Tradução: José Geraldo Couto
Capítulo XIX
Depois de tantos anos de amizade, pela primeira vez entrava no quarto de Néstor. Olhou vagamente os retratos de pessoas desconhecidas e pensou: “A intimidade que deixamos de lado não impediu que fôssemos amigos”. Essa observação o incitou a refletir sentenciosamente: “Hoje todo mundo é íntimo; amigo, ninguém”. Uma mulher comentou:
— O pobrezinho está desfigurado.
Quando ficou sabendo da morte de Néstor, ele não se comoveu tanto quanto ao ouvir esse diminutivo. “Choro como um menino”, pensou. “Ou como um vagabundo. Que vergonha.”
Fechou os olhos. Não queria que a última lembrança do amigo fosse sua cara de morto. Preparava-se para cumprimentar dona Regina, mas a encontrou tão aniquilada e tão velha que retirou a mão. Voltou à sala de jantar.
— Te informo — disse Arévalo — que aquele cara magro estava na arquibancada.
Vidal se aproximou do rapaz das espinhas.
— Você viu como o mataram?
— Ver, propriamente, não vi. Mas tenho a versão de mais de uma testemunha ocular.
Vidal o examinou com pesar e perguntou:
— É verdade que o pisotearam?
— Como iam pisoteá-lo, se estava no alto da arquibancada… Sabe como foi? O jogo não começava, as pessoas estavam se irritando e alguém propôs: Vamos jogar um velho? O segundo velho que jogaram foi o senhor Néstor.
— O filho o defendeu?
— Se bem entendi — disse o das mãos enormes —, há quem diga que não o defendeu. Estou certo?
O mocinho assentiu:
— Correto. — Depois acrescentou com frieza: — Quem não tem um velho na família? Isso não compromete ninguém. Mas há os que defendem seus velhos.
Vidal notou que Jimi lhe tocava o cotovelo. O homem da cara pontuda perguntou:
— Tem certeza de que não o pisotearam?
— Para que iam pisoteá-lo — disse o rapaz — se caiu como um sapo?
— Jimi, vamos para outro lugar — propôs Vidal. — Vamos conversar com Rey. Que acha dessa garotada?
— Eu lhe dou de presente.
Vidal levou as palmas das mãos para perto do aquecedor.
— Um indivíduo que sente as coisas assim, por que vem ao velório? — perguntou.
— Está falando do rapazola? — perguntou Rey. — Ele e seu companheiro, que mais parece um baiacu, estão aqui porque são a quinta-coluna.*
Como se de repente tivesse despertado e ouvido, Dante vaticinou:
— Os fatos se encarregarão de confirmar minha teoria. Façam de conta que estamos na ratoeira. Ao primeiro sinal desses tipos, os cúmplices, posicionados na rua, entram.
— Mais uma xicrinha? — ofereceu a vizinha.
— Onde está o filho do Néstor? — perguntou Vidal.
A mulher respondeu:
— Os cagüetas costumam se esconder.
Jimi comentou com ironia:
— Você não vai poder lhe dar os pêsames.
— Dizem que agora — declarou Rey — a pessoa está mais segura fora de casa.
— Sim, porque em casa é preciso fazer de conta que a gente está na ratoeira — reiterou Dante.
Rey explicou:
— Para manter as aparências, o governo já não tolera o menor desmando em lugares públicos.
— Será que o pobre Néstor teria a mesma opinião? — retrucou Jimi.
— Um fato isolado — alegou Rey.
Uma vez mais Dante comparou as casas com ratoeiras. O senhor das mãos enormes, o da cara pontuda e Arévalo se juntaram ao grupo. Vidal observou que os dois rapazes estavam de novo sozinhos. O senhor das mãos grandes afirmou:
— Por fim o governo resolveu intervir no assunto. Nota-se uma atitude mais firme. As declarações do ministro me confortam. Não sei, têm grandeza, dignidade.
— Muita dignidade — concordou Arévalo —, mas estão mortos de medo.
— A verdade é que não invejo o governo — reconheceu o das mãos enormes.
— Pense bem: é uma situação muito delicada. Se você não atrai a oficialidade jovem e os recrutas, caímos na anarquia. Um fato isolado, de vez em quando, é o preço que devemos pagar.
— O que é que deu nesses aí? Todos falam de fatos isolados — perguntou Arévalo.
Jimi explicou:
— Ontem à noite escutaram o comunicado do ministério. Dizia que a situação estava perfeitamente controlada, salvo fatos isolados.
— O que vocês querem? Agora percebo um tom mais digno, confortador — insistiu o das mãos grandes.
Chegaram da floricultura com a coroa. Dante perguntou:
— O que diz na faixa?
— Os rapazes — respondeu Rey. — Para mim, tudo está dito nessas duas palavras.
— Não vão pensar que foram os jovens que mandaram? — inquiriu Jimi.
— Só faltava essa — replicou Rey. — Agora não sermos mais os rapazes.
O da cara pontuda explicava:
— Alguns velhos não se cuidam nem um pouco. Eu quase diria que eles provocam.
— Quem provoca são os agentes provocadores, pagos pelos Jovens Turcos — garantiu Dante.
— O senhor acha? — perguntou o da cara pontuda. — Será que pagaram ao velho que mexeu com as colegiais em Caballito?
O das mãos enormes afirmou:
— Vamos admitir que uma onda de criminalidade senil vem se alastrando ultimamente. Todo dia lemos notícias a respeito.
Dante protestou:
— Mentiras para agitar o ambiente.
— É preciso prestar atenção no que as pessoas dizem — Jimi sussurrou a Vidal. — Você conhece o das mãos grandes? Eu não, nem esse nem o outro. Decerto são dois velhos vendidos que estão na conspiração dos mocinhos. Vamos nos afastar, venha.
— Quando penso que eu podia ter ido com o Néstor ao estádio — comentou Vidal.
— Veja do que você escapou — disse Jimi.
— Talvez juntos nos defendêssemos, e a esta hora o Néstor estivesse vivo.
— Certamente teríamos um velório em dose dupla.
— Eu não sabia que você se interessava por futebol — disse Arévalo.
— Não é que eu me interesse — declarou Vidal, sentindo-se importante —, mas como o filho do Néstor mandou me convidar…
— Mandou te convidar? — perguntou Arévalo.
— Ui — exclamou Jimi.
— Que foi? — perguntou Vidal.
— Nada — assegurou Jimi.
— Estão achando que eles já me rotularam de velho?
— Que disparate — replicou Arévalo.
— Eu diria que não — concordou Vidal —, mas com os jovens de agora não se pode estar seguro. Se eles chamam de ancião um tipo de sessenta anos…
— Pior são essas garotas — lembrou Jimi, divertindo-se com o assunto — que te falam do namorado e dizem: Ele é maduro, fez trinta anos.
— Falando sério. Respondam-me: Acham que já estou marcado?
Arévalo perguntou:
— Como pode pensar isso?
— Mas, se eu fosse você, andaria com pés de chumbo — aconselhou Jimi.
— É claro — admitiu Arévalo. — Por prudência.
Vidal o encarou com incredulidade.
— O melhor é que não te agarrem desprevenido — argumentou Jimi.
— Puxa — murmurou Vidal. — Minha cabeça está doendo. Ninguém tem uma aspirina?
Rey disse, pondo-se em pé:
— Deve ter no quarto do Néstor.
— Não, homem — Jimi o conteve. — Pode trazer má sorte. Repararam nesses rapazes? De tempos em tempos olham para fora.
— Parecem nervosos — observou Dante.
— Entediados, só isso — afirmou Arévalo.
Vidal pensou: “Eu estou nervoso”. Sua cabeça doía, o cheiro de querosene misturado com eucalipto o enfraquecia. “Não tenho pés de chumbo, mas de gelo”, disse consigo. Para salvá-lo da má sorte, Jimi o privava da aspirina do finado. Claro, a cabeça de Jimi não doía. Desejou ansiosamente estar lá fora sozinho, respirar o ar da noite, caminhar umas quadras. “Contanto que não me perguntem aonde vou. Contanto que não me acompanhem.” O homem das mãos grandes e o da cara pontuda (haviam lhe dito que um deles se chamava Cuenca) novamente se aproximaram do grupo. Vidal se levantou… Os amigos o viram partir, sem lhe perguntar nada: sem dúvida encontraram resposta suficiente na presença dos desconhecidos.
A rua havia sumido nas trevas. “Mais escura que agora há pouco”, pensou. “Alguém se divertiu quebrando as lâmpadas. Ou preparam uma emboscada.” Olhando com receio as fileiras de árvores, avaliou que atrás dos primeiros troncos não havia gente escondida e que à altura do terceiro ou do quarto a noite se tornava impenetrável. Se avançasse, ficaria exposto a uma agressão, que, embora prevista, chegaria repentinamente. Esteve a ponto de voltar para dentro, mas sentiu-se angustiado e faltou-lhe o ânimo. Lembrou-se de Néstor. Lamentou: “Quando a gente vive, deixa-se ir, distraído”. Se reagisse, se despertasse daquela distração, pensaria em Néstor, na morte, em pessoas e coisas que desapareceram, em si mesmo, na velhice. Refletiu: “Uma grande tristeza traz liberdade”. Avançou indiferente pelo meio da rua, porque de todo modo não queria ser surpreendido. De repente achou que viu, um pouco mais adiante, uma forma vaga, umas linhas cujo negrume era mais intenso que a escuridão da noite. Avaliou: “Um contêiner. Não, deve ser um caminhão”. Imediatamente uma luz se acendeu. Vidal não se virou, talvez não tenha fechado os olhos; manteve o rosto impávido, erguido. Cegado por aquela torrente branca, sentiu um júbilo imprevisto, como se a possibilidade de uma morte tão luminosa o exaltasse como uma vitória. Assim ficou por uns instantes, ocupado apenas com a luz branca, incapaz de pensar ou lembrar, imóvel. Depois os focos retrocederam e nos fachos apareceram círculos com troncos de árvores e fachadas de casas. Viu o caminhão se afastar, carregado de gente silenciosa, amontoada sobre parapeitos vermelhos com desenhos brancos. Pensou, com orgulho: “Se eu disparasse como uma lebre, com certeza me atropelariam. Com certeza não esperavam que eu os enfrentasse”. O ar da noite somado a uma certa satisfação íntima aliviaram-no a tal ponto que a dor de cabeça já não o agoniava. Pensou precipitadamente em termos militares: “Rechaçado o inimigo, tomo posse do campo de batalha”. Um pouco envergonhado, tentou formular a idéia mais modestamente: “Não me acovardei. Foram embora. Estou só”. Mesmo que agora voltasse para dentro, já não se mostraria (diante de ninguém, nem sequer de si mesmo) apressado em buscar proteção. Como se tivesse tomado gosto pela coragem, avançou pela rua escura, resolvido a não regressar antes de caminhar três quadras. Achou que toda aquela demonstração era um pouco inútil, já que no momento de voltar inevitavelmente sentiria que se punha a salvo.
* Grupos que agiam dentro de seu próprio país, trabalhando em segredo contra revoluções de caráter liberal. O termo foi criado pelo general Franco, durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), para designar os que apoiavam as quatro colunas nacionalistas que marchavam contra Madri, ocupada pelos republicanos. (N.T.)
Capítulo XX
Quando viu que Jimi não estava na sala de jantar, supôs que tivesse ido ao banheiro e pensou que, tão logo o outro voltasse de lá, ele próprio iria. Evidentemente tinha estado um pouco nervoso e sentira frio fora da casa. As pessoas continuavam divididas em dois grupos: os mais velhos à esquerda, em volta do aquecedor, e os jovens à direita. Aproximou-se dos jovens. O pequeno passeio o havia, sim, enchido de soberba, pois disse imediatamente, como quem pede explicações:
— O que me aborrece nessa guerra ao porco — irritou-se porque, sem querer, chamou assim a perseguição aos velhos — é o endeusamento da juventude. Estão como loucos porque são jovens. Que estúpidos.
O rapaz baixo, de olhos protuberantes, concordou:
— Uma situação que não tem muito futuro.
Talvez por não esperar que lhe dessem razão tão depressa, Vidal pronunciou palavras imprudentes.
— Contra os velhos — disse — há argumentos válidos.
Temeroso de que o interrogassem — não estava seguro de se lembrar de tais argumentos e não queria dar armas ao inimigo —, tentou continuar falando.
O rapaz baixo o interrompeu:
— Já sei, já sei — disse.
— Você deve saber, mas esses rapazinhos revoltosos, verdadeiros delinqüentes, o que eles sabem? O próprio Arturo Farrell…
— Um agitador, admito, um charlatão.
— O triste é que não há mais nada por trás do movimento. Absolutamente nada. Só desolação.
— Ah, não, senhor. Nesse ponto o senhor se engana — disse o rapaz.
— Acha mesmo? — perguntou Vidal e, talvez buscando ajuda, olhou para onde estava Arévalo.
— Tenho certeza. Há estudiosos. Por trás de tudo isso há muitos médicos, muitos sociólogos, muitos planejadores. No mais estrito sigilo eu lhe digo: há também gente da Igreja.
Vidal pensou: “Você tem cara de bagre”. Em voz alta, disse:
— E todos esses luminares não encontraram argumentos melhores?
— Por favor. A argumentação é ruim, mas está perfeitamente calculada para inflamar a massa. Querem uma ação rápida e contundente. Acredite, as razões que movem o comitê central são outras. Estou lhe dizendo: bem outras.
— Não diga — respondeu Vidal, e de novo olhou em direção a Arévalo.
O rapaz das espinhas acrescentou:
— Com certeza. Por isso liquidaram, vocês se lembram, aquele governador que não mandou apagar do brasão estatal aquilo de governar é povoar. Circula por aí uma segunda frasezinha, não menos irresponsável, que agora não lembro.
— Para mim — disse o mais baixo — a culpa direta recai nos médicos. Eles nos encheram de velhos, sem prolongarem nem por um dia a vida humana.
— Não entendi — admitiu o das espinhas.
— Você conhece muitas pessoas de cento e vinte anos? Eu não conheço nenhuma.
— É verdade: se limitaram a encher o mundo de velhos praticamente inúteis.
Vidal se lembrou da mãe de Antonia.
— O velho é a primeira vítima do crescimento populacional — afirmou o rapaz baixo. — A segunda me parece mais importante: o indivíduo. Vocês verão. A individualidade será um luxo proibido para ricos e pobres.
— Tudo isso não é um pouco prematuro? — perguntou Vidal. — Como se quisessem nos curar quando ainda temos saúde.
— O senhor disse bem — respondeu o rapaz das espinhas. — Medicina preventiva.
Vidal argumentou:
— Estamos aqui discutindo teorias enquanto assassinatos são cometidos. O coitado do Néstor, para não ir muito longe.
— Horrível, mas isso sempre aconteceu. Se me dessem poder sobre essas coisas, deixaria os velhos em paz, que eles têm consciência, e organizaria a segunda degola dos inocentes.
— As besteiras que a gente ouviria — assegurou o das espinhas. — Que se destrói o positivo, que a criança é o futuro. Você se dá conta de como as mães iriam chiar?
— Com essas não me preocupo. Sabem muito bem que não devem chamar a atenção.
Pela segunda vez na noite, Vidal refletiu que viver é se distrair. Enquanto atendia a sabe-se lá que misérias pessoais (antes de tudo, a diligente manutenção de seus hábitos: o mate nas horas certas, a sesta, o apressado comparecimento à Plaza Las Heras para aproveitar o sol da tarde, as partidas de truco no café), tinham acontecido grandes mudanças no país. Aquela juventude — o das espinhas e o mais baixo, que parecia inteligente — falava de tais mudanças como de algo conhecido e familiar. Talvez por não ter acompanhado o processo, ele agora não entendia. “Fiquei de fora”, pensou. “Já estou velho ou me disponho a sê-lo.”
Capítulo XXI
Sem deixar de ser afável, o rapaz baixo indagou:
— No que está pensando, senhor?
— Que estou velho — respondeu Vidal.
Imediatamente se perguntou se não insistia demais nas imprudências. Acabaria passando por algum aborrecimento.
— Desculpe — protestou o rapaz baixo. — Na minha opinião, o que o senhor disse é um disparate. Velho, não. Eu o situaria na zona que o charlatão do Farrell descreve como terra de ninguém. Não se pode chamá-lo de jovem, mas tampouco de velho, essa é que é a verdade.
Vidal observou:
— O importante é que um desses louquinhos que andam soltos não confunda a gente.
— Eu diria que as confusões são improváveis, ainda que, não nego, sejam possíveis — admitiu o mais baixo, para em seguida explicar: — Pelo calor da hora.
Vidal voltou a desanimar e desejou a ignorância anterior da situação. Seu diálogo com os rapazes lhe pareceu uma desprezível tentativa de adulá-los. Murmurou:
— Com licença.
Para se sentir mais confortável, dirigiu-se a seu grupo de amigos.
Rey afirmava, enfático:
— Logo chegará a hora da verdade para o governo. Quando pagar o que deve.
— Essa hora ainda vai demorar — preveniu Arévalo. — Mesmo que restabeleçam a ordem, não vão nos pagar.
— Onde está o Jimi? — perguntou Vidal.
— Não interrompa — disse Dante, que obviamente não tinha escutado. — Estamos tratando de temas do nosso interesse. A aposentadoria.
— O governo não vai resolver pagá-la — insistiu Arévalo.
— É preciso reconhecer — disse o das mãos grandes — que para autorizar o pagamento é preciso muita coragem. Uma medida impopular, logicamente contestada.
— E o cumprimento das obrigações? Não importa? — indagou Rey.
O da cara pontuda assegurou:
— Um dia desses ouvi falar de um plano compensatório: o oferecimento de terras no Sul a pessoas idosas.
— Digam simples e claramente que vão deportar os velhos em massa — replicou Dante.
— Como bucha de canhão — asseverou Rey.
— Para tamponar possíveis infiltrações de nossos irmãos chilenos — acrescentou Arévalo.
— Onde está o Jimi? — perguntou Vidal.
— Como? — perguntou Arévalo. — Foi te buscar. Vocês não se encontraram?
Vidal perguntou:
— Será que ele não foi ao banheiro?
— Eu o vi sair — contou Rey. — Por aquela porta. Disse que ia te buscar.
— O Jimi é como uma raposa — explicou Dante. — Não agüenta muito essas reuniões e na primeira oportunidade vai para casa, para a cama.
— Ele disse que ia te buscar — repetiu Rey.
— Não o vi — esclareceu Vidal.
Dante insistiu:
— Ele é como uma raposa: foi para casa, para a cama. Não é de hoje que o conhecemos.
— Nós também conhecíamos o coitado do Néstor de toda uma vida — replicou Arévalo. — Vou ver se o Jimi está na casa dele.
— Eu te acompanho — disse Rey.
— Parece que já deram os pêsames — comentou, risonho, o da cara pontuda.
— Eu não me incomodaria: ele volta a qualquer momento.
— Eu vou. Ele saiu para me procurar, então vou eu — disse Vidal.
— Bom — concordou Arévalo. — Vamos nós dois.
Arévalo vestiu a capa de chuva e Vidal se enrolou no poncho. Detiveram-se por um instante no umbral da porta, perscrutaram a escuridão, saíram.
— Não que a gente tenha medo — explicou Vidal —, mas uma surpresa seria desagradável.
— Quando a gente fica esperando por ela, é pior. Além do mais, não quero deixar a esses cretinos a iniciativa da minha morte. Confesso que uma doença tampouco me tenta. E, se você se dá um tiro ou se joga pela janela, vai sentir um tranco desagradável. Se você dorme com comprimidos e depois quer despertar, como fica?
— Não continue, senão você ainda vai acabar optando pelos cretinos; mas aqueles dois me diziam que não estamos rotulados de velhos.
— Então não são tão cretinos. Descobriram que nenhum velho se considera velho. E você acreditou neles? Nos fazem ganhar confiança, para não darmos trabalho.
— Você acha muito ruim que eu me exponha?
— Não entendi — respondeu Arévalo.
— Essas árvores, no escuro, são tão convenientes… A verdade é que eu faria um triste papel se me atacassem agora.
Vidal urinava contra uma árvore. Arévalo seguiu o exemplo e comentou:
— É o frio. O frio e a idade. Uma das mais constantes ocupações de nossa vida.
Já mais animados, seguiram caminho.
— Um dos rapazes me explicava… — disse Vidal.
— O das espinhas?
— Não, o mais baixinho, o da cara de bagre.
— Tanto faz.
— Ele me explicava que por trás dessa guerra ao porco há boas razões.
— E você acreditou? — perguntou Arévalo. — As pessoas não matam por boas razões.
— Falaram do crescimento da população e que o número de velhos inúteis está sempre aumentando.
— As pessoas matam por estupidez ou por medo.
— De todo modo, o problema dos velhos inúteis não é fantasia. Lembre-se da mãe de Antonia, a mulher que chamam de Sargentão.
Arévalo não escutava; em tom enfadonho, insistiu:
— Nesta guerra os garotos matam de ódio pelo velho que um dia vão ser. Um ódio bastante assustado…
Como fazia frio, apertaram o passo. Para evitarem as fogueiras — era como se tivessem combinado tacitamente —, contornaram quarteirões e caminharam centenas de metros a mais.
Chegaram a uma zona onde as lâmpadas dos postes não estavam quebradas.
— Com luz — manifestou Vidal — a guerra ao porco parece inacreditável.
Quando iam chegando à casa de Jimi, Arévalo observou:
— Por aqui todo mundo está dormindo.
Em vão procuraram nas janelas alguma fresta iluminada.
— Chamamos? — perguntou Vidal.
— Sim, vamos chamar — disse Arévalo.
Vidal apertou a campainha. Do fundo da casa a campainha ressoou na noite. Esperaram. Depois de alguns instantes, Vidal perguntou:
— O que fazemos?
— Toca outra vez.
Vidal apertou o botão de novo e de novo a estridente campainha ressoou.
— E se o Dante tiver razão e ele já estiver dormindo? — perguntou Vidal.
— Um papelão. Vamos parecer a dupla de alarmistas que somos.
— Claro que se tiver acontecido alguma coisa com ele…
— Não aconteceu nada. Está dormindo. É uma velha raposa.
— Acha mesmo?
— Sim. Vamos embora para não passarmos por alarmistas.
Ao longe uma fogueira ardia. Vidal se lembrou de um quadro que tinha visto quando criança, de Orfeu ou de um diabo envolvido nas chamas do inferno, tocando violino.
— Que estupidez — disse.
— Quê?
— Nada. As fogueiras. Tudo.