Banheiro público
Nunca quis quase nada do que tenho. No entanto, chovem-me situações, embrulhos, comendas ou encomendas que não pedi, não me impressionam, coisas que nem sequer imagino como usar. Falando assim, parece até ser eu alguém de porte senhoril, que fico no meu trono ansiando — sem demonstrar — por presentes, medalhas, motivos para me honrar. Não os quero, juro. Hoje, sim, agrada-me de fato uma coisa: a de estar na tepidez das águas. Enchi a banheira, procurei meus sais e ais, para assim melhor gemer de uma satisfação constantemente rediviva enquanto eu ali permanecesse indiferente a tudo o mais. Tenho mais o quê de sobra? Ah, possuo meia tarde, um naco de noite, mais o quê?, mais nada… E ainda nem cheguei ao vértice da velhice para que essas contagens regressivas passem batido pelo meu faro, pois é… Num repente abro a portinhola, estou de pé, sem roupa diante do espelho, pensando que o banho já não mantinha a temperatura que me fez quase esquecer a demasia além dessas paredes. Poderei me contentar enfim na frente de minha figura fuinha com a qual preciso me haver e que se dá agora desidratada, febril dentro do espelho? Campainhas, violões noturnos, celulares, pregões matinais, tudo isso congestiona o ar lá fora, eu sei. Há um resquício qualquer lambuzando as paredes, meu próprio tato, um resquício do que eu não saberia rememorar já que acabo de me dar conta de que meus seios são estrábicos, ambos os bicos olham pra dentro como se fizessem graça diante dessa criança que ainda não acabei de ser, pois é… Depois apalpo a barriga e me pergunto se o parto não se faria já, comigo aqui sozinha, por que não? Deito no piso gelado do banheiro, com cuidado, o feto se remexe, me escoiceia, e nessa onda começa a me sair por entre as pernas já sonâmbulas, é ele, o primogênito, aquele que me salvará de minha própria intriga, eu sei: terei uma coleira-de-ouro-mas-coleira-não-se-enganem, com ela guiarei essa criança pelas mais fugazes cercanias, até logo mais ao dar meu peito, esse mesmo, esse que olha como o outro para dentro, esse que olha da esquerda para a direita e não feito o outro ao lado com a pupila castanha e túrgida fitando em sentido inverso — neste daqui sim o nenê sugará o meu veneno, ah, meu deus!, me acuda que sou louca, sem marido, companheiros, família, aqui deitada nesse chão gelado do banheiro público da praça da Alfândega, cercada por suores de urina passada, esse o “resquício” do qual tentava falar, pronto!, alvejei-o: é pura amônia perfurando minhas narinas, ah se é, que bom!, desmaio… Entra a zeladora desse pedaço de serviço público, ela parece não acreditar no que vê, dizem que é lésbica, que por isso escolheu esse trabalho de estar bem próxima da intimidade de todas as mulheres. Ela talvez seja feliz, quem sabe nela me espelhe até me descolar de mim? A vigia do banheiro se aproxima, isso é o que acontece de verdade —, pede a minha calma, pois ela se encarregará de tudo numa azáfama cujo desenho de fato não consigo interpretar: diz que eu não tema, deixe com ela que ela saberá o que fazer de mim, agora, enquanto lá fora entra a cair a tempestade e os cavalos dos PMs relincham —, eu ouço toda tonta de prazer com o ápice dessa longa espera convertida enfim em muito mais, eu ouço os cavalos relincharem perturbados com os raios, trovões; imagino-os empinando as patas dianteiras, derrubando talvez os dois brigadianos que guardam a praça pela madrugada e agora se apalpam para ver se se feriram com a queda, o que quê houve com seus corpos já que o meu aqui responde com um gemido à suavidade em que esse banheiro se transformou todo forrado de algodão, eu sei, eu vi, eu me engasguei, chorei, até gozei, no duro —, se é que ainda sei: quem-sabe-sabe, eu mesma já me esqueci do que roubei de dia, direto o escondi e em mim por certo esfarinhei…
O entendido
Dividir um quarto com uma pessoa que só então eu passaria a conhecer, isso era a primeira vez que me acontecia. Entrar no escuro, tatear, saber que há alguém adormecido na cama ao lado, ouvir um ressonar sem saber exatamente se é aquilo mesmo que você ouve ou se tal resulta da aspiração vaga por um outro corpo, seja ele qual for, não importa, eu vinha de uma longa viagem em que pouco ouvira a minha própria voz se dirigindo a uma outra, só nos meus solilóquios ou em ávidas canções eu pudera escutá-la, é sim… Num repente encontrei algo que, pelo tato, tinha o jeito de uma medalha. Puxei-a para mim, um instinto que fez uma lâmpada nua e pendurada acender: era a corrente suspensa que acendia a luz fraca que ficava ao lado justo da cama que me cabia naquele quarto abafado. O homem parecia dormir profundamente. De fato, ressonava. Mas eu o enxergava muito pouco, já disse que a iluminação era fraca, pegava mal e mal a minha cabeceira — ou aquilo que eu teria de cabeceira sabe lá por quantas noites. Antes de ficar assim, eu freqüentara algumas festas, antes de voltar enfim para Porto Alegre, e me tornar como que louco brigando com muita gente pelas ruas, sim, antes disso eu fazia passeios noturnos pela avenida Nossa Senhora de Copacabana, claro, no Rio, onde eu morava então —, e passeios como esses naquela época poderiam desencadear encontros e desses encontros incursões por apartamentos de estranhos nem sempre para intimidades a dois, tantas vezes para pequenas reuniões festivas onde um baseado baboso passava de mão em mão, feito uma cuia de chimarrão que alguns invariavelmente queriam saber se eu continuava a beber no Rio… Como dizia, coube-me envelhecer cheio de delírios urbanóides pelas ruas de Porto Alegre; em algumas ocasiões, quando o surto refluía, eu me perguntava se merecia esse fim, eu que fora um bom rapaz, amigo dos meus amantes, visitante de tantos domingos na casa paterna de meus namorados, fossem esses puídos lares em Valença, na Ilha do Governador, em Paquetá… A sorte é que quase sempre havia uma brisa naquelas tardes quentes, as brisas corriam primeiro por várzeas por onde a garotada jogava bola ao som dos maiores palavrões para só depois chegar à porta dos lares ancestrais dos meus morenos em flor. Era comum então o namorado me levar ao quarto de sua infância e adolescência, fechar disfarçadamente a porta e ali tascar-me um beijo, bolinações de amores em botão. Tergiverso um pouco, eu sei. Pois vim aqui para essa noite encontrar a companhia de um outro homem num quarto abafado do bairro Tristeza, em Porto Alegre, na cidade onde hoje vivo como já falei, tendo crises onde exorto os passantes a não serem dissonantes do que seria o melhor. Sou pregador irado ou virei demente? Não importa, importa que estou aqui nesse quarto ao lado de outro homem que nunca vi. Ele ressona parece que satisfeito em seu sono. Vejo as veias de suas mãos. Vejo seu púbis inchado por algum sonho manhoso ou tão-só pela pressão da bexiga cheia, não mais… Já não sinto nada por homens belos. Este é um deles. Fazer ou não sexo, agora, já não me é um dilema. Me omito, é o limiar da velhice, sei, repito, repito sempre para não esquecer, e estou cego do olho esquerdo. Por isso voltei para o meu cenário de nascença, este que guardo de cor. De manhã abrem a porta do quarto. Toda gradeada, vazada. Percebo que não dormi nada. Passei a madrugada olhando para o meu colega. Quem abre a porta é um cara fardado. Com este, sim, eu iria para um canto e me esforçaria por excitá-lo, excitá-lo até morrer. Por esse homem eu ficaria preso a vida toda, se eu tivesse como tê-lo comigo para satisfazer-lhe os caprichos do corpo e da alma. Se com ele eu pudesse reavivar milagrosamente as noites de Copacabana, a cada dia um cara novo dentro dele me reconstituiria o ardor da pele, o querer. O homem diz que eu já posso sair. O meu colega abre os olhos. Seu cheiro de suor me embriaga um pouco. Mas fica por aí, nada mais… Eu obedeço ao rapaz que deve ser um carcereiro ou coisa que o valha. Eu obedeço simplesmente a tudo. E se aqui ficar, eu terei esse rapaz de companhia. Faz algum sentido ou estou muito velho para ilusões? Por via das dúvidas, lhe sorrio. No primeiro espelho fitarei a minha aparência. Sou calvo, mas botei os dentes, meus lábios se propagaram mais pela face, se refizer um pouco mais minha identidade e ela me parecer de algum modo apetecível, quem sabe ele me dará corda e eu responderei com zelo. Então…
João Gilberto Noll mora em Porto Alegre. É autor de A céu aberto, Berkeley em Bellagio, entre outros. Os contos aqui publicados integram seu próximo livro.