Então meus cabelos começaram a cair. Exatamente na tarde em que aconteceu o desfile de cães. Eu achava aquilo tudo muito estranho: vários cachorros de miúdas raças apresentando penteados e roupas estilizadas. Sobretudo eu me perguntava sobre a utilidade de uma exibição canina, tantos poodles e pinchies decorados feito bichos exóticos, ironicamente parecidos com gente. Mas Anita dizia que era assim mesmo, tentava me tranqüilizar — nos países da Europa, os desfiles aconteciam toda semana. Na França, berço de finura, as pessoas disputavam a tapa ingressos para um espetáculo encenado por buldogues. E era desse jeito, os cães soltos no palco; alguns bem adestrados, que sabiam dar voltinhas e paradas no momento certo. Outros (geralmente os maiores) se atropelavam na pista, ansiosos — mas a platéia logo os expulsava, com tomates e gritos: o cão era desclassificado. Nenhum (segundo Anita me disse, novamente tentando me tranqüilizar) jamais avançou no público, e se isso acontecesse o mais provável é que o animal saísse a perigo. A multidão não perdoava falhas no desfile; muito menos instintos selvagens.
Eu observava as luzes esverdeadas sobre o pêlo branco de um poodle. Já estava esperando o arremesso de tomates, porque o animal não se decidia a cruzar a pista. Foi quando um peso leve caiu sobre meus ombros, feito um ramalhete de penas: a sensação escorregou, uma carícia arrepiante sobre minhas costas e pelo espaldar da cadeira, antes de chegar ao chão. Quase ao mesmo tempo, senti um frio na cabeça, a insegurança que se tem quando um chapéu foge ao vento e não há meio de alcançá-lo. No meu caso, era a primeira mecha que caía, espontaneamente, sem brisa que justificasse a fuga. Um punhado de cabelos desenhava um semicírculo no chão.
Resisti à tentação de tocar com os dedos a área vazia, subitamente calva, em meu crânio. O gesto chamaria a atenção de quem ainda não tivesse percebido — e, aliás, será que alguém tinha reparado naquilo? A platéia estava na penumbra, e os focos luminosos se concentravam no palco, em jatos de luz branca, rósea e alaranjada. Anita, a meu lado, batia palmas para o último pequinês que se apresentara. Todos estavam tão concentrados no desfile, que era capaz de ninguém ter visto o escorregar discreto de meu cabelo para o solo. Por um instante pensei se algum engraçadinho não me tinha cortado os fios, sem que eu notasse: mas bastou recordar a sensação para saber que a queda tinha sido espontânea, um deslizar macio depois do desprendimento — quase como um desmaio.
Era possível que até ali o fato tivesse passado despercebido, mas dentro em pouco as luzes se acenderiam, anunciando o final do espetáculo, e então milhares de olhos estariam voltados para a minha região infértil e fria, gravada como um alvo, no meio da cabeça. Eu precisava conseguir algo que me cobrisse a vergonha e a calvície, sobretudo precisava que Anita não percebesse nada. Já planejava como faria: no meio do espalhafato de cadeiras arrastadas e corpos na despedida, eu deixaria que Anita me conduzisse até a saída. Depois, sempre deixando que ela seguisse na frente ou viesse, no máximo, a meu lado, mas de olhar distraído, conseguiria alcançar o carro, onde havia (agora recordava!) um boné no banco traseiro. Não importava que o adereço descombinasse com o paletó da festa; eu diria que estava me sentindo um pouco mal (e decerto Anita acreditaria), para não dar chance a que o programa se estendesse até um restaurante.
Nada acontece como planejamos, porém. Antes da última apresentação, com o exibicionismo dos famosos cães-salsicha, outra mecha se desprendeu de meu couro cabeludo e foi fazer companhia à primeira. Agora tinha um vazio bem na lateral da cabeça, zona próxima da orelha esquerda. Não se tratava apenas de esconder as costas, como eu previra; tinha de evitar mais aquele perfil. Tentava ajustar meu plano, calculando mentalmente os desvios corporais que teria de executar, para que Anita não percebesse o lado calvo, quando a súbita sensação de frieza me atacou também pela direita. Desta vez não pude me conter: tomei a mecha na mão, tão logo ela se desprendia, e foi exatamente no instante em que Anita se voltou para mim, comentando o final do espetáculo. Eu estava ali, desajeitadamente calvo e segurando os últimos fios que me abandonavam a cabeça: uma cena muito mais excêntrica do que a dos cachorros no palco.
Puxaram-me uns dedos nervosos de mulher, até o estacionamento. As luzes não se tinham acendido, e Anita já conseguira me colocar no veículo, protegido com vidros fumê. Sentada ao meu lado, e depois de suspirar umas três vezes, iniciou o interrogatório:
— Você pode me dizer o que está acontecendo?
Não se tratava apenas do cabelo; para ela, a própria relação parecia estar em jogo com aquela minha “mudança de comportamento”. Tentei explicar que era tudo involuntário e, enquanto terminava de lhe dizer isto, um ramo de fios se soltou do alto da testa, para cair bem no meu colo:
— Viu só? Não tenho culpa.
Se arrependimento matasse, eu teria sido fulminado naquele instante, ao lembrar os números de mágica que preparava nos tempos de namoro. Anita agora chorava, dizendo que aquilo não era mais coisa de gente da minha idade, fazê-la passar uma vergonha daquelas na frente de todo mundo, ter de sair correndo para que não vissem a minha brincadeira etc.
— Anita, não é brincadeira.
Acho que ficamos cerca de meia hora naquele estacionamento. Vimos as pessoas saindo do teatro, sorridentes e gesticulativas, buscando seus carros. Madames com casacos luxuosos, homens de paletó — tudo para ver aqueles malditos cães! Sim, por alguma associação ilógica, eu relacionava a queda de meus cabelos ao espetáculo canino. Havia pelo menos um ponto de contato: ambas eram situações absurdas. Eu me sentia duplamente imbecil, portanto: tinha ido ver um inútil desfile de cachorros, e meu cabelo caíra sem explicação. Meditava sobre aquilo, quando Anita saiu de seu silêncio também meditativo, pedindo que voltássemos para casa.
Durante o tempo que passamos dentro do carro, parados e mudos, as mechas não pararam de tombar. Eu já nem me preocupava em catá-las, e agora, dirigindo, exagerava nas curvas, para que o cabelo caísse diretamente no colo de Anita. Com a velocidade, as mechas voavam de fato; a princípio muitas, de fios unidos como cachos. Depois, os últimos fiapos que restavam eram arremessados sem força para o assento ao lado. Minha mulher devia estar enojada daquilo, contendo-se para não gritar. Quando entramos na garagem do prédio, vi como seu corpo se crispava debaixo daquela moita de fios pretos, alguns grisalhos, que lhe espanavam a roupa.
Ao sair do carro, todo o cabelo desabou no piso da garagem. Pensei que Anita talvez quisesse recolhê-lo, para que o zelador mais tarde não viesse a estranhar aquela espécie de lixo de barbearia. Mas ela simplesmente agitou a saia, bateu os sapatos, querendo se livrar dos fios mais teimosos, e partiu para chamar o elevador. Sua aparente indiferença para com o meu estado desabou com a entrada de uma vizinha, no segundo andar. Suponho que Anita tenha sentido um desejo incrível de morte, sua ou minha, enquanto a mulher nos investigava com o olhar assustado, louca de vontade de perguntar algo — mas nós, subitamente estúpidos, não respondemos o seu cumprimento, e eu quase me sentia heróico, naquela defesa de minha calvície.
Bastou entrarmos no apartamento para tudo mudar, porém. Anita me encostou contra a parede, naquele seu jeito de brigar com voz baixa, lábios quase cerrados. Completamente careca, eu já me acostumava àquele novo estilo — e foi o que lhe disse, ao me ver diante do espelho. Afinal, agora o que mais poderia acontecer? Certos homens vão ficando calvos com o passar do tempo, mas comigo era diferente; ela que se habituasse ao seu novo marido. Anita me lembrou (agora com a voz não tão suave) que eu estava ridículo com aquela cara de bebê envelhecido, samurai frustrado, hare-krishna sem rabinho nem toga. Então perdi a paciência: desaforo também era demais. Se tudo acontecera por causa da idéia de ver o desfile de cães! E começamos com uma discussão que por pouco não nos leva a um conselheiro matrimonial. Naquela noite, levou-nos, pelo menos, a quartos diferentes.
Na manhã seguinte, ainda sob os efeitos da luta, Anita me observava, com horror, enquanto eu me vestia para o trabalho. Exagerei na tranqüilidade durante a arrumação: gestos meticulosos e calmos; só não podia me esquecer de tirar o pente do bolso da calça. No íntimo, também estava desesperado. Como seria, no escritório? Bem, eu poderia dizer que me revoltara contra o governo, algo assim, e tinha pedido ao barbeiro que passasse a máquina zero. O chefe talvez não achasse boa idéia: eu trabalhava com o público, e aparência era fundamental naquele setor.
Justamente o que pensava: os clientes e os chefes são criaturas muito previsíveis, e não quiseram saber das minhas justificativas políticas. Em menos de uma semana, eu estava transferido para a seção de contabilidade, com portas fechadas — apenas eu e o computador. Também por essa época, Anita me procurou, preocupada. Tinha descoberto, numa revista (e malditos os inventores desses periódicos para mulheres!), algo sobre uma estranha doença. A pessoa afetada arrancava os próprios cabelos (isso Anita disse sem olhar para mim, é claro) e depois não resistia ao impulso de comê-los (ela falou de costas, fingindo arrumar qualquer coisa na prateleira). Aquilo era muito perigoso; formava-se um novelo no estômago que só podia ser extraído cirurgicamente (um comentário ainda distraído, em meio aos afazeres domésticos). Eu permanecia mudo, os talheres quietos na mesa, enquanto esperava que Anita fosse direto ao ponto. Agora ela se voltaria bruscamente para mim:
— Eu queria que você fosse a um médico.
Não adiantou lembrar que ela própria vira meus cabelos desabando contra a minha vontade. Além disso, eu não poderia, por muita fome que tivesse, ter engolido toda a cabeleira durante o desfile de cães — não se tratava apenas de comer; primeiro era preciso arrancar os fios pelas raízes, e calcule a dor que isso pode causar. Felizmente, meus fios caíram sozinhos, e não me passou a idéia de engoli-los; prova disso era o fato de que ficaram todos espalhados pelo chão, no trajeto do teatro, no carro e na garagem. Mas Anita não lembrava; aquela sua cabecinha concordando tristonha queria dizer que ela não queria lembrar. Exigia que eu averiguasse: dessas exigências doces, que mulher faz sentada no colo, pedindo beijo.
Fui ao médico. Os exames mostraram um estômago perfeito, sem novelo algum. Suspirei aliviado, confesso. Mesmo certo de que não tinha comido um único fio de minha cabeça, por momentos pensei que outro absurdo poderia acontecer, de os cabelos me surgirem dentro da barriga. Fiz esse comentário com o doutor, velho especialista em gastrite, e ele me aconselhou procurar um amigo seu. Ainda bem que Anita não me acompanhou à consulta, senão eu teria mesmo de consultar um psiquiatra. Ao contrário, apenas lhe mostrei os exames, e ela se contentou com minha saúde orgânica. Da saúde mental, eu mesmo cuidava.
Quase seis meses após aquele episódio, eu continuava tão calvo como na primeira noite dos quartos separados. Depois de inúteis tentativas com loções capilares, Anita e eu agora nos entendíamos novamente. Às vezes eu concordava em usar peruca, para agradá-la, porém ela tinha de aceitar que fôssemos à praia toda semana: descobri um grande prazer, que é tomar sol na cabeça nua. O chuveiro é outra delícia — nada como a água tamborilando sobre o crânio. É claro, o frio incomoda em muitas ocasiões (e para isso tenho sempre um boné ou boina por perto), mas no geral ser careca é melhor que ser cabeludo; mais prático, mais natural.
Sem que fosse necessária a terapia sugerida pelo médico, eu me recuperei de qualquer trauma relativo a cabelos: tanto que, certa manhã, folheando o jornal, descobri o anúncio de outro espetáculo de cães. Imediatamente sugeri a Anita que fôssemos; daquela vez seria divertido, e eu não teria nada a temer.
O teatro, como de costume, estava lotado. Quase não achamos vaga para o carro, mas eu estava de bom humor, disposto à tranqüilidade. Anita é que não parava de me olhar com um ar de susto, como se esperasse que algo trágico me viesse. Sentamos no mesmo local da primeira vez, nas cadeiras sob o palco, com visão privilegiada. Pedi a minha mulher que se acalmasse: logo estaríamos vendo o maior espetáculo de poodles, beagles e pinchies, um show inigualável e disputadíssimo na Europa. Com aquelas palavras, Anita pareceu relaxar.
Quando as luzes se apagaram e o apresentador anunciou os primeiros cães, subitamente me dei conta da diversão que era tal desfile. Aplaudi com entusiasmo os mais belos cãezinhos, gritei para encorajar os melhores e expulsar os vadios que não sabiam cruzar o palco. Estava próximo do final, as luzes ainda apagadas para a platéia, quando senti uma pressão de dedos sobre o meu braço. Olhei para Anita e pude ver, mesmo com a penumbra, a repentina ausência de cabelos no lado esquerdo de sua cabeça.