Dies irae

Conto inédito de Ronaldo Cagiano
30/04/2019

Que coisa é esta que assoma o animal em nós?
Ésio Macedo Ribeiro

Não faz muito tempo, mas na lembrança do lugar está encravada a memória daquele assassinato. Uma estranha sucessão de tiros — seis! — à queima-roupa. E o vereador quedou, pedindo a deus e ao diabo que não o levassem àquela hora. Não soube por que estava sendo alvejado, por que seis tiros esvaziando o tambor, impiedosamente desferidos pelo coveiro-mor, aquele que, por ironia do destino, havia sido despedido por ele da chefia da necrópole municipal.

A cidade não esqueceu aqueles estampidos sucessivos e dramáticos ricocheteando pela Praça Santa Rita, ecoando, como turbilhão, pela Rua Major Vieira, chegando à Avenida, até aos silenciosos quintais à beira do Meia-Pataca, aqueles tiros violando a mesmice da tarde.

Curral da velha política clientelista e arranjos de alcova, a vidinha opulenta de mediocridade, provincianismo e alienação foi sacudida: adversários e correligionários nunca esquecerão o olhar estupefato do edil caindo aos prantos, pedindo clemência-misericórdia-perdão-e-tudo-o-mais nessa hora de projéteis ensandecidos cuspidos de uma Shmit e Wesson calibre 38, pelo amor de DeusJoão, não faça issoestá havendo um mal-entendido, não fui eu quem te mandou embora, foi ordem do Tar…, ele não conseguia alinhavar uma palavra, uma ideia, foi o Mar… Spínnnnnnnn…. não, não conseguia dizer de quem partiu a ordem da demissão, me per… e a voz da petulância já não tinha forças para concluir o último suspiro, a frase nem podia conter a ira do assassino, a dureza sinistra do ódio sentenciando pelas próprias mãos (àquele que sempre foi maior que os deuses do Olimpo, que tanto lutou pra chegar ao poder, tanto que era pouco o pote para muita sede e a arrogância desmedida, àquele que não dava trégua ao mau humor, restava agora o ultimato das balas, como sói acontecer com os pusilânimes) e caindo de joelhos como quem se humilha depois de ter pisoteado a tantos, ah, a cidade não esquece a agonia do vereador pedindo socorro e a multidão nem aí pro seu sangue e depois os olhares curiosos de longe vendo o algoz correr com o troféu ainda em riste e se entregando sem resistência como quem está certo do dever cumprido em nome da honra ultrajada.

Era possível um gesto tresloucado manchando a tarde de fevereiro? Vindo das inimagináveis estrias da vingança de quem menos se esperava? Era possível o todo-poderoso doutor das leis, com sua eloquência canina e suas bravatas políticas não ser atingido? A cidade se perguntava em uníssono, nos botequins, nas escolas, na Câmara e no Rotary Club, que agora tinham uma cadeira vazia, no cemitério com seu administrador atrás das grades, no Bar Elite, na barbearia dos irmãos China, no Café Mulambo (parlatório na boca-maldita do Calçadão), nos sindicatos, nos cartórios onde o morto sempre irrompia com seus berros de muar, nas cercanias da estação, no caixa-prego e até na quinta do inferno. Em todo o canto e lugar queriam saber se o morto era morto, principalmente os inquilinos inadimplentes, os executados por dívidas, os que se encontravam às vésperas de prisão por descumprimento de pensão alimentícia, os ladrões de galinha presos por mero capricho de donos de quintais abastados, a viúva enrolada nos arrolamentos, as putas da Casa Branca e da Ilha, os que tinham culpa no cartório, os que nem tanto, os homens de bem e os alienados, todos queriam saber pra onde levaram o corpo do homem.

O feitiço voltando contra o feiticeiro um dia da caça outro do caçador justiça pelas próprias mãos olho por olho dente por dente assim terminou a história do homem que queria mandar mais que o alcaide-mor da cidadela e, ironia do destino, chegou ao poder sem poder chegar a nenhum lugar, senão descer a sete palmos medidos que lhe couberam no latifúndio impiedoso e muitos anos depois já ninguém se lembra do acontecido, a justiça foi feita, o ventre esgarçado, a carne cravejada, carunchos na alma seca do pobre coitado ele era pó e não sabia e ao pó reverteu de forma trágica, prematura diziam os mais chegados, e como ele, seus descendentes que não são nem lembrança nem memória pois as feras não deixam saudade mas rastros que o tempo apaga assim como as pegadas que sol chuva ar homem bicho desfazem porque a vida não poupa nem se recorda e a sombra que fica das coisas a noite cuida de esconder.

A cidade não esqueceu o dia da ira, a baleia perdendo o fôlego na sua desesperada luta contra um oceano de sangue drenado de seu ventre balofo, cachalote bilioso se afogando na própria pusilanimidade, agora as artérias vazias, ai, ai, ai, meu Deus e o Dr. Filhinho gritando como uma medusa a vomitar sua própria alma e com seus dentes cerrados desfere o último golpe verbal, um sonoro àputaqueopariu tentando andar contra a maré de revolta daquele homem de macacão zuarte e sua fúria vulcânica, a ambulância chegando a destempo e o que restava dele (recebendo a última escarrada do assassino) saindo por todas as fendas de sua carne envenenada pela pólvora inclemente e conspurcando as pedras portuguesas da praça da Matriz.

(Ali estava um homem, ou o que restava dele: a sua arrogância já esclerosada travestida em cagaço, nos estertores de seu precoce outono… Como um suíno agonizante em praça pública: troféu para os inimigos e antípodas políticos. O ventre furado como um queijo suíço, a inútil tentativa do perdão, uma réstia de luz nos olhos esbugalhados capaz de uma última e lúcida certeza, a da petulância vencida pelas balas ensandecidas, uma cadeira vazia na Seccional da OAB e uma vaga preenchida no trono de Lúcifer. Era como um animal flatulento jazendo sem a piedade de quem quer que seja, sem forças, sem amigo, sem votos, sem nada. Seu nome não importa, nem, a cor dos seus cabelos, nem os tangos argentinos dedicados por Tito Rodriguez sempre às onze da noite na Rádio Municipal. É a metafórica lógica da solidão final, que tudo degreda, encerra, enclausura e decreta sem recursos nem remorsos.)

 

Ronaldo Cagiano

Nasceu em Cataguases (MG). Formado em Direito, está atualmente radicado em Portugal. É autor de Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), O mundo sem explicação (Poesia, Lisboa, 2018), Todos os desertos: e depois? (Contos, 2018) e Cartografia do abismo (Poesia, 2020), entre outros.

Rascunho