Dez romances breves

Conto de Luiz Roberto Guedes
Ilustração: Ramon Muniz
01/02/2005

O marido viajou para Miami a trabalho, Vivian escapuliu com seu novo amigo para uma casa de praia. À noite, estavam trepando na rede da varanda, quando um vira-lata penetrou no jardim e circulou pelo gramado, abanando o rabo.

A cadela poodle saltou da almofada, foi travar relações com o forasteiro.

Olha lá, o rapaz alertou.

Chiquita!, Vivian chiou. Volta já aqui, sua vagabunda! Eu posso. Você, não.

A caminho da festa, ele prelibava o prazer de exibir sua jovem e formosa mulher ao patrão e colegas. Dezoito anos mais nova que ele, a exuberante Francine realçava sua figura solene de médico renomado.

Era um triunfo entrar com Francine num lugar da moda e ver todos os homens voltarem-se para ela, magnetizados, e então considerá-lo, por um instante, com respeito, despeito, antipatia.

Contudo, naquela noite convinha refrear um pouco a impulsiva Francine. Discrição e sobriedade impressionariam melhor o big boss, dono do hospital, fundador e presidente do grupo de medicina privada.

Recomendou moderação a ela, delicadamente:

Vai devagar com a bebida, Fran.

No decorrer da noite, ouviu com inquietação a risada de Francine subir de tom, numa alacridade borbulhante de champanhe.

Já ia retirá-la da roda de cirurgiões plásticos quando ela abriu a blusa, ostentou seus peitos perfeitos:

Vejam, doutores: os senhores acham que eu preciso de alguma reforma?

Nus e distantes na cama do hotel. O canto dos fiéis chega nítido da igreja batista no outro lado da rua. Guiar-te-ei à Eterna Luz… Segue-me, vem, segue-me… Fumando, ele ouve o monólogo dela.

Cinco anos trepando nesta espelunca. Cinco anos ouvindo a porra desse coro cantando. Antes, quando eu falava em casamento, você dizia que era melhor eu terminar a faculdade primeiro. Agora, não diz mais nada. Você nunca vai assumir um compromisso comigo. Só me quer pra sexo. Sua puta particular. Mas agora acabou. Hoje mesmo. Chega.

Ela se levanta, começa a vestir-se. Peça por peça, oculta os encantos daquele corpo que ele adora. Continua maluco por ela, tanto quanto sempre. Pena que já seja página virada pra ela, que pega a bolsa, caminha para a porta.

Espera, eu levo você pra casa.

Eu pego um táxi.

Não faz isso, olha o vexame.

Foda-se, ela bate a porta.

Ele salta da cama, veste-se rápido e atira-se pelas escadas, três andares abaixo até a recepção, onde ainda precisa pagar o quarto, as bebidas. Estende uma nota:

Fecha a conta, Zé Luís. Rápido.

Entregando o troco, o gerente especula:

Aconteceu alguma coisa… fora do normal?

Loucura, meu senhor, é um homem entrar em seu bar predileto e dar de cara com a ex-mulher, aos beijos com um novo amor. Com o músico da casa cantando Lupicínio, você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma mulher. Quis voltar atrás, mas não ia dar esse gostinho a ela. Sentou-se num canto, pediu uma vodca.

Cadela. Olha lá, se arreganhando toda. Troca de macho como quem troca de calcinha. Um condomínio sexual.

Ali mesmo, num outro canto, tinha mais um dos ex-machos dela, o tal argentino Fabián, fotógrafo de publicidade, picareta metido a artista, dando em cima duma patricinha com idade para ser filha dele.

Três vodcas depois, o cantor martelando “Quereres”, de Caetano, ele levantou-se e caminhou, ah, bruta flor do querer, ah, bruta flor, bruta flor, em direção à mesa de Fabián.

Vacilando nas pernas, sacudiu o dedo e salivou:

Você é um canalha. Banca o sensível só pra comer as mulheres. Mas é um safado, um filho da puta. Você não ama ninguém. Você jamais seria capaz de amar aquela mulher como eu amei.

O porra do argentino fez que nem ouviu. Continuou conversando tranqüilamente com a garota. Dois garçons puxaram o importuno pelos braços, dizendo-lhe para retirar-se. A cadela e o novo macho-alfa levantaram-se para ir embora. Ela não queria assistir ao vexame.

Ele agiu rápido. Deu um soco no garçom mais alto e mais forte. Tomou o troco. Seu nariz espirrou sangue. Maldição. Teria que cancelar o compromisso do dia seguinte. Tirar fotos para a capa de seu disco novo.

Já fazia um tempo que ele estava encantado pela jovem bailarina. Alba. Tinha visto a sílfide rodopiando no palco, numa túnica translúcida, pernas esculpidas, seios altivos, cabeleira cacheada de deusa grega. Mas ainda não tinha ultrapassado a condição de amiguinho.

Numa happy hour de um bar da moda, o enfeitiçado vislumbrou sua chance de impressionar a bacante recalcitrante.

Conduziu Alba para a mesa de uma semi-celebridade.

Quero te apresentar meu primo famoso: o escultor Nico Bayeux.

Nico logo percebeu o impasse. Precisava dar um empurrão no primo travado. Precipitar as coisas. Propiciar.

Você tem um corpo muito definido, Alba. Gostaria de esculpir você. Por que não vamos pro meu estúdio? Tenho um vinho chileno ótimo.

Acabei de sair da academia de dança. Ainda nem tomei banho.

Não tem problema. Toma banho lá em casa.

No estúdio, um amplo galpão com mezanino, o artista exibiu seus domínios e dons. Casais copulando em bronze e mármore, ninfas nuas com púbis em alto-relevo, bailarinas e acrobatas que desafiavam a gravidade. E o perfil rapinante de um banqueiro, ainda em argila.

Alba estava inquieta, elétrica.

Quero entrar logo no chuveiro, ela falou.

Vou te mostrar onde estão as toalhas. Primo, pega o vinho pra gente.

A cozinha e a copa ficavam atrás de uma parede grafitada à Miró. Quando ele retornou com a bandeja, a garrafa e as taças, Nico e Alba não estavam à vista. Ouvindo água jorrando na hidromassagem, depôs a bandeja e encaminhou-se para a bolha de vidro opaco no extremo do galpão. E ficou paralisado com o alvor de Alba nua.

De costas para a porta, ela beijava o escultor, que permanecia de olhos abertos, vigilante. Ao ver o primo, Nico espalmou as mãos, desculpando-se.

Alda entrou na hidro, Nico alcançou o perdedor na saída.

Primo, eu não toquei nessa mulher. Ela é que veio pra cima. Como é que fica?

Ora, como é que fica… Ela fica e eu vou embora. Boa foda pra você.

Seu breve caso com a sedutora Sulamita terminara meses antes, de modo nada amistoso. Daí seu espanto com aquela visita jamais esperada. O sorriso retrouvé de Sulamita, no rosto juvenil de Felícia, a filha adolescente. Sulamitinha em botão.

Saí do cinema agora, Felícia disse. Como estava aqui perto, aproveitei pra te visitar. Preciso de um livro prum trabalho do colégio, O Primo Basílio, você tem?

Sacou o livro da estante, ofereceu um chá. Sentados no sofá, ele iniciou uma preleção jocosa sobre O Primo Basílio. Felícia ria com delícia, exalando um aroma sutil. O viço dos dezessete anos.

Preciso te dizer uma coisa, ela pousou a caneca de chá, deslizou para junto dele e surpreendeu-o com um beijo afoito. Que confusão, ele gemeu mentalmente.

Repetiria a lamúria surda mais tarde, ao perceber que penetrava uma virgem. Imaginou a ira de Sulamita se apenas desconfiasse que ele fora o primeiro homem de Felícia. Chamou um táxi por telefone, despachou a garota e prometeu a si mesmo que não a deixaria meter-se na cama dele uma segunda vez.

Duas noites depois, nova surpresa: a voz de Sulamita no telefone, puro veludo, falando em saudade, propondo um encontro na sexta-feira. Ficou agitado: alegre pelo retorno de Sulamita, inquieto com o incidente chamado Felícia.

O jantar foi agradável, risonho e rápido. Uma salada, uma garrafa de vinho e abalaram para um motel. Depois do amor, aspirando o aroma entre os seios de Sulamita, ele pensava no quanto Shakespeare estava certo ao dizer que ripeness is all — madureza é tudo.

Ela fez um cafuné nele:

Estou muito contente com você.

O prazer é meu, milady.

Estou falando de outra coisa. Você foi muito carinhoso e delicado com a Felícia naquela noite. Nota dez. Eu sabia.

A mulher dele adorava o tal compositor e intérprete. O poeta pop do norte. Ela disse pro marido que ia ao show do cara com uma amiga, numa sexta-feira. Ele ficou em casa com as crianças. Às nove da manhã de sábado, ela ainda não tinha voltado.

Ele telefonou pra amiga que tinha saído com ela, gravou sua aflição na secretária eletrônica. Ficou sem resposta.

A mulher só reapareceu às três da tarde de domingo, dizendo que ia pegar um avião às oito. Fazendo a mala, ela contou que tinha conhecido pessoalmente o artista. Tinha passado aquelas duas noites com ele.

Agora, ia passar o verão na casa dele, em Fortaleza.

Você ficou louca, Malu?

Ela deixou escapar uma risada.

Pode ser. Mas não é maravilhoso?

Antes que a festa acabasse, a dona da casa deixou claro que ele não precisava ir embora. Estava atraída pelo estranho que alguém havia trazido como companhia. Finalmente sós, trocaram beijos no sofá.

Ela entregou a ele uma garrafa de champanhe e puxou-o para seu quarto. Nublados pelo álcool, cada um fez o melhor que podia. Gratificada com um orgasmo, ela adormeceu quase de imediato. Ressonava fundo, enquanto ele recuperava o fôlego com outra taça de champanhe. De repente, uma vibração cortou o ar.

Na penumbra, ele distinguiu um vulto alado. Girava em volta. Firmou a vista e tomou um susto: era um morcego. Devia ter entrado pela janela entreaberta.

Tateou suas roupas no chão, apanhou o cinto e esperou.

Quando o rato voador passou ao alcance, abateu-o com um golpe. Pulou da cama, cobriu o bicho com sua camiseta e massacrou-o com o salto do sapato dela. A mulher despertou com o barulho.

— O que foi isso?

— Olha só o que eu matei — exibiu a presa, orgulhoso.

— Seu filho da puta! É o Igor! O mascote do meu filho!

Era uma praia para poucos, fora da cidade. Na sombra do guarda-sol, uma morena opulenta deslumbrava os veranistas com o esplendor de seus seios nus. O marido, neanderthal de ombros peludos, cochilava por trás dos óculos escuros, a calva besuntada de creme esbranquiçado, as mãos entrelaçadas sobre a pança bojuda.

De quando em quando, um peladeiro de areia chutava uma bola fora com direção certa, e vinha buscá-la sem pressa, para conferir mais de perto os peitos gloriosos da madame.

Um aviãozinho passou roncando sobre a praia, puxando uma faixa com a mensagem — LAVÍNIA, EU TE AMO.

Ela cutucou o marido:

— Amaro, foi você que encomendou essa faixa?

— Não. Tem muita Lavínia hoje em dia.

— Não tem nem trinta pessoas por aqui. Qual é a chance de ter mais uma Lavínia nessa praia? Confessa que foi você.

— Em algum ponto do litoral tem outra Lavínia. Essa aí da faixa. Ou você acha que é a única Lavínia no mundo?

— Ave, que bruto — ela fingiu um beicinho de mágoa, um tom de meiguice desencantada. — Você não é nem um pouco romântico. Podia pelo menos ter mentido. Custava dizer que a faixa era pra mim?

Ele não respondeu. Cobriu o rosto com uma toalha, cruzou as mãos na barriga e afundou devagar em seu torpor.

Ela voltou os olhos para o céu, e entregou-se à onda de prazer crescente em seu ser, prazer de ser Lavínia debaixo do sol.

O avião circulava sobre o mar, assegurando que a mensagem tinha destinatária certa. Escrevia no céu, à vista de todos, que para um outro homem só havia uma Lavínia na terra.

Olha, eu vou explicar direitinho pra você, presta atenção. Não é porque eu te dei uns beijos e levei você pra minha cama que a gente está tendo um caso, entendeu? Você não é meu amante, nem meu namorado, a gente é só amigo, entendeu? E tira a mão da minha coxa, que meu marido logo vai voltar do banheiro. Se comporte. Respeite o Xaxá. Ele gosta muito de você.

 

 

Luiz Roberto Guedes

Nasceu em São Paulo (SP), em 1955. Seus livros mais recentes são Miss Tattoo – Uma quase novela (Jovens Escribas, 2016), e o poemário bilíngue, português/italiano Erosfera (Lumme, 2017). O conto Sorte grande integra o livro inédito Como ser ninguém na cidade grande.

Rascunho