Concerto para arranha-céus
Dissipações na bruma da tarde: a cidade me enerva ante a selva monolítica. Uma geografia sinistra nesse ambiente retórico de fumaças. Fuliginosa é a manhã que em vão aguardo. E mais que estuprar os tímpanos, um concerto de vozes metálicas e ruídos cambiantes se sucedem inconscientes. É uma fera enjaulada na solidão de muitos ninguéns. Os homens deliram na miséria recalcitrante de cada dia. Ruas, avenidas, becos e vielas não escapam à aquarela insólita: artérias de cinza e enxofre, canais divergentes onde fluem rios de vivos mortos que se entrechocam e não se olham. Essa longa convulsão de anonimatos, pulsações de auroras que não vingam, turismo de urubus sobre as lixeiras, gente como feras se nutrindo do inservível, poluição de semáforos e assembléia de pedintes. No abril em que me espelho, a metrópole regurgita seus fantasmas, labareda e carnificina nos rostos pressurosos dos meus pares. Somos feras intangíveis nessa coreografia de degredos.
História comum
Mal rompeu a manhã, Dasdores chega em casa do serão, depois de comer o pão que o diabo amassou naqueles teares da Manufatora. A noite inteira foi um suplício: mato ou não mato aquele desgraçado? A vida era curta demais para um desagravo assim tão derradeiro. Quando um não quer, dois não brigam, dizia seu falecido pai. Nem filho arranjou, era nova, podia arrumar outro homem, ouviu, naquela noite fortuita, do Abdias contramestre.. Esquentar a cabeça com o Osvaldo? Aquele traste já nasceu torto, pensou. Decidido. Entrou de manso-mansinho, apagou a luz da sala, ele dormia ainda com o cheiro da cachaça da noite anterior, pegou as malas e picou a mula. Quando deu meio-dia, Osvaldo pulou da cama esfregando os olhos, a ressaca tinindo em seu fígado, a boca amargando e um vazio enorme dentro de casa. Dasdores estava bem longe.