De onde Huston tirou “votos partidos”?

John Huston se despediu do cinema com a versão cinematográfica desse conto magnífico, e aqui o filme foi visto com o título Os vivos e os mortos
John Huston
01/09/2002

O poema não está no livro.

Ou, mais precisamente, não está no conto — The Dead — que integra Os dublinenses.

John Huston se despediu do cinema com a versão cinematográfica desse conto magnífico, e aqui o filme foi visto com o título Os vivos e os mortos — o que é ridículo, como acréscimo feito para tornar mais atrativos os títulos nas marquises dos cinemas. (Agora mesmo está sendo exibida a patuscada patriótica que é We were soldiers e, por mais desprezível que seja — falsa — história de soldados americanos irrepreensíveis na loucura do Vietnã, o título original diz: “éramos soldados” e não “fomos heróis”, como se fez que alardeassem, arrogantemente, no Brasil. Há um abismo entre se dizer que “fomos soldados”, isto é, “cumprimos ordens, fizemos o possível” etc, e se afirmar que “fomos heróis”, isto é, fizemos mais do que o possível, de forma admirável e exemplar etc).

Mas, voltemos a Huston. De onde ele tirou Votos Partidos?

Não está no texto original, e é um dos mais belos poemas que eu já li ou ouvi (porque, no filme, é declamado pelo sujeito, meio embriagado, que sempre tem que declamar aquilo, na festa de Natal tensa que é todo o arco do conto e também da última obra do velho búfalo genial que foi John).

Vi The Dead três ou quatro vezes, copiei o poema e o transcrevo para que vocês possam ler um dos mais pungentes textos que já caíram nas minhas mãos ímpias ou entraram por meus ouvidos acostumados a ouvir coisas estranhas, mas não isto:

Votos partidos
Era a tarde a noite passada.
O cão falava de você.
O pássaro cantava no pântano.
Falava de você.
Você é o pássaro solitário na floresta.

Que você fique sem companhia,
Até achar-me.
Você prometeu e me traiu.
Disse que estaria junto a mim
Quando os carneiros fossem arrebanhados.

Eu assobiei e gritei cem vezes.
E não achei nada lá,
A não ser uma ovelha balindo.
Você prometeu uma coisa difícil.

Um navio de ouro sob um mastro prateado.
Doze cidades e um mercado alegre em todas elas.
E uma branca e bela praça à beira-mar.
Você prometeu algo impossível.

Que me daria luvas de pele de peixe.
E sapatos de asas de ave.
E roupa da melhor seda da Irlanda.
Minha mãe disse para eu não falar com você.
Nem hoje, nem amanhã. Nem Domingo.

Foi um mau momento para dizer-me isso.
Como trancar a porta após ter a casa arrombada.

Você tirou o leste de mim.
Tirou o oeste de mim.
Tirou o que existe à minha frente.
Tirou o que há atrás.
Tirou a lua.
Tirou o sol de mim,
E meu medo é grande.
Você tirou Deus de mim.

Obviamente, o poema tem o clima daquelas sagas perdidas do mundo celta — e também da festa onde ele dilacera as almas já tristes. O solene poema é arrancado, todo, no seu tom reiterativo, daquela pedra de ódio e amor que jaz no coração das mulheres, e é natural que elas chorem, à mesa farta, quando o bêbado recita em nome delas.

O poema vem da noite — e prossegue. Há cenários estranhos que nos enxergam através dele. E o poema nos diz que uma vez, pelo menos, estivemos longe demais para retornar e fomos em frente, em busca de coisas malditas e de coisas sagradas, misturadas numa eremitério de frente para o mar ressoando, melancolicamente: “você traiu, você traiu, você…”

O desespero de todas as traições — e de todas as perdas — é trazido para dentro da casa, através dele, como um par de galochas traz a aspereza das intempéries para o saguão atapetado de veludo e renda. E todos ficam em suspenso — à volta da mesa composta, nos mínimos detalhes, para ser hipócrita e alegre — porque sabem que, a essa voz, vão se arrepender do que não fizeram (e, do que fizeram, também irão se arrepender).

O lamento, fundo, é anterior e póstero ao mesmo tempo — soando na chuva irlandesa, entre lágrimas confundidas e o som que a neve não faz aos nossos ouvidos.

Dizer um tal poema, na noite de Natal, é como rezar uma prece cruel, que estendesse a culpa a Deus, soletrando todas as nossas faltas, o céu vazio, o enorme silêncio pela manhã Não devia ter sido recitado mais uma vez…

Não se pegam, assim, as pessoas pelas fraquezas secretas, meu rapaz. Educadamente, evita-se dar voz às vozes das charnecas, limpam-se e secam-se as roupas molhadas do frio lá fora — enquanto se aquecem as cordas vocais com uísque quente e nobres sentimentos falsos como a promessa de não mais se embriagar nas festas das irmãs…

Os fantasmas abandonados nos ferem. Quando eles entram, eles entram na festa, quando eles rodam na dança, quando eles completam as nossas palavras mudas, quando os seus velhos pensamentos se alongam em salas que tentam ser vivazes e alegres… Cala-se, amigo, pois a noite de Natal é um cristal tão fino que se parte contra o soluço da criança e o pensamento da moça na janela.

NB: Wilson Sagae: você, que tem tantos amigos irlandeses, seria capaz de procurar saber de qual saga John Huston acaso tirou Votos Partidos – digno dos poemas das peças de Yeats?

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho