Miley Cyrus mostra sua casa incendiada, localizada à beira-mar em Malibu. Vigas chamuscadas e móveis reduzidos a cinzas compõem o visual despojado da sala de estar, onde elegância e catástrofe são colocas lado a lado, com a naturalidade de duas irmãs há muito tempo desgarradas. A mansão, outrora imponente, agora já não tem mais paredes. Tudo é janela e o vento fresco circula de ponta a ponta, levando com ele nuvenzinhas de farelos, prováveis partículas das utilidades domésticas que pertenciam à estrela da música pop. Cyrus caminha em meio às brasas e se acomoda no que restou da varanda, onde se acumulam restos carbonizados de aves silvestres, depositados ao azar como se ofertados a uma divindade pagã. Cyrus beberica dois goles de um mojito, observada por um grupo de corvos que se aninha nas vigas do telhado. Ela se acomoda num canto, senta-se no esqueleto de um sofá, estende os braços e me diz:
“Esse é meu reino.”
Poucos jornalistas tiveram essa oportunidade, de observar Miley Cyrus à vontade em seu lar destruído. Sinto-me privilegiado ao passear ao seu lado por mais quarenta minutos, esquadrinhando o que restou da propriedade. Ela amarra um lenço ao redor dos cabelos louros, deixando as pontas arrebitadas como as orelhas de um coelho, depois relata como foi transformador compreender os efeitos dos incêndios florestais. Primeiro, teve medo. Depois, sentiu-se próxima de um estado elevado de absolutamente nada. Assistiu impotente às chamas destruírem seu belíssimo imóvel de paredes turquesa através da transmissão de uma câmera de segurança que permaneceu ligada. Estava em Nova York visitando amigos e, diante de um laptop, os olhos cheios de lágrimas, dizia a si mesma que não havia o que fazer, tudo fora perdido. Anos de trabalho reduzidos a poeira, incluindo as dezenas de suvenires dos seus anos de Hannah Montana, suas lembranças mais preciosas, as pedras que pavimentaram sua estrada rumo ao estrelato.
Era como observar a si mesma definhando, ela diz, como se alguém invadisse seu quarto no meio da madrugada e amputasse cada um de seus membros. Logo, no entanto, entrou em quadro a luz vermelha de um caminhão de bombeiros que se aproximava. Testemunhar a vã tentativa humana de conter a força irrefreável da natureza fez com que Miley Cyrus sentisse a gradual compreensão de que não havia o que ser feito a não ser deixar tudo para trás. Afinal de contas, ela diz com a serenidade dos fortes de espírito, não eram infância ou patrimônio que compunham a integridade de sua essência.
“Senti que o fogo devorava uma parte de mim, algo que já não me pertencia. Era preciso que eu reinventasse essa parte, ou não somente a parte perdida, reinventar a mim mesma por completo, criar algo melhor, algo completamente diferente que não apenas substituísse o que foi destruído, mas que reafirmasse a completude da destruição e proclamasse minha soberania recém-descoberta nos escombros.”
Minha primeira reação é estranhar o conformismo de Cyrus com a aniquilação de sua propriedade. Mais do que conformismo, fica bem claro quando chamo o repórter fotográfico para registrá-la à deriva em seus anônimos blocos de concreto, tomando sol no quintal próxima aos resquícios de um gazebo, provando um vestido de textura metálica diante de um espelho enegrecido, segurando uma guitarra enquanto se apoia nas grades enferrujadas que guardam o acesso ao quintal na parte de trás da propriedade, o que ela sente é orgulho e confiança. Logo, no entanto, descobriria que Miley Cyrus não está sozinha, que a soberania descoberta nos escombros era um sinal dos tempos, prenúncio de uma nova mentalidade entre os habitantes do sul da Califórnia.
Quando chegamos à mansão destruída de Lana Del Rey, a cantora nos recebe com entusiasmo e oferece uma narrativa similar. Diz que a traumática mudança a colocou em estado de nervos a princípio, mas que, depois, começou a se habituar com a precariedade da nova decoração. Era preciso fazer o melhor a partir das trágicas circunstâncias, reforça. No quarto, dezenas de montantes de cinzas se organizam em degradê. Diferentes tons de branco, cinza e preto, algo que remete aos estudos cromáticos de Mark Rothko.
Del Rey tomou conta das manchetes por ter sido a primeira celebridade a divulgar imagens de sua casa destruída nas redes sociais. Com a hashtag #BeginAgain, a exposição de vigas demolidas estimulou uma onda de posts celebratórios entre seus pares, incluindo atores, atrizes, cantores, cantoras e socialites, como Kim Kardashian, que posou nua nos destroços de sua cozinha, seios cobertos pelos farelos carbonizados de um jogo de toalha. Agora, Del Rey nos conduz ao pátio, onde um pedaço de pau com varas retorcidas de alumínio proporciona uma estranha hospitalidade aos visitantes, algo como o sinal de boas-vindas oferecido por uma civilização incompreensível. Lana Del Rey percebe minha inquietação com o mastro desajustado.
“Era um guarda-sol”, explica a cantora. “Agora é isso aí mesmo.”
Estamos à beira de uma piscina vazia, sentados em cepos recobertos por uma fina camada de fuligem. Del Rey cruza as pernas, confessa que o incêndio teve forte impacto em seu processo de criação, fazendo com que repensasse o conteúdo de seu novo álbum, com previsão de lançamento para o próximo semestre.
“Decidi incendiar o estúdio e começar do zero.”
Ela conta que abandonou as composições em que vinha trabalhando por quase seis meses. Depois, puxa o celular de dentro da bolsa e dá play numa das canções pós-incêndio, uma balada piromaníaca chamada Flaming honey full of fire. Na faixa, Lana Del Rey canta, em seu característico sussurro melancólico, a história de uma jovem desiludida que se afasta de um relacionamento conturbado com um bombeiro alcoólatra. Seu instinto de fuga faz com que ela dirija um Cadillac até a costa da Califórnia e se deixe envolver pelas chamas insuspeitas de um incêndio florestal.
“It’s time to start again”, ela entoa. “Flaming honey full of fire, you’re onto something wild.”
A canção é algo típico da cantora, reminiscente de suas melhores composições. Soa, no entanto, como algo inteiramente novo, com um arranjo torto e bruto, algo não tão distante da impressão que se tem ao observar pela primeira vez o guarda-sol ao nosso lado, e um beat distorcido de ritmo ilógico, mais próximo da música industrial que do seu tradicional pop aveludado. Ela me explica que a estranha percussão é, na verdade, a gravação do crepitar da fogueira em que se transformou o antigo estúdio, processada e amplificada digitalmente.
Quando a música termina, ela passeia pela galeria do iPhone e me mostra uma fotografia: Nela, Del Rey fuma um cigarro diante do estúdio em chamas, olhos fixos para além da câmera, carregados de fúria e pesar, observando quem a observa. Tem o cabelo desgrenhado, maquiagem borrada, sombra escorrida nas bochechas como a máscara de uma inusitada criatura mitológica.
“É a capa do single”, ela me diz.
Como ocorre em todas as tendências, a onda das casas em chamas, ditada pelas celebridades, começa a se espalhar entre o público em geral. Conversamos com quatro empresários do setor e todos concordam: os incêndios a domicílio chegaram para ficar. Uma dessas empresas é a Home Fires, com sede em Los Angeles, que tem feito cerca de trinta incêndios controlados por semana, inclusive para celebridades cujos lares não estavam na rota de destruição nos incêndios florestais. Em nossa visita ao quartel-general da empresa, encontramos um amplo galpão onde repousam lança-chamas, galões de gasolina e querosene, materiais explosivos e dispositivos de implosão controlada.
“Os clientes gostam da aventura”, diz o proprietário John Burns, que tinha antes uma empresa de jardinagem. “É um ato radical de paisagismo para quem já se cansou de todas as possibilidades.”
Por enquanto, os incêndios a domicílio ainda são serviços de luxo, oferecidos a preços que variam entre os 30 e 50 mil dólares. Empresários do ramo, no entanto, projetam uma rápida popularização dos preços, provocada por uma estimativa no aumento de interesse na casa dos 500% para os próximos dois anos.
“É o estilo de decoração perfeito para a nova década”, diz Burns ao acender um cigarro com a confiança de um ator veterano. “Com a intensificação das ondas de calor, deixará de ser exclusividade dos ricos e dos famosos. Todo mundo terá acesso a seu próprio incêndio doméstico.”
Acompanhamos Burns a um desses incêndios. Junto com ele, dois foguistas, ambos bombeiros licenciados do Departamento Florestal e de Proteção de Incêndios da Califórnia. David Fontaine e Paul Babczynski têm dois metros de altura e ainda não compreendem exatamente como cruzaram a fronteira entre o apagar e o provocar combustões. Fontaine confessa que seu instinto primal ainda é o de lançar jatos d’água contra um foco de incêndio, em vez de alimentá-lo. Babczynski, mais sisudo, limita-se a resmungar uma negativa por trás do bigode quando pergunto se o trabalho é do seu agrado. Ainda assim, foram contratados por Burns, crente na pírica perícia da dupla de titãs.
Chegamos a uma mansão de três andares na Sunset Boulevard, residência de um famoso produtor de cinema que preferiu não ter o nome divulgado. Observamos os foguistas espalharem gasolina nos cômodos, fixar circuitos de alta-tensão nas paredes. Burns nos explica que os incêndios são personalizados, servem de acordo à vontade do cliente. Há aqueles que gostam de grandes espetáculos, rápidos e destrutivos, enquanto outros preferem observar a lentidão do fogo enquanto arde de uma parede à outra, incêndios graduais em diferentes fases, do mesmo modo que um restaurante sofisticado oferece uma complexa sequência de pratos.
Para Burns, seus incêndios a domicílio não são simplesmente um serviço, mas o gesto radical que sinaliza a adoção de um novo estilo de vida, bem mais em sintonia com os tempos atuais. Pergunto a ele de que maneira os imóveis arrasados manifestam o zeitgeist e ele diz que a resposta é óbvia, pois não há nada mais humano do que incendiar o próprio lar, basta ver o que acontece com o planeta. O empresário ainda nos confidencia: com o intuito de otimizar seus serviços, os métodos empregados pela Home Fires foram desenvolvidos com o auxílio de Coleman Webster, um conhecido profissional de efeitos especiais de Hollywood, talvez o maior especialista em explosivos de toda a indústria, renomado entre os aficionados do gênero western.
“Foi Webster quem orquestrou aquela explosão do trem no clímax de Five miles from Cincinnati”, diz Burns, referindo-se à icônica cena em que imensas colunas alaranjadas de fogo são refletidas no azul dos olhos de Paul Newman.
A comoditização do fogo é tanto um processo econômico quanto alquímico, diz o economista australiano Mark Langford, que há duas décadas pesquisa os processos capitalistas de reprodução sob o ponto de vista do ocultismo. Langford reside em Brisbane, leciona no Instituto Australiano de Estudos Avançados da Economia e é autor de Alchenomics: The search for gold in alchemy and modern capitalism (AIAEE Press, 2008). Ao longo dos últimos meses, tem observado de perto o fenômeno dos incêndios domésticos sob encomenda.
“Ao inaugurar um novo mercado onde antes não havia”, relata Langford, “o capital dá início a um novo ciclo, a uma nova ordem simbólica, estabelecendo a transmutação de nada em algo, de latência em ação”.
De acordo com Langford, sua tese pode ser constatada ao observarmos a maneira como o capital se apropriou dos elementos clássicos. Comoditizou primeiro a terra, ao atribuir papel fundamental aos títulos de propriedade de terreno, importante desenvolvimento para a fundação de cidades modernas. Em cima disso, estabeleceu o mercado da especulação imobiliária, criando um novo regime de símbolos relacionados a terra. Depois, a água, ao inventar os sistemas urbanos de abastecimento e as redes de distribuição, controlados por operadoras associadas ao estado e funcionais mediante taxas de serviço. E, a partir da Revolução Industrial, comoditizou finalmente o ar, cuja qualidade é determinante na atribuição de valor a uma propriedade — quanto mais puro o ar e mais distante a localidade de fábricas e carvoarias, mais elevado o valor atribuído. O conceito de “pureza do ar”, diz Langford, é uma atribuição retronímica derivada de índices massivos de poluição. Isto é, apenas compreendemos a ideia de “ar puro” porque nos habituamos ao seu oposto, “ar poluído”. Antes das fornalhas e carvões, todo ar era simplesmente ar.
O fogo, no entanto, é um elemento de destruição e nunca pôde ser comoditizado, afirma Langford. Ele nos recorda que o primeiro a enxergar o valor transacional do fogo foi o titã Prometeu, que trouxe o fogo da esfera divina e o ofereceu à humanidade, consolidando, por assim dizer, um ato de transmutação do plano etérico ao material, oferecendo um novo produto aos homens de sua época e inaugurando um possível mercado, sendo o titã um precursor tanto de Paracelso quanto do capitalismo laissez-faire. Langford dá sequência à analogia e afirma que o castigo oferecido a Prometeu pelos deuses olímpicos é semelhante à perseguição sofrida pelos praticantes da alquimia por parte da Santa Inquisição, o que por sua vez equivale às obstruções impostas pelo estado ao funcionamento de um mercado verdadeiramente livre. De qualquer forma, ele continua, a humanidade nunca foi capaz de transformar o fogo prometeico em objeto de comércio.
Langford descarta isqueiros e palitos de fósforo, em que o fogo não passa de meio para um fim, bem como ignora o desenvolvimento da indústria armamentista, em que o fogo, em vez de ter aproveitada sua carga solar, serve apenas como propulsão a outros tipos de energia: a saturnina e a marciana, representadas pelos metais ferro e chumbo. Comoditizar o fogo pelo fogo seria atribuir valor comercial à sua imanente conexão com o astro-rei, manifesta na capacidade de destruição de um estado e imediato estabelecimento de outro, na habilidade de encerrar ciclos antigos e dar início aos novos, o caos em nome da ordem.
“Atear fogo à própria casa é o cumprimento de um ciclo cósmico”, diz Langford. “Pois de fogo é feito o Sol e o Sol, maior dispersador da energia do sistema planetário, descreve perfeitos ciclos eclípticos, pois tudo no Sol é perfeito e o Sol é a entidade que manifesta a perfeição do Universo. De fogo é feito o Sol e o Sol, em nossa esfera terrena, propulsiona sua energia através do metal mais raro e perfeito, que é o ouro. Atear fogo à própria casa é canalizar a energia destruidora a fim de se encerrar um ciclo e dar início a outro, o que nos coloca um passo adiante rumo à perfeição e à pureza.”
Nesse sentido, Langford continua, é importante observar que o fenômeno dos lares incendiados sob encomenda tem início na Califórnia, o que ele classifica como um desenvolvimento natural de uma órbita constante da região em torno dos símbolos solares do ouro e do fogo. O sul do estado costeiro é uma região de climas árido e subtropical, famoso por suas praias ensolaradas. Ao norte, o condado de El Dorado foi epicentro de uma das mais agitadas corridas do ouro da história americana, que se deu entre 1848 e 1855, quando mais de 300 mil pessoas ocuparam o estado após a descoberta de preciosas jazidas. Diz Langford, ainda, que o próprio nome “Califórnia” é resultado da emanação de energia hélica, áurica e pírica, sendo uma derivação do termo espanhol medieval Calit fornay, que significa “quente fornalha”.
Para Langford, o estado, centro energético ligado ao Sol, é um marco civilizatório da completude dos ciclos e da conclusão de uma Grande Obra.
Explico tudo isso a John Burns e, por alguns segundos, ele parece não esboçar reação alguma. Depois me oferece um sorriso malicioso e diz, referindo-se ao produtor de cinema cuja residência estamos prestes a observar em chamas:
“Acredite em mim, esse cara aí nem é perfeito e não está nem um pouco próximo de atingir raio de pureza alguma”.
Em seguida, permanece travado nesse sorriso taciturno, deixando que se espalhe no ar o desprezo manifestado em seu comentário. Escarra profundamente e cospe no chão. Pergunto a Fontaine e Babczynski que tipo de serviço foi solicitado pelo tal produtor. Eles mencionam que, apesar dos gostos extravagantes pelo qual o cliente é conhecido, não foi especificado no contrato nenhum tipo específico de incineração, apenas que a propriedade fosse incendiada. Preparam, por isso, um incêndio padrão, que levará algo em torno de quarenta e cinco minutos para consumir o imóvel. A ação será registrada em vídeo, eles me explicam, e enviada ao cliente, que nesse momento se encontra no deserto africano, rodando um filme de ficção científica. Os foguistas terminam de instalar os mecanismos concebidos por Webster e é nesse momento que percebo, atrás da janela maior, o reflexo da coleção de arte do proprietário, que até então me passara despercebida. Há um quadro de Pablo Picasso, outro de Modigliani, uma inconfundível composição de Piet Mondrian.
Fontaine pergunta se quero dar início à sequência de implosões e o apático Babczynski me estende o dispositivo de acionamento. Burns me oferece um olhar encorajador, depois acende outro cigarro. Eu penso em Lana Del Rey, fumando diante das chamas na capa de seu novo single. Em algum lugar da Califórnia, Miley Cyrus sorri ao olhar para o céu, enquanto Kim Kardashian West se refestela nas brasas. Em Brisbane, Mark Langford coça a cabeça calva ao imaginar uma nova civilização nascida do fogo. Enquanto sobem as cinzas, Prometeu e Paracelso dão as mãos e se juntam numa ciranda embalada pelo crepitar percussivo da mansão de Sunset Boulevard. Refletida nos olhos azuis de Paul Newman, emana da Califórnia e se espalha pelo mundo inteiro, uma enorme esfera de fogo, transmutando-se em ouro, cada vez mais pura, cada vez mais perfeita.