Dois buracos para os meus olhos

Conto de Rinaldo de Fernandes
Rinaldo de Fernandes, autor de “O professor de piano”
01/02/2008

1
Eu perdi a namorada quando fui mijar no banheiro do bar. Quando vi, ela já dobrava a esquina com alguém mascarado de lata. Fazia duas horas que eu conhecera a garota dali mesmo, de Olinda. Fiquei triste porque eu achava que as pessoas viam que eu tinha o vírus. Mas, porra, eu não queria enganar ninguém. Não queria mesmo! Por exemplo, eu contei logo pro Marcos e pra Tânia. De qualquer modo, caminhei pela calçada, misturei-me de novo à multidão. E não abracei mais ninguém.

Nós vínhamos agora lá de baixo, do bloco que saíra às 10 horas. Já era tarde de quarta-feira, o sol descia sobre as paredes, as calçadas sujas — e as ruas estreitas fechavam a circulação do vento. Subíamos numa rua calçada com pedras irregulares, umas bicudas, outras parecendo o casco de um jabuti. Tânia disse em certo momento:

— Ali tem um bar, vamos beber alguma coisa.

— Boa idéia — disse Marcos.

O bar ficava debaixo de uma árvore grande — e nele havia umas mesas baixas, feitas de troncos bem talhados e escuros. Nas paredes, gravuras, quadros com enormes borrões. Peças feitas de couro. Cortinas de cordas. Mas o melhor dali, eu achei e também Tânia, era a vista dando para o mar, lá embaixo. Marcos olhava os telhados enegrecidos.

Pedimos cerveja e peixe. Poucas pessoas passavam na rua. Conversávamos, ríamos. E sentíamos que o carnaval já fugia de nós. Então Marcos apanhou o copo, disse:

— Um brinde às doidas!

Achei que ele estava zombando da Tânia. Marcos e Tânia namoravam há uns três dias, mas desde o dia anterior que eles se arranhavam. Se beijavam e brigavam. Discutiam e fumavam. Ali na mesa brindamos, os três:

— À arvore!

— À vida!

— Ao diabo!

Eu segui depois para o banheiro no quintal do bar. Havia ali algumas bananeiras, um monturo com copos descartáveis, cacos de vidro. Uma cadeira quebrada. Fumei por trás de umas folhas, olhando a copa das mangueiras adiante. Quando voltei para a mesa, Marcos comandou:

— Vamos.

Pagamos a conta e descemos pela rua calçada com cascos de jabutis. Fomos andando para a pousada do outro lado da cidade, perto do mar. Marcos e Tânia caminhavam na minha frente — e agora se apertavam, se beijavam. Eu caminhava só, puxando os meus tênis pesados. Minha camiseta molhava-se com o suor. As andorinhas piavam sobre os casarões, as torres das igrejas.

Subimos a calçada alta da pousada, a escada escura. Marcos foi com Tânia para o quarto deles. Eu fui para o meu, arrumar as minhas roupas. Abri a janela, olhei a rua, os quintais com roupas estendidas nos fios. O quarto de Marcos e Tânia era encostado ao meu. De repente ouvi os dois transando, os baques na cama, os gritos de Tânia. Aí, olhando os muros pela janela, eu sentei na cama. Comecei a me masturbar. Em pouco tempo as gotas pulavam sobre as formigas passeando ali no chão.

Depois botei as bermudas, as camisetas e a toalha na mochila. Desci para a sala de recepção da pousada. Marcos ia para Salvador. Tânia, para Fortaleza. Eu seguiria para o Rio. Ali na calçada nos despedimos. Eles foram por um lado da rua — e eu pelo outro. Antes de dobrar a esquina, percebi que eles largavam as mãos, também se separavam. Marcos entrou num beco, Tânia em outro. Para mim, naquele fim de tarde, o sol ensangüentando as paredes, restava a rua me comprimindo. A rua longa, já vazia.

2
Mas só dei uns dez passos — e percebi que alguém abrira uma janela num primeiro andar. A pessoa me observava, eu logo senti. Então parei, olhei. Era ela — e eu ainda chateado. Passando a mão nos olhos, ela fez:

— Oi.

Eu respondi:

— Oi.

Ela pegou a planta, botou na outra ponta da janela.

— Você já está indo?

— É.

Voltou a passar a mão nos olhos.

— Gostou do carnaval?

— Sim.

Puxou a planta novamente, pôs no mesmo lugar de antes.

— Pois boa viagem pra você!

Fechou com firmeza a janela. Andei na calçada. Nas pedras do calçamento barulhou a lata de cerveja que eu chutei.

Claro, ela fechara a janela porque já sabia, tinha notado pela manhã. Um cara com o vírus, eu pensava caminhando, já é visto como um morto. Um condenado que mal se suporta em pé. De qualquer forma, eu fui seguindo pela rua. Adiante, nos capins de uma praça, tinha um cachorro deitado. Quando fui passando perto dele, me curvei, segurei-o pelo rabo. Ele se dobrou, se debateu, tentando me morder. Saí arrastando-o pelo cimento da praça. Ele grunhia, arregalava os dentes, mostrando as gengivas escurecidas. Uma velha meteu a cabeça numa janela:

— Deixa o pobre, miserável!

Soltei o infeliz. Ele pegou o beco, desceu a rua correndo. E eu ri. Eu ri muito, vendo aquele coitado ali na ladeira numa carreira estabanada, torta. Mas também fiquei com pena dele, não entendi bem por que eu fiz aquilo. A velha ainda disse, antes de eu dobrar a esquina:

— Sacana!

Já pegando a parte baixa da cidade, entrei num bar. Vazio. Sentei numa mesa de canto, pedi uma cerveja. Fiquei olhando pela porta um pedaço de céu. Uma nuvem passava, já uma estrela tremia. Achei interessante, ali de perna cruzada, como uma cidade se esvaziava assim tão de repente. Tive fome, pedi um bife acebolado. O único garçom ali gritou o tira-gosto pela janelinha — e derramou-se numa cadeira, a cara cansada.

O bife veio logo. Pedi mais uma cerveja — e fiquei mordendo a carne. Pegava a faca de ponta fina, passava-a na rodela de cebola. Ainda com a faca, escondendo-me do garçom, furava a madeira da mesa, desenhava um rosto de mulher. Em certo momento me deu vontade de mijar. Me levantei, segui para o banheiro. Meu mijo forte cortou no meio a bosta dentro do vaso. Tapei o nariz. Peguei a lata ali cheia d’água, derramei-a de vez sobre a merda.

Quando voltei para a mesa, ouvi um barulho, um ritmo. Era o som de um bloco. Cheguei-me à porta do bar — e lá vinha aquele que imaginei ser o último bloco do carnaval. Na frente, um estandarte preto rodopiando. O bloco não era grande, mas vinha animado, a corneta poderosa. Fiquei esperando que eles passassem. Algumas pessoas entraram no bar, gritaram por cerveja, pediram água. Ainda na porta, de repente eu a descobri. Eu vi que ela já andava ali, no meio daquela folia. Sim, era ela, metida num short jeans bem curto — e estava só. Fui até o balcão, estirei uma nota pro garçom, fiquei esperando o troco. O garçom, muito ocupado, demorava. Aí, é curioso, fiquei pensando se dava pra eu fazer ainda alguma coisa por ela. Sentei-me de novo na mesa, espetei um último pedaço da carne — e veio-me uma idéia. Apanhei a faca no prato, fui para o banheiro, tranquei-me. Peguei a lata que havia ali, furei dois buracos nela. Dois buracos para os meus olhos. Enfiei-a na cabeça — e saí do bar.

3
Pulei no meio das pessoas. Em pouco tempo eu já me encostava nela. Quando o bloco dobrou uma esquina, abracei-a. Ela virou-se, sorriu. Então seguimos agarrados — e mudos. Até que ela, botando a boca junto do meu ombro, perguntou o meu nome.

— Lata! — respondi.

Ela riu. Continuamos abraçados. Eu apertava a mão morna dela, ela olhava-me os dedos, o braço. Com medo de ela desconfiar, eu havia tirado a camisa, envolvido-a na mochila. Seguíamos — unidos e calados. De vez em quando ela perguntava:

— Qual o teu nome, cara?

Eu fazia que tropeçava. Puxava-a para mim — e íamos gingando, as mãos dadas. Teve um momento em que ela se curvou, tentando ver meu rosto por baixo da lata.

— Ah, cara, quem é você? Você é de onde?

Eu passei-lhe a mão no cabelo. Ela se afastou um pouco:

— Diz o teu nome, rapaz!

O bloco saiu num largo, as pessoas nas sacadas já escuras. Nuvens pretas corriam no céu. Eu agora tinha vontade, ali do lado dela, de tirar a lata da cabeça. De mostrar-me. Mas, sei lá, eu tinha medo. Eu tinha medo que ela me visse. De repente ela tomou a minha frente. Disse, olhando-me pelos buracos na lata:

— Eu não vou ficar mais com você. Você não me diz quem é!… Tira essa lata do rosto, menino!

Fazendo que amarrava o cadarço do tênis, eu falei:

— Mais à frente eu tiro.

— Se você não tirar, eu te deixo. Eu não posso ficar com um cara andando o tempo todo com uma lata na cabeça!

O bloco atravessou o largo, começou a subir uma ladeira. No meio das pessoas, eu mexia o corpo. Ela ia calma, vez por outra me olhava, acho que já desconfiando. O garoto vendendo bebidas passou na nossa frente. Ela aproveitou:

— Vamos tomar cerveja?

Eu fiz com o dedo que não. Mas ela pagou duas latas, meteu uma nas minhas mãos. Não bebi, segui com a cerveja na mão. Ela se irritou:

— Tira a porra dessa lata da cabeça, bebe aí!

Mas eu, definitivamente, não queria que ela me visse. Não queria! Ela aí puxou a cerveja de minha mão:

— Eu não vou mais ficar aqui! Tchau!

E desceu a ladeira. Ali parado, o bloco passando por mim, eu fiquei vendo-a seguir. Ela agora ia solta, correndo. Então eu comecei a rir. Eu ri muito, vendo aquela coitada ali na ladeira, esbarrando nas pessoas, como se perseguida. Eu ria muito com aquilo. Eu ria tanto, que comecei a chorar. As lágrimas começaram a pular no meu rosto, a descer pelo pescoço. As lágrimas grudavam-se na lata.

De repente percebi que o bloco já tinha passado, sumira. E eu ali, parado na esquina. A ladeira já sem ninguém. Então fui andando para o ponto do ônibus. Um cara com o vírus, sua desgraçada, não quer dizer que não tem rosto, que já desapareceu; ele tem nome e bebe cerveja — eu pensava nisto indo agora por uma rua mal iluminada. A noite estava fechada, a enorme nuvem escura sobre os casarões, um vento forte. Cruzei uma pequena ponte, a água podre lá embaixo. Adiante, já na avenida, passei na frente de uma funerária. Tinha um homem cochilando na escrivaninha, ao fundo, perto dos caixões. Eu não tenho medo de funerária. E fiquei vendo um pouco o homem ali, dando cabeçadas. Ele devia ter brincado em algum bloco.

Cheguei na parada, o ônibus amarelo veio logo. Subi, sentei-me no primeiro banco que achei. Olhei rápido pros lados do mar. O cobrador, rosto magro, lançou um olhar cansado para mim. Talvez ele não achasse graça, em plena noite de quarta-feira de cinzas, os pingos da chuva começando a bater nos vidros do ônibus, num indivíduo ainda carregando uma lata com dois buracos disformes enfiada na cabeça.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho