Dias para Danilo Lobragio

Conto de Marcio Renato dos Santos
Ilustração: Marco Jacobsen
01/03/2006

Tudo segue na cidade. São dezesseis horas, dezoito minutos, cinco segundos. Os carros passam, de um lado para o outro, na rua Newton Sampaio, no Alto da Glória, em Curitiba — a capital do Estado do Paraná. Um ônibus pára. No ponto da esquina. Uma então adolescente desce. O ônibus segue. Ela tem 16 anos. Veste uniforme escolar. Carrega uma pasta em uma das mãos. Caminha. Atravessa a rua. Entra em um dos prédios. Já são dezesseis horas e vinte e dois minutos. Vinte graus. Em um bar, na mesma rua, alguns homens bebem cerveja. Logo mais, haverá jogo no Estádio Couto Pereira. A algumas quadras. O time da casa irá perder. Mas essa notícia será anunciada depois das vinte e duas horas. E não são nem dezoito horas. Ainda.

Daqui a pouco, às dezoito horas, Danilo Lobragio sairá do escritório onde passa oito horas, de segunda à sexta-feira. Ele é funcionário de empresa estatal. Realiza tarefas que incluem preenchimento de formulários e atendimento ao público. Trinta anos. Solteiro. Vive em um bairro residencial no norte da cidade. Trabalha na zona leste. Quando não chove, vai e volta caminhando. Mas vive em Curitiba. O guarda-chuva, às vezes, ajuda. Quando não, segue dentro de algum ônibus. Táxi somente se estiver muito atrasado. É quinta-feira. Sairá do escritório em direção ao apartamento. No caminho, deve comprar algo em um supermercado.

Danilo saiu das dependências da repartição pública. Quase não se cansou: não fez quase nada. Segue a caminhar. Está nas imediações do Estádio Couto Pereira. Um sujeito se aproxima.

— Tamanho não é nada.

Danilo caminha e o desconhecido balbucia palavras.

— Tamanho não é documento.

O sujeito ultrapassa Danilo e continua a caminhar e a repetir tamanho não é nada ou tamanho não é documento, em meio a sons inarticulados.

Danilo, que tem um metro e oitenta e quatro centímetros, observa o desconhecido e calcula que ele deve ter, no máximo, um metro e quarenta.

De repente, sem Danilo se dar conta, o sujeito desaparece.

Danilo passou no supermercado e comprou alguns produtos. Já está no apartamento. A tevê foi ligada — e assim permaneceu durante quatro, cinco horas. O fogão também foi ativado: líquidos e sólidos ficaram quentes antes de serem ingeridos. A madrugada chegou. O sono também. E, logo, o dia seguinte.

O despertador toca. Sete horas. Danilo não acorda. Sete horas e nove minutos. Danilo lembra que precisa trabalhar. Levanta. Vai ao banheiro. Volta ao quarto. Veste as roupas. Caminha até a cozinha. Ingere líquidos e sólidos frios. Vai ao banheiro. Escova os dentes. Lava as mãos. Vai até a sala. Abre e fecha a porta. Desce pelo elevador de serviço. Garoa. A opção é um ônibus.

Antes de subir no ônibus, no trajeto entre o apartamento e o ponto — não eram nem oito horas da manhã —, Danilo vê, e ouve, um sujeito que gesticula e fala em voz alta. Passa um carro. O sujeito gesticula. E grita. Passa um estudante. O sujeito berra. E gesticula. Passa uma moto. O sujeito balança os braços. E xinga. Passa um avião. O sujeito esbraveja. Danilo se aproxima. Ia atravessar a rua. Então, passa, a menos de vinte quilômetros por hora, um carro da polícia. O sujeito fica quieto. Abaixa a cabeça. E os ombros. E entra em uma porta, na frente do local em que estava a gritar e a gesticular.

Durante a sexta-feira quase nada, relevante, aconteceu onde Danilo trabalha — na realidade, nada do que se passa por lá é relevante. Ele nem refletiu sobre os gritos que presenciou pelas ruas. Gritos são comuns no local em que permanece por oito horas.

As horas passam. Danilo fica diante de um computador. Sentado. Atende ligações telefônicas. Sentado. Conversa com colegas. Sentado. Ri de alguma piada. Sentado. Levanta para ir ao banheiro, para atender solicitações da população ou — raramente — para se apresentar diante de algum chefe. Ele observa que muitos de seus colegas fazem quase o mesmo. A maior parte representa. Uns dão ordens; outros, obedecem. Cada um desempenha seu papel. Nenhum convence: nenhum teria chance num palco de teatro.

A rotina no escritório — talvez — tenha contaminado toda vida de Danilo: ele não faz mais nada. Durante a semana, e também nos sábados e domingos, seu programa é ficar no apartamento. Quando namorava havia outros compromissos. Mas a relação terminou há meses. A ex-namorada casou. Ele conheceu outras mulheres. Mas as relações não prosseguiram. Televisão na sala. Som no quarto. Lê revistas, jornais. Assiste algum filme. No DVD. Fora isso, perdeu a vontade de fazer qualquer outra coisa. Às vezes, visita os pais. Eles vivem em uma cidade do interior. Mas Danilo não tem mais espaço por lá. E, ainda, se sente fracassado ao ver o pai, quarenta anos a mais que ele, com disposição para tudo. Seu pai nunca aceitou ser empregado. De ninguém.

Danilo Lobragio é funcionário público, empregado do governo. Mas ele não sabe, ao certo, o que vem a ser isso que se chama governo. Há pessoas que mandam e outras que obedecem. Isso é governo? Talvez nem mesmo os superiores dos chefes da repartição onde Danilo trabalha representem, legitimamente, o governo — ou o que é ou poderia vir a ser o governo. É sobre esse assunto, e outros, que ele pensa durante o tempo de serviço.

E os dias passam.

O verão chegou. É quarta-feira, o expediente termina e há céu azul. Danilo quer ganhar tempo para chegar no apartamento e ficar olhando pela janela: contemplar o nada. Por isso, entra em um ônibus. No pior dos horários: dezoito horas e alguns minutos. Grande parte da mão-de-obra da cidade faz o mesmo. Trânsito congestionado. Ônibus cheio. E, no próximo ponto, entra ainda mais gente dentro daquele coletivo onde Danilo está.

— Pára de empurrar, diz um passageiro.

— Ô, meu! Aqui não tem mais espaço, responde um outro.

— Eu disse pra você não me empurrar.

— Não tá vendo, cara! Não cabe mais ninguém aqui.

— Cala a boca e pára de empurrar!

— Cala a boca, o quê?

— Eu mandei você calar a boca.

— Você é grande mas não é dois.

Danilo e os vários passageiros se olham, e escutam, calados, o bate-boca entre dois trabalhadores que, suados, depois de mais de oito horas de serviço, seguem, dentro do ônibus lotado, para casa.

No final da tarde daquela quarta-feira, e mesmo em outros momentos de mudança da natureza, em outros dias até, Danilo não ficaria a olhar para o nada a partir da janela do apartamento. Dentro do quarto, com as janelas fechadas, passou a se perguntar sobre essa gente que, assim como ele, permanece oito horas no trabalho, mas que, diferente dele, permanece duas, três ou mesmo quatro horas dentro de ônibus; gente que, possivelmente, ganha menos que ele. Como sobrevivem com tão pouco? Como agüentam sustentar casa, família, despesas e imprevistos? Danilo passou a evitar os ônibus. Mas no final de uma tarde de uma outra quinta-feira, o céu apresentou tonalidade escura. E ventava.

Chuva. Os vidros do ônibus embaçam. O motorista segue em velocidade reduzida. Há outros, muitos, automóveis a circular. Danilo e os demais passageiros escutam um som que vem do teto do veículo de transporte coletivo. É granizo. Algumas ruas já alagaram. Árvores e placas foram derrubadas. O ônibus segue e, alguns pontos depois, Danilo decide descer e esperar: em um terminal. Acabou a luz no bairro. Faróis de ônibus que chegam e saem iluminam, momentaneamente, o local. Há quem grite. Jovens, por exemplo. Outros, nem tão jovens assim, invadem o terminal. Mendigos circulam. E venta.

— Vou morrer, grita um garoto, que está com a roupa molhada.

— Vou morrer de frio. Esta frase é de um outro garoto, também com a roupa encharcada de chuva, sem calçados.

Há luz em apenas um único prédio da região: no presídio. Detentos nas janelas, a olhar e a fumar. Ali, no terminal, algumas pessoas comentam que, agora, no escuro, estão ocorrendo assaltos. Há gritos e pedidos de socorro. Não há polícia por perto. Danilo e outras, muitas, pessoas devem permanecer, ainda, por uma, duas horas no local. Acidentes em diversos pontos da cidade impedem a circulação de veículos de passeio e de passageiros. Danilo sabe que, por mais que o ônibus atrase, por mais que sua roupa fique encharcada com a água da chuva, por mais que a fome o incomode, por mais que venha até a ser assaltado, depois, estará em seu apartamento. As necessidades serão satisfeitas. E terá direito a dormir na própria cama um sono de sete, oito horas.

Os dias e as noites seguiram para Danilo Lobragio. Ele continuou a observar, nas ruas, dentro dos ônibus, e mesmo na repartição onde trabalha, muitas trocas. De agressões verbais. De agressões físicas. De agressões físicas e verbais. Em dias de jogo de futebol, e nos dias seguintes, as trocas eram ainda mais intensas.

Danilo Lobragio se questiona a respeito do que vê e do que escuta. Mas não encontra respostas. Parece não haver explicação, nenhuma, para nada. Muito menos, por exemplo, para o fato de ele vir a namorar a garota citada no primeiro parágrafo. Aquela, a então estudante, a que morava, com a família, em um prédio na rua Newton Sampaio. Cinema. Praia. Montanha. Campo de futebol. A rotina de Danilo seria outra. Com muitas trocas. Mas isso levaria alguns anos para acontecer.

Até lá, Danilo segue a observar o que se passa enquanto ainda é possível caminhar, vivo, pelas ruas de Curitiba.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho