Poemas de Dinu Flămând

Leia os poemas traduzidos "Introitus" , "Amor fati", "Anima mal nata" e "Exame de sangue"
Dinu Flămând, poeta romeno
01/05/2009

Tradução: Sonia Coutinho

Introitus

com espanto
minha querida
com toda minha raiva e com todo
meu espanto
entrelaçados em seu colo
com raiva e com mais do que
toda raiva e todo meu espanto
e com mais do que todos os detritos que o
bloco de gelo da minha vida vai arrastando atrás dele
com um silêncio que não encontra sua mudez
e com um tremor de mãos vibrantes
e com toda a minha gaga urgência, salivando
a falsidade verdadeira das minhas falsas-verdadeiras palavras
que saem como sonâmbulas com o camisão de dormir da morte
e com todo o ardor grudado ao meu medo
de uma massa de madeira de cerejeiras azedas e molhadas sob uma chuva antiga
e com tudo o que não sei sobre o que penso que sei
e com toda a minha força eu poderia estar ausente de mim mesmo
ingresso clandestinamente na serenidade que
a surpresa da sua existência traz para a minha vida
eu me adio indefinidamente dentro de você

Amor fati

sabemos que prazer não significa também verdade
mas quem ainda desejaria que significasse,
quando conseguimos apenas não renegar a esperança

a verdade é que estou envelhecendo
mas a esperança evita iluminar
com demasiada insistência o incompreensível beco sem saída
onde o homem encurralado não pode mais escalar a parede
nem passar adiante dos seus perseguidores

amor fati ou a escolha de Adão confrontado com
a única Eva
é claro
mas só porque se segue a interminável expedição
de um para dentro do outro
e essa perda através da dupla realidade da ignorância
termina como a sobra de um início
uma felicidade verdadeira-mentirosa

e se você entra em minha vida agora
e é a nuvem que apaga por um momento
o ponteiro de sombra do relógio de sol
não me esqueço de que o tempo continua a trabalhar
secretamente
amor mio
caríssima

Anima mal nata

o vento levanta de repente um redemoinho de fumaça
um gato caminha a passos lentos pela beira do muro
pensando que talvez os pardais tenham esquecido de como voar

leio sobre os infelizes
que herdam a anima mal nata
como um sinal de nascença mas na alma

enquanto a mesma confusão paira — o côncavo
da interioridade começando a jorrar para fora —
sigo adiante com igual tristeza carnívora

sem saber por que dou de testa com todas as pedras no meu caminho
quando ficaria satisfeito com a clara sombra da sua axila
e com o migratório triângulo embaixo do seu ventre…

Exame de sangue

Minha carne viva é meu espírito
minha dor
bioespiritual
na pura revolta dos seus sentimentos

sua paz instintiva
assim como a enormidade do insuportável
conseguem afastar os limites

com uma pétala  de lírio abro em mim
as mais inocentes sensações lascivas
e como ninguém pertence a ninguém
eu desejaria uma mulher com braços de feno
esfolada dentro de mim e eu próprio esfolado dentro dela

tragam-me a mais feia
a fêmea do chacal
aquela de quem se pode desapossar
apenas dessa tristeza que ninguém jamais oferece

e então eu empurraria em suas entranhas nevoentas
o meu frio
biodegradável

estou todo doente com arranhões oblíquos
com aftas de palavras
na mucosa da minha boca

bebo o petróleo das lâmpadas
em todos os bordéis livrescos
atormento minha baixeza
com excitações mecânicas

dêem-me o álcool-limite
a fúria que se aninha na veia de cada doente etílico
quando sua musa aidética vem pedir-lhe
um exame de sangue

meu instinto suicida copula inefavelmente
com essa noite de inefável angústia…

Dinu Flămând
Nasceu na Romênia em 24 de junho 1947, em Susenii Bârgaului, aldeia no Norte da Transilvânia. Começou os seus estudos na aldeia natal, a seguir em Brasov, e licenciou-se em letras em 1970, na Faculdade de Fililogia de Cluj-Napoca. Participou nos anos de estudante da criação da revista Equinox em torno da qual se agrupou durante várias décadas um dos mais importantes movimentos literários da Romênia, marcado desde o início pelo espírito anti-dogmático e pela abertura a valores humanistas universais. Em Bucareste, trabalhou para diversas editoras e revistas literárias. Publicou nessa época poesia, ensaio, reportagens e artigos de crítica literária mas, à medida que o clima político e cultural tende a se tornar-se cada vez mais sufocante e o controle da censura a esmagar qualquer manisfestação de originalidade ou independência, orienta-se cada vez mais para traduções de grandes poetas como Fernando Pessoa, César Vallejo, Carlos Drummond de Andrade, Umberto Saba, Samuel Beckett, Pablo Neruda, Martin Booth, Herberto Helder, Miguel Torga, Sophia de Mello, Michel Deguy e outros — alguns deles incluídos numa antologia de poesia latino-americana, publicada nos anos 80 em colaboração com o poeta chileno Omar Lara. Estreou em 1971, com o volume de versos Apeiron, seguido de Poezii (1974) e Altoiuri (1976). Com Stare de asediu (1983), o tom da sua poesia torna-se mais polêmico e a crítica ao regime repressivo mais transparente, de onde resulta que a censura impõe numerosos cortes, deformações ou mesmo supressões nos seus textos. Publica dois livros de crítica: Introdução à obra de G. Bacovia (1981), um dos maiores simbolistas romenos, e A intimidade do texto, em 1985. Obtém neste mesmo ano uma bolsa da Fundação Gulbenkian, e começa a tradução sistemática da obra de Fernando Pessoa, que só será publicada após a queda do regime comunista na Romênia. Em 1989, obtém asilo político na França e denuncia na imprensa francesa o regime opressivo do seu país. Atualmente é jornalista em Paris, na Rádio France International. A coletânea de poesia Viaţă de probă (1989), com numerosos poemas inéditos e outros restituídos em versão não-censurada, marca a sua reintegração na paisagem literária do país natal.Seguir-se-ão os volumes Dincolo (2000), em edição bilíngüe, com tradução para francês de Pierre Drogi e ilustrações de Neculai Paduraru, Migraţia pietrelor, uma antologia (2001), com uma segunda edição em 2004, Tags (2002), Grădini (2005), em edição bilíngüe romena-francesa, com tradução de Claudia Fontu e Frigul intermediar (2006). Recebeu prêmios da União dos Escritores da Romênia pela sua poesia e igualmente pela tradução do Livro do desassossego, de Fernando Pessoa, assim como o prêmio nacional Frontiera Poesis. Publica regularmente em revistas literárias e em jornais diários na Romênia e no estrangeiro, e traduziu ainda livros de Jorge Semprun, Philippe Sollers, Jean-Claude Guillebaud, entre outros.
Sonia Coutinho

Autora de Os venenos de Lucrécia e O último verão de Copacabana, entre outros.

Rascunho