Depois de abril

Conto de Suênio Campos de Lucena
Ilustração: Marco Jacobsen
01/01/2005

Ela devia estar casada. Dois, três filhos, enfim, aquela história de sempre, mas também poderia estar separada, por que não? Bem, mesmo que estivesse certamente daria errado. Nos últimos anos sua vida não era só uma conjunção infindável de desgraças, a avalanche de fatos negativos, então no encontro não seria diferente. A idéia veio após a leitura de O encontro marcado, o livro de Fernando Sabino tão em moda naquele tempo. Ela leu e lhe emprestou, dizendo após um riso irônico, Bem que podíamos fazer algo parecido. Só diminuíram o tempo, no livro eram trinta anos? Esqueceu. Enfim, não importa. Ela lhe estendeu o exemplar e disse em seguida, Pode ficar, mas não deixe de levá-lo para o nosso encontro marcado. Isso se ele não tivesse perdido. Onde? Feitas as contas, ele teria quarenta e seis e ela quarenta, mas e se estivessem mortos, hein?

Enquanto coa o café, ele pensa em outra manhã, abafada, os arcos da faculdade, ah e os projetos de fama e glória. Enquanto isso, discutiam (ele sentado na grama, brincando com os arbustos que nasciam no pátio, e ela sentada no banco duro de concreto) a data e o local mais apropriados. Pensou tantas vezes em dizer que a amava, mas nunca teve coragem, era pobre.

Derrubou o bule e a garrafa térmica espatifou-se no chão. Droga! Droga! Recuou e conseguiu extrair meio copo, mas logo esfriou. Acendeu o cigarro na cozinha mesmo e na solidão e no vasto vazio de si mesmo pensou onde e quando tudo tinha começado a dar errado. Vinte anos de desgraça, sim, muita coisa ruim lhe acontecera desde então. Trabalhou em grandes escritórios, defendeu gente rica e importante, mas a jogatina, a bebida, as mulheres. Agora está sozinho. E pobre, cada vez mais pobre, como se isso fosse possível. Enquanto isso ela ficava mais e mais rica, casou, descasou, os filhos. Chegou algumas vezes a lhe telefonar, Poxa, há quanto tempo, não resisti e decidi saber como você estava, pensou em lhe dizer sorrindo, o coração disparado, mas sempre desligava. E afinal havia o encontro marcado, essa idéia que parecia nunca ir chegar. Era hoje.

Às vezes pensou em simular um encontro. Por acaso não poderiam se encontrar no supermercado, no cinema? Chegou até a ensaiar o (falso) acaso, mas sempre desistia ao imaginar que talvez, passados tantos anos, ela nem se recordasse mais daquele jovem que adorava recitar versos de Castro Alves e suas espumas flutuantes. Nas discussões políticas, ela dizia ser uma conservadora. Mas nem tanto. Já naquela época falava de Kafka e fumava, estava sempre de cigarro em punho, isso porque ele detestava cigarro e por extensão todas as garotas que fumavam, umas metidas.

Lia Castro Alves (sim, era um romântico) encantado com a paixão do poeta pela atriz Eugênia Câmara, o clássico tiro no pé, quando ela chegou fechando o livro e falou sorrindo, Vamos fazer como esse livro que estou ado-ran-do? Que tal marcarmos um encontro para daqui a vinte anos? A história do livro é um encontro marcado por três amigos, mas no nosso caso… Ela então sorriu enigmática (irônica?), devia saber da sua paixão por ela. Ele baixou a cabeça, o rosto corado, envergonhava-se fácil, o bobo. Por acaso ele não queria fazer algo parecido? Quem sabe vinte anos depois ela não se apaixonaria por ele, mas daí ele estaria cheio de filhos e feliz e nem para ela? O único ponto ruim do trato é que durante esse tempo não deveriam procurar um ao outro, a não ser que houvesse uma forte justificativa. Sim, ele concordou. Tinha outra escolha? Ela então o beijou leve e rápido e segurou sua mão. Foram para o pátio (ele feliz da vida) e então ela lhe disse que em breve, tão logo se formasse, iria seguir numa longa viagem para a Europa com os pais, um cruzeiro, cursos no exterior. Em seguida, discutiram qual o melhor local, até que decidiram ser ali mesmo, justo naquele banco duro de concreto, onde ela sentou, ou no gramado, onde ele estava. Será que ainda vai existir esse gramado, quando chegarmos aqui? Não, não existia mais. Na última vez que foi, os bancos tinham sido retirados, havia se tornado ponto de marginais, avisou o guarda. Vinte anos.

Apagou o cigarro e da cozinha foi pra sala na (vã) tentativa de diminuir a expectativa. Desempregado e só, esse encontro tinha se transformado na razão da sua vida. Vinte anos. Ou melhor, em duas horas. O encontro marcado onde costumavam se encontrar, fazer planos pro futuro e falar bobagens: O pátio da faculdade. Esteve lá diversas vezes ensaiando o encontro (o pátio já não existia mais), mas uma nuvem sempre aparecia nessa hora anunciando que esse dia nunca ia chegar. Segurando a xícara vazia, empertigou-se no pequeno sofá de dois lugares e admirou a si próprio: Jeans surrado, tênis sujo, camiseta puída, ele iria mesmo assim? Ao redor, o quarto e sala alugado, as paredes sujas. Quanta distância daquela manhã quando lia Castro Alves e sonhava e acreditava num mundo melhor, fizeram tantos planos naquela manhã iluminada, ficaram imaginando o que iria acontecer a eles até chegar a esperada data. Riram muito quando lembraram que talvez ele estaria barrigudo. Ou careca. Será que chegaremos em naves espaciais? Decidiram que deviam se encontrar entre o fim do verão e o começo do outono, quase inverno, a temperatura amena, assim depois de abril. Maio. Alguns dias depois e já era o fim de semestre e logo as aulas acabaram. Ela foi para a Europa enquanto ele ficou tentando um estágio num grande escritório de advocacia, mas acabou mesmo como office-boy numa empresa de bebidas, meio salário mínimo, mesmo assim ainda dava para ajudar nas despesas de casa.

Abriu lentamente a pasta repleta de cartas endereçadas a ela, nunca enviadas. Devia levar e mostrá-las? Não, seria piegas. Isso sem falar nos versos que cometeu em sua homenagem, ah, isso então nem pensar. Final mais melancólico esse seu, hein Leandro? Sempre que se chega na velhice essa mania de se descobrir poeta. Mas o que dizer a ela quando lhe visse chegar ao encontro marcado sem o livro e vestido assim, um derrotado. Procurou o cigarro e viu que era o último. E ele que detestava cigarros, hein? Será que ela fumava ou havia se tornado uma antitabagista? Ou comprava cigarros ou tomava ônibus para a faculdade, precisava decidir, não havia dinheiro suficiente. Rasgou as cartas, até chegar na foto preto e branco, A foto histórica, ela disse quando saíram à procura de um fotógrafo, um lambe-lambe para registrar a despedida. Caminharam muito (já naquela época havia poucos) até encontrar. Não imaginava que seus cabelos (os poucos que sobraram) ficariam assim brancos, sem falar nas rugas, em especial as da testa, linhas e mais linhas cortando a pele, pareciam navalhadas. Gostava de comparar essa foto com outras dela recortadas das colunas sociais. Atenção especial para o cabelo loiro, as covinhas mais acentuadas do rosto. Sempre ficava na dúvida quando comparava a foto com os recortes de jornais, um leve repuxado dos olhos, tão leve que quase passava despercebido. Uma plástica?

Levantou e foi ao banheiro. Demorou-se um pouco mais diante do espelho descascado. Talvez ela não o achasse tão envelhecido assim. Quando marcaram comentaram às gargalhadas, não levaram a sério essa coisa devastadora do tempo, eram jovens. O tempo. “Oito horas”, anuncia o locutor da Rádio AM. Ela certamente não ouvia Rádio AM, hein? Restaurantes, viagens, carros importados. Enquanto ele vivia de biscates, depois de ter largado a companhia de táxi. Cansou de passar na grande avenida só para ver o nome dela afixado na placa de granito, Cecília Andrade & Associados, Grandes Causas. E o receio de vê-la na rua pedindo um táxi? Chegou a parar certa vez, mas ao perceber arrancou. Depois disso, nunca mais passou perto do prédio, isso quando ele ainda tinha carro na praça. Até que a bebida, enfim… Nessa manhã em que acorda desiludido com tudo, os políticos cada vez mais corruptos, enchentes, assaltos, tiroteios, mortes, assassinatos, só lhe restava o encontro, o encontro, martelava em sua mente dia e noite. Não tinha mais nada. Nada. A não ser esse canto de pássaros, se tudo der errado pelo menos terá o arrulho matinal dos pássaros. Vinte anos atrás estaria fazendo versos ao som desses pássaros.

Banhou-se rapidamente, escovou os cabelos e passou um pano úmido no tênis. Resolveu comprar cigarros, tomar um café (fiado) na venda e uma cachaça e ir caminhando. Doze quilômetros, mas em uma hora estaria lá. Vestiu-se, espargiu água de colônia sobre o corpo e foi.

Suênio Campos de Lucena

É jornalista e escritor, autor de 21 escritores brasileiros e Depois de abril.

Rascunho