e beija-lhe a orelha, o sangue escorre pelo calçadão, ensopa o canteiro da amendoeira ao lado, meu filho, não faz isto, Joca, as pessoas olham, encostam-se mais, os rostos postos nas janelas do ônibus, um carro de som anuncia uma promoção de tesouras no beco, já pisca o luminoso do colégio, aí era um peste de ruim, diz um velho coçando o queixo pra uma comerciária ao seu lado, era traficante e dizem que estuprou três tias, a mãe debruçada sobre o corpo canta-lhe uma cantiga engrolada, o menino ri, a comerciária tira o espelhinho da bolsa, aperta o dedo na ruga da testa, o barro grudado nas pernas do morto desprende-se, a mãe canta mais, cheira a mão do filho, cheira-lhe os olhos, chega mais um carro da polícia, as pessoas se afastam aos tropeços, a mãe fala ao ouvido do morto, diz-lhe um segredo que faz o sargento, a arma na mão grossa, se baixar pra tentar ouvir, a mãe tosse, afunda os dedos nos cabelos duros do rapaz, não vai, não faz, filho, ô desgraça, meu Deus, baba o ombro do morto, cola o rosto no rosto dele, a mão apoiando-se no cimento com tocos de cigarro, os dedos empapando-se no sangue, a mãe chama baixo o nome, Joca, Joca, um flash espoca, o vestido quase que veste o morto, o soldado rosna pro grupo se afastar, espanta o menino, a mulher volta a tocar a boca na orelha do filho, o sargento talvez queira o segredo, porque volta a se baixar, os músculos do braço tremendo, mas só as formigas, ali pelos capins nas rachaduras do cimento, devem ouvir algo, só as formigas já passando nos pés do morto, e novamente o grito da mulher rompe, foge pra bater nos rochedos, na madeira tosca das portas dos barracos na barreira ali perto, a mãe fala ainda uma vez ao ouvido do morto, enquanto o carro de som grita grita grita bem alto que é pro sargento, agora acocorado junto ao cadáver, não saber não escutar jamais aquele último segredo.

Passarinho

Jorge, vindo do Rio Grande do Norte, chegou em São Paulo para trabalhar num bar, tornou-se um garçom risonho, torcedor do Palmeiras, com quem muitos tiravam brincadeira, o Dr. Valadares, cliente antigo, se encostava na mesa isolada do canto, embaixo da TV, pedia um uísque, dizia alto para Jorge, teu Palmeiras vai mal, hein?!, Jorge atirava o pano da limpeza no ombro, resmungava, dizer isso é até um pecado, Jorge morava num quarto nos fundos do bar (a cama, a mesinha com a foto da noiva e um rádio-relógio), a roupa ele mesmo lavava no tanque rachado do quintal, o que Jorge ganhava mandava para a noiva juntar para o casamento, às vezes lembrava-se das praias brancas de Natal, mas dizia que queria se casar em São Paulo, já estou acostumado aqui, uma noite Tadeu, o dono do bar, depois que Jorge, parando de recolher as cadeiras, conversou durante cinco minutos com o último cliente, grampeou com firmeza as notas dos pedidos, disse que Jorge estava ficando muito preguiçoso, Jorge franziu a testa, dizer isso é até um pecado, Tadeu voltou a dar pancadas no grampeador, deixa de papo, você é só aí conversando, Jorge passou o pano na mesa, socou o guardanapo usado no copo com um resto de cerveja, nada disso, eu dou é atenção pro povo, Tadeu empurrou as notas com o grampeador na gaveta, puxou a caneta da orelha, é só conversando, caralho!, Jorge no quarto arrumou as roupas, na tarde seguinte pediu as contas e, dois dias depois, foi embora, Dr. Valadares chegou no bar no sábado, chamou o uísque de costume, o novo garçom veio, limpou-lhe a mesa, trouxe a bebida, Valadares tomou uma, duas, três doses, na quarta virou-se para Tadeu, ô Tadeu, e o Jorge?!, Tadeu sorrindo pôs a mão do lado, escondendo-a para que nenhum cliente notasse, e fez um gesto indicando que Jorge tinha voado, Valadares também sorriu e perguntou baixo, passarinho?, Tadeu respondeu, é, passarinho, Valadares então passou a mão na toalha, voltou-se para o novo garçom, um mineiro de Pouso Alegre, e disse, a Lusa amanhã leva, hum?!, o garçom sorriu e olhou para a rua, onde uma chuva fina começava a cair.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho