Dever de casa

Conto de Maria Carolina Maia
01/03/2010

Os adultos, eles não levam a brincadeira a sério. Eles fingem que brincam, mas logo depois se cansam de fingir e param de brincar. Acho que adulto não gosta de fingir. Deve ser isso. Mamãe vive dizendo que mentir é feio. E, quando a gente vai brincar de escolinha, às vezes ela faz a professora. Mas não dura muito. Ela inventa uma desculpa e sai no meio da aula, aí a gente tem de escolher uma aluna para ser a professora, e fingir que ela nunca foi aluna ou então que ela tomou um chá especial e ficou grande muito antes que as outras.

Eu acho muito legal brincar. Gosto até de brincar de escolinha, se bem que quando eu tô na escola de verdade não vejo a hora de chegar em casa e brincar de escolinha. É engraçado, né? A escola de mentirinha é mais divertida que a escola da vida real. Vai ver que é por isso que eu gosto de brincar: a vida de brincadeira é muito mais legal que a vida real. Acho que é por isso que todo mundo gosta de novela, também. Eu adoro. Se bem que aqui em casa mamãe é quem mais gosta. Ela até aumenta o volume da tevê quando eu vou brincar com o papai. Acho que ela não quer perder fala nenhuma.

Eu perco todas, não escuto nada. Adoro novela, mas gosto mais de brincar. Eu troco a televisão por qualquer brincadeira, e brincando esqueço de todo o resto. Quando eu brinco, é como se fosse um sonho. A brincadeira é um mundo só meu e da pessoa que brinca comigo. A gente decide o que pode e o que não pode, e então pode tudo o que a gente quiser. Quando a gente dorme, parece que a gente vai pra um outro lugar, onde tudo é do jeito que a gente imagina. E cada hora dá pra ir pra um lugar diferente. Na brincadeira, é a mesma coisa. É que nem os teatrinhos que a gente faz na escola de verdade.

Eu já sonhei que tava na casa da vovó Maria e a casa da vovó Maria parecia a minha casa, mas com cachorro — eu adoro cachorro, mas mamãe não deixa ter um. A vovó Maria tinha a cara da mamãe e o vovô João parecia o papai. Mas no sonho era ela quem queria brincar comigo. Ela brigava com o papai, falando que o papai queria que eu fosse só dele, e que eu era dela, também. Eu achei superlegal, porque eu queria brincar mais com a mamãe, mas ela nunca tem paciência. Ela é adulta demais, eu acho.

Papai sempre diz que a gente não pode deixar de ser criança, ou fica chato. Que o mundo dos adultos é muito sério, só trabalho e trabalho, e que é por isso que a maioria das pessoas morre quando é adulta. Elas morrem porque deixam de ser criança. Papai sempre me pede pra não deixar de ser criança nunca. Mesmo que eu fique grande, ele fala, eu preciso cuidar da criança que existe dentro de mim, assim como ele faz. Acho que eu aprendo muito com o papai. Ser adulto sem deixar de ser criança, nunca me esqueço.

Porque quase todos os adultos que eu conheço são chatos, mesmo. Tudo com cara de bravo, tudo feio e sem graça. Eles não sabem brincar, não sabem contar piada engraçada, não sabem nem escolher presente de criança. Quando vai um amigo da mamãe ou do papai lá em casa, eu sempre ganho roupa. Acho roupa um saco. Eu gosto é de jogo, de boneca, de história pra colorir. Acho que esse povo nunca foi criança. Aí, eles sentam em volta duma mesa e ficam bebendo cerveja, falando do trabalho, de alguma coisa que alguém leu no jornal. Adulto não tem imaginação.

Eles precisavam brincar um pouco pra ter uma história boa pra contar. Brincar é um jeito de mexer com a imaginação. Às vezes, nem dá pra saber como a brincadeira vai acabar. Ela começa de um jeito e termina de outro, totalmente diferente. Eu adoro isso, mas esse povo chato não consegue achar graça em nada. Aí, enquanto eles ficam lá, com aquele papo bobo que eles têm, eu fico no tapete da sala, de lado, brincando sozinha com as minhas bonecas e torcendo pras visitas chatas irem logo embora, a mamãe ligar a tevê e eu brincar de novo com o papai.

O único que gosta de brincar que nem criança é o papai. Ele fecha a porta do quarto, finge que eu sou a mamãe e fica horas nessa brincadeira. Não cansa nunca. O papai ainda não deixou de ser criança.

Maria Carolina Maia

Nasceu em São Paulo, em 1979. Formada em Jornalismo e Ciências Sociais, trabalha como repórter no site da revista Veja. É autora do romance Ciranda de nós, vencedor do prêmio Nascente USP/2006.

Rascunho