De Teletransporte Nº 2

Conto de Marcio Renato dos Santos
Ilustração: Felipe Rodrigues
01/09/2010

O carro segue e não sei dirigir e o copo com vinho estava em cima da mesa e uma luz a piscar no prédio ao lado e ouço uma canção do hemisfério sul mas nada impede que o automóvel siga numa avenida de uma grande cidade e atrás do volante eu sujeito ou objeto que não aprendeu não sabe e jamais conseguirá dirigir e não sei nem saberei dirigir nada muito menos um carro e o carro segue — como segue se não piso no acelerador e não sei trocar marchas muito menos conduzir o volante? — e um outdoor anuncia água mineral com gás e me faz esquecer esse problema que parece aquele sonho recorrente eu atrás de um volante de um carro em movimento — eu que não sei dirigir nada.

E agora nem sei se é sonho ou se acontece e parece que um passado que já foi e não tinha mais volta voltou e querem roubar tudo que é o pouco que tenho no presente e são seres que não têm passaporte nem estrada para chegar onde estou chegam e revelam fatos que podem ruir o chão por onde caminho e que parecia me levar a um futuro qualquer que fosse e penso em matar esses sujeitos que desejam me prejudicar mas não tenho revólver nem balas e se tivesse não ajudaria porque não sei atirar apesar de dizer que já atirei e até matei e se não tenho arma poderia tentar bater nesses sujeitos mas eles são mais velhos que eu mas eram mais velhos no passado e hoje tenho a mesma idade que eles tinham e sou mais forte apesar de não saber lutar nem atirar nem dirigir um carro e novamente estou atrás do volante de um carro em movimento.

O carro segue e estou atrás do volante e ao meu lado uma mulher que trabalha em uma casa lotérica diz que ninguém ganha os prêmios e que os jogos são mesmo de azar e apenas ela tem sorte porque escapa dos muitos assaltos que acontecem onde trabalha e talvez eu também tenha alguma sorte porque agora o carro onde estamos ultrapassou dois veículos e não sei dirigir e também não sei se isso é sonho delírio ou acontece e a mulher recebe o dinheiro das apostas mas não tem moedas para o ônibus e foi por isso que pediu carona e parei o carro e ela entrou e seguimos e ela mora perto de um vulcão em bairro distante de onde estamos e eu disse tudo bem que te levo até o portão da sua casa e ela falou foi muita sorte eu ter parado o carro ou então ela teria de caminhar mais de vinte e dois quilômetros e agora está escuro o sol se foi e chove e tem neblina na estrada e não enxergo nada em frente e a luz do carro também apagou.

E o carro parou caminho e então é carnaval luzes a piscar e uma escola de samba se aproxima e não há confete nem serpentina e setecentas pessoas paradas numa arquibancada na avenida carros passistas e nenhum sorriso quem desfila não dança e olha para o relógio ou para um ponto distante de onde se está agora e quem mais se move são os lixeiros com vassouras e é preciso recolher os restos porque daqui a pouco é a vez de outra escola desfilar mas não há samba nem desfile nem escola nem sambistas nem alegria que é apenas uma palavra que poucos conhecem por aqui e estou parado sem sorrir apenas a olhar o que parece velório ou enterro de alguém ou algo que você não sabe quem é foi ou será.

Caminho uma duas três quadras e entro em um salão e é o grande e talvez último show de rock and roll e me entregam uma guitarra e logo estou no palco mas não sei tocar não conheço o repertório e o baterista anuncia um dois três quatro o show começa e não sei o que fazer com a guitarra que está em minhas mãos e esse instrumento está desafinado e preciso tocar e os músicos olham para mim pedindo que eu comece logo porque daqui a alguns segundos será o momento do solo de guitarra do último show de rock da história do rock e eu fui escalado para essa performance mas sequer consigo acertar uma das seis cordas deste instrumento que está desafinado e ligado nas caixas de som em volume elevado e toda a platéia olha para mim.

Queria poder parar esse sonho que não tenho certeza se é sonho ou acontece mas agora estou de novo no volante e não sei dirigir nem sei como o carro ultrapassa outros carros e não bate e em um segundo estou no palco e é o momento do solo e não sei tocar nem afinar e a guitarra está desafinada e toda a platéia com mais de mil pessoas a olhar para mim e tenho de solar e não sei nada de música e outra vez estou na direção de um carro que segue a cada instante mais veloz e acabo de ser arremessado em direção ao seu olho direito e parece que entrei dentro de você furando o seu olho direito e estou a circular na sua massa de sangue.

E caminho não dentro de sua massa de sangue mas sobre águas multiplico pães curo doentes ressuscito mortos anuncio um novo tempo e me querem na cruz mas isso deve ser alucinação sonho e não acontece mas não sei como escapar dos algozes e agora o mar se abre para eu caminhar e tenho outros superpoderes mas carrego em uma das mãos várias contas atrasadas que vencem hoje e não tenho dinheiro para pagar e pergunto de que adianta tantos superpoderes se não consigo honrar dívidas que nem lembro ter feito mas essas pendências estão no meu nome e nem lembro como fui batizado como me chamam qual o significado do meu nome e então tem eclipse.

E tem eclipse no momento em que estou a pilotar um avião mas isso não existe não é sonho talvez seja fragmento de outro enredo porque pilotar aviões não faz parte de sonhos recorrentes nem dos meus temores e o que se repete em meus sonhos são situações em que estou a dirigir um carro apesar de não saber e também sem saber tocar ter uma guitarra nas mãos diante de uma imensa platéia e agora tem eclipse na cidade e todas as luzes se apagaram os semáforos também e os carros precisam circular incluindo o que me encontro e eu não tenho nenhuma noção de como fazer o carro seguir mas o carro segue e as luzes dos prédios e das casas se apagaram e não tem estrelas no céu nem lua porque tem eclipse e agora parece que já é amanhã.

O combustível acaba e o carro que dirijo sem saber dirigir aos poucos pára e então começo a caminhar apesar da chuva que me molha e está tudo escuro e passo por ruas que não conheço e parece que é perigoso circular nesta região mas não tenho nada a perder a não ser a minha vida e balas disparadas por armas de fogo quase me acertam e sujeitos me olham e quase me abordam e quase me assaltam e há outras pessoas a correr a gritar a chorar e a verbalizar palavras e frases que não entendo mas que parecem expressar medo e isso parece um pesadelo e eu queria estar na cidade de uns vinte anos que se foram quando era possível caminhar à noite e não havia perigo mas agora é outro tempo e sinto fome sede cansaço e há uma luz acesa perto daqui.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho