Lisboa, 26 fevereiro 2024.
Minha amiga,
Pensei um tanto em como começar esse diário de bordo e a forma que escolhi no fim das contas é aquela que na maioria das vezes me chama — a carta. Queria evitar a carta, me provocar a tentar dizer as coisas de um modo que me fosse um pouco mais estranho, mas já houve mudança suficiente nos últimos dias. Além disso, fui lembrado esta semana de que é da repetição que frequentemente vem a diferença. Por isso, mando aqui uma carta-diário.
Faz uma semana que cheguei a Lisboa. Vim sem muitos planos. Minhas responsabilidades resumem-se a cuidar de um apartamento e dos cachorros que vivem nele. Fora isso, sei que ao final dessas oito semanas aqui irei participar de um evento literário cujo tema é viagem. Saí do Rio com esse desejo: viajar. Guardei a recomendação que você me enviou em uma mensagem no dia da minha partida, quando disse que, nestes nossos tempos de redes e mídias, é importante saber partir. Tomei aquilo como um conselho essencial para esse momento e embarquei assim, olhando para frente.
Foi com os olhos abertos e amplos que passei essa primeira semana caminhando pela cidade, percebendo toda a alteridade que me rodeia. Já vim aqui outras vezes e não estou desacostumado às viagens. Ainda assim, há agora algo de inédito, algo de mais curioso na arquitetura da cidade e no quanto o espaço físico afeta meus movimentos e meu corpo, na forma distinta de se usar e compreender nossa língua, nas singularidades da relação com a passagem do tempo. Suspeito que essas impressões sejam resultado desse partir que, apesar de temporário, é consciente e proposital. Um partir também em busca, à procura de um entusiasmo (essa palavra que restou comigo desde que a li em O arquivo das crianças perdidas, de Valeria Luiselli, que ali a separa em en, theos, seismos, ou “uma espécie de terremoto interno produzido quando uma pessoa se permitia ser possuída por algo maior e mais poderoso”). Um desejo por um abalo sísmico, por um transbordamento. Quando dividi isso com as colegas dos estudos de dramaturgia, lembraram-me da noção de estado na preparação do ator do Stanislavski, que em uma recente tradução brasileira diretamente do russo transformou-se em sentir-a-si-mesmo. Esse é o estremecimento que teu conselho causou em mim.
Foi também nesta semana sísmica que fui ao encontro aberto de composição em tempo real de João Fiadeiro no Fórum Dança. Para explicar o trabalho de toda uma vida, João usou uma folha de papel e quinze minutos. Ele disse que estamos todos seguindo nossas vidas (nossas vidinhas, disse) e essa vida é o plano que conhecemos. Há por vezes dobras inesperadas nesse plano, tanto na escala macro (a pandemia) quanto na micro (minha viagem). Nossa resposta mais imediata e instintiva é retornar o quanto antes a um novo plano que, mesmo diferente, se assemelha ao original, ao que conhecemos, à normalidade. É assim o nosso reflexo (reflexão). Há nesse espaço da dobra, no entanto, uma alternativa, uma alternativa a seguir em frente, a mudar novamente, a partir. Na dobra, há também o espaço para permanecer. Nesse instante em que as coisas se alteram, João nos convida a adentrar a ínfima brecha que parte a seta cronológica do tempo, a mergulhar na falésia e repará-la (reparar como quem observa, mas também como quem para duas vezes e ainda como quem remenda). É nessa desaceleração da observação e resposta e resultante permanência no desconhecido que se dá o trabalho, e agora também a viagem. É assim a nossa intuição. O instante mínimo do presente onde posso tentar compor uma carta.
Por fim, minha amiga, ruminando isso tudo, lembrei também de um ensaio da filósofa húngara Agnes Callard que li em junho do ano passado na New Yorker no qual ela faz uma defesa contra (um ataque?) às viagens. No texto (intitulado The case against travel), ela argumenta que nosso principal desejo ao viajar é suspender os parâmetros da vida cotidiana (nossas vidinhas) em busca da mudança, da diferença, mas que na verdade continuamos as mesmas quando viajamos, que nosso movimento enquanto turistas (aqueles viajantes que buscam o “interessante”) remete ao de um bumerangue, retornando-nos sempre ao mesmo lugar de onde saímos. Seguimos insistindo no poder que nossas viagens têm de nos transformar, de aprofundar nossos valores e expandir nossos horizontes, mas seria mesmo possível averiguar esse fenômeno por si mesmo? É possível confiar na própria introspecção para distinguir uma mudança real de uma ilusão? Agnes sugere que, ao invés de nos locomovermos para sentir, sigamos apreciando o que está longe à distância e que sejamos viajantes estáticos, da imaginação.
Fiquei me perguntando o que você diria à Agnes se fôssemos, nós três, comer um pastel de nata em Belém, você que uma vez me disse que da viagem nunca se volta. Também não sei se concordo com ela, se aceito que a viagem é apenas uma forma de fraturar a expansão do tempo que temos em nossas vidinhas para nos distrairmos do nosso destino final e comum. Por enquanto, sigo tentando permanecer na dobra, na falésia, entendendo também o teu saber partir como um saber rachar, fender e entrar.
Com carinho, até a próxima carta,
Gabriel