Dia de visita

Conto de Wagner Mangueira
01/12/2004

As pálpebras se abriram simultaneamente. E se fecharam. Abriram, fecharam. Abriram de novo… Permaneceram abertas.

A garganta estava arranhando, incômoda, seca. Gripe ou resfriado?

Da janela da cozinha vi um helicóptero. Esquisito, helicóptero por aqui é coisa rara. A faca caiu embaixo do chinelo… Xi. O que acontecerá hoje?

Na hora de sair de casa me deu piriri… Acho que não devo sair hoje: garganta, helicóptero e faca foram insuficientes, o intestino entrou na jogada… O que me reservava a rua?

Como sempre pago pra ver, saí. Na bifurcação, ouvi o motor de um carro, fiz um jogo: se o carro entrar na primeira e não na segunda rua, é a confirmação de que algo diferente acontecerá hoje. O carro entrou na primeira rua.

Até eu chegar na rua de cima, um outro carro deveria entrar à esquerda em vez de seguir em frente; se isto acontecesse, era a reconfirmação de que hoje seria um dia especial. Um carro entrou à esquerda antes que eu chegasse na esquina.

Tentei adivinhar o que tornaria o dia de hoje especial: alguém morreria? Quem? Que fosse uma coisa prazenteira: um bom recado na secretária eletrônica, um agradável e-mail, um livro de presente…

Caminhando na avenida principal vi um carro funerário… Xi, carro funerário também é raro de se ver por aqui… Deu uma vontade de ir escrevendo todas as sensações, todos os fatos. Havia dias eu estava entupido de palavras, querendo e não conseguindo colocar nada pra fora… Apenas germinando, refletindo… Entrei num supermercado em busca de papel e caneta. Infeliz ou felizmente não achei nada que me agradasse.

Ao sair do supermercado esbarrei no homem que abusou de mim quando eu era criança e ele já era homem, casado, com filhos mais velhos e mais novos que eu… Por que não saí cinco minutos antes ou cinco depois?

Tal homem foi um mau sinal…

Pensei na morte que carrego nas costas. Sim, já matei um homem: com uma barra de ferro na cabeça, a raiva me cegou. Não se deve jamais humilhar seu semelhante mas aquele que matei resolveu me humilhar… Ele foi a gota d’água no dia em que meu mar interno tempesteava. Um único golpe, na cabeça. Cumpri pena, não devo mais nada às leis dos homens.

Eu gostaria de escrever sobre alegria genuína, como quando nasceu o meu primeiro filho. Foi mais, muito mais que alegria que senti quando nasceu o meu único filho. Foi estado de graça, plenitude, cume máximo de estar vivo. Alegria então que senti quando andei pela primeira vez de avião? Eu parecia criança.

Quando vi, já tinha voltado para casa: nenhum recado na secretária eletrônica. Liguei para minha ex-mulher, falei com meu filho… Tudo normal. Eu gostaria que alguma coisa acontecesse hoje. Nenhum e-mail, nada, silêncio.

O carteiro só me trouxe contas e propagandas, nem ao menos um livrinho de presente… Tanto tempo não ganho livros. Se ganhasse um livro hoje, o dia se tornaria especial.

Fiquei enrolando, pensando em alegria: comer pastel de feira, ver o pôr-do-sol, receber um elogio, o sorriso do meu filho, o dia da minha liberdade… Coisas alegres e coisas mais que alegres. Coisas sublimes.

Nada aconteceu mesmo neste dia. Na hora de escovar os dentes, reparei que minha língua parece um animalzinho apaixonado pelo dono: aonde o fio dental vai, ela vai atrás. Não fica quieta. Onde a escova vai, ela também vai… Minha língua branca de creme dental, agitada, irrequieta.

Fui dormir desanimado, cansado da vida. Sonhei que era dia de visita.

Wagner Mangueira

Autor de Vamos passear na floresta, Prata, entre outros.

Rascunho