Estela segura um copo com vodca. É o terceiro que ela bebe. O estúdio onde mora recende a cigarro e a maconha. O espaço é pequeno e charmoso e tem apenas três portas: a da entrada, a da varanda e a do banheiro. Um conceito moderno, surgido nas últimas décadas, que serve para justificar a redução dos espaços na cidade e o lucro das construtoras, que confinam as pessoas em trinta metros quadrados, pagando por cem, sendo que os outros setenta correspondem à área coletiva que nunca é usada: piscina, sala de ginástica, espaço gourmet e outras bobagens. Mesmo com a porta da varanda aberta, o cheiro não sai. A trilha sonora da noite tem Prince e John Lee Hooker, os melhores para o atual estado de ânimo de Estela. Ela ouve o barulho do elevador parando no seu andar, corre até a porta quase tropeçando na mala. A esperança de que ele volte ainda ocupa seus pensamentos.
— Merda! Estou esperando o quê? Ele não te faz bem, Estela, pensa nisso! — grita para si mesma.
Isso é o que o racional lhe diz, porque entre a razão e a emoção há um abismo, ela sabe disso. O coração pede mais, a razão diz basta. Durante todos esses anos esteve com homens que a traíam e a magoavam. Repetia padrões e mantinha crenças que a machucavam. Às vezes, seu instinto de preservação funcionava, e no último momento era poupada de sofrimentos maiores. Estela coloca mais uma dose de vodca no copo e liga a televisão. A cena de um casal apaixonado se beijando numa praça sob uma nevasca provoca aperto em seu peito. Desliga o aparelho e joga o copo contra a porta de vidro que separa a sala da varanda.
— Nãoooo!
Estela quer um amor inteiro, mas dele só conhece pedaços. Alimenta-se de promessas e ilusões que vão se tornando veneno e a afastam da própria alma. Abre uma pasta do computador chamada Canela com Pimenta, onde registra cartas.doc, que nunca são enviadas, ali declara sua raiva e frustração. Outros documentos são relatos sobre os relacionamentos. Deixa de lado aqueles melosos, que descrevem os bons momentos da história que durou pouco, e se fixa no final delas. Vai identificando repetições, posturas equivocadas, desprezos que a deixavam à margem, textos que nunca foram ditos, autodefesa que nunca assumiu.
— Chega! Quero ler e reler tudo isso que escrevi. Quero ver e rever e reviver todas as dores que senti. Quero me saturar delas, e depois pode ser que eu perceba como fui ingênua em acreditar neles. Todos, de A a Z, mentirosos, hipócritas. A letra R nem vai entrar nessa pasta.
Outra dose para aumentar a ira. Prince canta Kiss e Estela dança, requebra o quadril, desliza a mão pelo corpo. Irrompe num frenesi maluco, para cima, para baixo, salta, expande o tórax em direção ao teto, descontrola-se, cambaleia e cai no chão da sala. Continua a dança ali mesmo, agora embalada por Love is a losing game. Amy Winehouse canta para ela e Estela faz coro, grita, chora. For you, I was a flame, love is a losing game, five story fire as you came… Levanta-se e sai dançando em direção à varanda. Pendura-se no guarda-corpo do vidro e espalha palavras na noite.
— Pra você eu era um vulcão, lembra seu filho da puta?
Desequilibra-se e cai no chão gelado da varanda, na noite gelada, e ali fica até a música acabar. Apoia a cabeça entre as mãos e tenta se levantar. O mundo gira.
— Não, não vou pular. Ainda não… Ele não merece.
Volta ao computador e abre a pasta N e revê as fotos: a selfie no avião, quando se conheceram, rostos colados, sorrisão na cara; um close dele com aqueles olhos lindos; várias na cama ou em situações divertidas, no apartamento dela… como aquela em que ela aparece pelada, engatinhando, atrás do anel que caiu de seu dedo e rolou para debaixo da escrivaninha; ou ele, de cuecas e com avental de cozinheiro, mexendo uma panela. Poucas fotos deles juntos, fora de casa. Abre a última carta que escreveu e não mandou.
Nelson, seu falso, vejo, de olhos bem abertos, sua cara cínica e mentirosa. Eu te odeio…
Estela aguardava o barco no trapiche, que a levaria à ilha. Viajava com sua amiga e comadre recente, de quem batizou o filho havia poucos dias, numa cerimônia informal, do jeito que acreditavam: água benta para invocar as entidades de luz e preces inventadas pelo coração. Estava ali, rindo com as trapalhadas do bebê, quando pensou ter visto o homem com quem estava namorando. Ela o viu de costas. Os mesmos cabelos loiros, o porte, as costas largas, os braços torneados pela musculação. Reconheceu bem aquele corpo.
— Será ele? — disse para si mesma em voz alta.
Duvidou para não admitir verdades. Aproximou-se um pouco mais e continuou pensando em voz alta.
— E se for o Nelson, o que ele faz abraçado com aquela mulher? Nossa, como ela se aninha no corpo dele, tão íntimos. Devo estar enganada, de costas as pessoas se parecem, coisa de biotipo. Que bobagem! Pensar que pode ser o meu Nelson.
— Estela — chamou a amiga — aonde você vai?
Estela se virou e confidenciou.
— Cara, aquele homem, parece o Nelson.
— Imagina.
— Ia ser muito engraçado, né? A gente, no mesmo trapiche, esperando o barco que nos levará a uma ilha, numa quarta à tarde, de um agosto chuvoso e frio, quando ninguém pensa em ir para a praia, e ele acompanhado, é demais, né?
— Pois é. Desencana. Deve ser um casal qualquer.
Ainda que não quisesse acreditar, Estela começou a andar em direção ao casal, cautelosa, pisando tão leve que nem sentia os próprios passos. Parecia caminhar para o abismo. E se fosse mesmo verdade? E se fosse ele? Nelson e uma mulher que até aquele momento não havia entrado na história. O que faria com essa verdade? Não. Seria melhor viver a ilusão de que tudo estava bem, de que ele era o cara mais bacana que apareceu na sua vida e que desta vez seu caso de amor daria certo e iria se transformar numa história com final feliz.
— Não. O universo não pode ser tão cruel comigo.
— Minha flor — diria um amigo dias depois —, ao contrário, o universo, ou Deus, ou seja lá o que for, só foi bom e generoso, porque lhe mostrou o caráter do cara com quem você saía, a tempo de não se envolver ainda mais com ele.
— Vou conferir — falou para a amiga, que continuou brincando com o filho.
Estela avançou como um gato, cautelosa, desconfiada, lenta.
— Agora é só me virar à frente deles, desfazer o engano e dizer, desculpa, pensei que fossem outras pessoas. Desejarei um bom passeio, sorrirei simpática e aliviada por ter me equivocado.
— E se, no instante em que eu me virar, reconhecer o Nelson? Como farei para voltar atrás e desfazer os oito meses de encontros e crédito nas promessas feitas por ele? Como irei admitir que mais uma vez fui tola ao acreditar nas historinhas que ele contava? Nas desculpas consentidas para não ficar mais tempo comigo? Como vou processar os finais de semana que passei sozinha, enfiada nos cobertores, vivendo uma história imaginária, por que Nelson não podia estar ali para concretizá-la?
Outra vez a esperança falou alto.
— Mas ele é tão presente! Responde aos e-mails, atende o telefone (quase sempre!) e se eu não digo, oi, meu amor, logo em seguida, ele retruca brincando, não reconhece a minha voz? Estava esperando por outro? Ah! Homem quando tem ciúmes é porque se importa com a gente.
Agora não dá para voltar atrás. Estela cruzou a linha de chegada e encontrou o par de olhos azuis que a encantou. Ela conseguia ver o céu inteiro dentro deles. Naquele instante viu o inferno.
— Olhos pouco confiáveis… — diria sua mãe quando viu a foto de Nelson pela primeira vez, apesar de sempre torcer por um bom encontro para a filha. — O que acontece que você não se ajeita com ninguém?
— Sei lá, mãe, são todos uns cafajestes. No início parecem príncipes gentis e atenciosos, logo depois viram sapo dissimulados e mentirosos.
Sim, era ele, Nelson. Agora não havia mais volta.
— Merda!
Estela teve o impulso de gritar, mas não cairia bem. Engoliu o merda, e tudo o que conseguiu dizer foi, oi. Nelson atônito. Jamais imaginou ser pego em flagrante.
— Oi, Nelson — repetiu.
— Ah… oi? — Fez de conta que não a ouviu. — Conhece minha noiva?
— Não, não conheço. Nem sabia que você era noivo.
A noiva disse um oi, com cara enjoada e desconfiada. Estela não conseguiu disfarçar o desapontamento e retornou, sem mesmo se despedir dos dois, repetindo em voz baixa, a noiva, a noiva, a noiva.
— Não acredito, não acredito, que cara ordinário. E você, disse o quê?
— O que eu iria dizer? Fiquei muda. Estou passada. Ele tem uma noiva, Lúcia. Mentiu o tempo todo. E agora, o que eu faço?
— Ignora.
— Como, ignora? Como? Ele está aí, na minha frente, abraçado com uma mulher que não estava na história e eu aqui com cara de trouxa. Sacana!
Do barco soou o apito agudo. Sinal para partir.
— Espero que vá para bem longe, para o inferno.
Estela mal sabia a continuação! O casal começou a andar, sem saber em qual barco deveriam entrar. Via-se que discutiam. O condutor gritou.
— É este barco, moço. Vamos entrando.
Havia dois pontos de desembarque na ilha e o casal iria para o mesmo local que ela, sua amiga e o filho. Elas, Nelson e a noiva, no mesmo barco, na mesma ilha.
— Merda. Vou ter que olhar para a cara desse sujeito por uma hora? Não vou aguentar. Vou lá, quero saber o que se passa e por que inventou essa história para mim.
A cabeça de Estela se transformou num turbilhão de falas desencontradas e cheias de decepções. Quem estava com ele era a outra, a noiva. Ela, outra vez sozinha e traída. Então era isso?
— Ah, mas isso eu não deixo quieto, não.
Levantou-se decidida e sentou-se ao lado dele. A noiva olhou para ela com ar de reprovação e desconfiança.
— Escuta, por que você mentiu para mim? De onde surgiu essa noiva?
— Eu…eu… eu não menti…
Nelson falou com voz baixa, disfarçando o incômodo. A noiva chegou perto deles, mãos na cintura, requebrando o quadril e armando uma cena.
— O que você quer com meu noivo?
Eu não preciso passar por isso. Estela disse para si mesma. Ainda assim, tentou ser educada.
— A conversa é entre nós dois, eu e Nelson.
Mas a noiva não se retraiu.
— Você conhece esta moça?
— De passagem…
— Como “de passagem”, Nelson? Você nega que me conhece? Judas, traidor barato. De passagem! não, isso não vou aguentar.
Disparou em voz alta, para que até os peixes ouvissem sobre os encontros que tiveram. Disse o nome e o sobrenome dele, a data de nascimento, o signo solar, ascendente, Lua e Vênus, mapa astral completo e, se duvidassem, falaria até da sinastria que fez, logo nos primeiros dias que se encontraram, e que mostrava o Sol conjunto na casa onze, o que indicava uma convivência harmoniosa e especialmente favorável para o casamento e outras uniões afetivas, porque, a longo prazo, a amizade torna-se um dos elementos mais importantes para a consolidação da intimidade, e que ela acreditou naquele encontro preparado pelos astros.
— Essa mulher é louca! — e o cara se esquivava, se afastava fazendo sinal com a mão para que ela fosse para onde quisesse, de preferência para bem longe deles.
Estela caminhou até Lúcia e caiu no choro. O afilhado pequeno, que acabara de dar os primeiros passos, mal falava, mas soube dizer para ela, não chora, enquanto enxugava a lágrima que escorria do rosto da sua madrinha.
O barco partiu.
O apartamento está em silêncio. Estela bebe as últimas gotas de vodca no gargalo. Vai à cozinha, abre a geladeira, prepara um sanduíche de queijo e presunto e abre uma lata de coca light. Comer refaz sua energia e sua lucidez. Volta para o computador e abre a pasta com a letra V, que a conecta ao baile de quinze anos e traz uma memória vinda do reino dos mortos e que roubou sua alegria, ainda adolescente. Esta foi a primeira experiência que a fez se perder da própria alma.
Estela estava linda, com vestido verde (a única das debutantes a não usar branco) e cabelos cacheados. No salão de baile, vários casais dançavam animados pela orquestra. Um burburinho de risos e tilintar de copos. O mestre de cerimônia já no palco anunciava o momento esperado: a apresentação das debutantes e a valsa delas com seus pares. Estremeceu. Ela queria dançar com Vitor (o garoto de cabelos longos que a fazia desfalecer toda as vezes que chegava perto e que roubava sua voz e serenidade, quando se dirigia a ela), mas não teve coragem de convidá-lo. O medo da rejeição não lhe permitiu esta ousadia. Uma das amigas deveria ter feito o convite no seu lugar, e agora, na iminência da valsa, seu coração vacilava e suas mãos suavam, porque não tinha certeza se a amiga o convidara mesmo, como o combinado. Todas suas amigas tinham namorado, ou ao menos um candidato, que dançariam com elas. Estela não.
As debutantes deram a volta pelo salão sob os aplausos dos convidados. Estela passou por Vitor e trocaram olhares. Ele sorriu e ela se animou, deve ter sido convidado, sim, pensou. Com este espírito concluiu a apresentação e se colocou junto com as outras garotas, que esperavam seus pares. Estela não tirava os olhos de onde Vitor estava sentado, mas ele não fez menção de se levantar. Ela sentiu o choro invadir seus olhos. Engoliu em seco e enxugou as lágrimas com o dorso das mãos. Quem veio em sua direção foi Ivo, que também tinha cabelos longos e que era a fim dela, mas ela desejava quem não a queria.
Esta lembrança perturba Estela, mesmo tendo se passado onze anos.
— Comecei mal. Aos quinze, eu assumi a maldição da família, uma tradição cruel, em que as mulheres se casam com os homens errados, aqueles que traem, que largam, que maltratam. Mas nenhuma sai do casamento. Nenhuma tem coragem de dizer basta, de mandar o homem embora, ou sair de casa. Sempre há um “mas” na história: mas o que vai dizer a família? Mas e os filhos? O negócio? A sogra?
Ao ler a carta-relato da sua primeira desilusão amorosa, Estela chora, e sente pena de si mesma. Promete que vai se tratar bem: retomar a terapia, fazer ioga, frequentar um terreiro de candomblé, ir à missa todos os domingos, ritual xamânico… Enumera as possibilidades, mas com uma certeza: vai mudar o rumo.
— Merda. Eu sempre digo isso e caio no colo dos mesmos tipos. Desta vez vai ser diferente, Estela, ah, se vai!
O humor dá as caras por uns instantes.
— Nunca dancei uma valsa de amor, mas faço espetáculos de dança nos quais me rasgo por amor.
Seu dedo abre a pasta com a letra L e nela, nada além de um único documento, e nele apenas uma palavra.
Babaca
Estela tinha dezessete anos. Saiu do consultório com os olhos vermelhos. Há algumas semanas sentiu uma pequena ferida na vulva. Foi procurar um ginecologista. Ele lhe deu uma incômoda notícia e sugeriu que avisasse seu parceiro sexual.
— Parceiro sexual, não, doutor, namorado.
— Então, a senhorita avise o seu namorado, porque ele também está com sífilis. Como essa doença é transmitida pelo contato sexual, e como a senhorita afirma que só transou com ele, então foi ele quem lhe transmitiu a doença. E ele contraiu essa infecção de outra pessoa.
Ao sair do consultório, Estela sentiu que perdeu mais uma parte da alma. Sim, porque uma alma vai se dissolvendo aos poucos, não desaparece de uma só vez. Aos pouquinhos vai largando pedaços pelo caminho, a cada decepção amorosa, a cada sacanagem que experiencia. Ligou para Luiz e falou sobre a urgência de se encontrarem.
— Não dá para ser amanhã? Agora estou ocupado.
O descontrole de Estela o convenceu e ele sugeriu um café no meio do caminho.
— Filho da puta, nem pra vir até mim.
Luiz chegou meia hora depois com cara enjoada. Foi meia hora de agonia, ansiedade e raiva de saber que não era a única garota na vida dele. Ao contar sobre a doença e a recomendação médica de que ele deveria se tratar também, viu surgir na face de Luiz um riso irônico e em voz alta o nome das mulheres que deveriam ser avisadas. Voltou para casa descobrindo-se infectada no sexo e no coração. Estela acreditou naquele moço que a cortejou numa noite de cantos e danças. Chegou tão sedutor, desmanchando-se em elogios para os seus olhos verdes, elogiou seu riso cheio de vida, a alegria contagiante ao dançar, sua afinação ao cantar. Conquista fácil. Em poucos minutos, Estela estava caída de amores e aos beijos com Luiz. Depois de alguns encontros, quando começou a acreditar que estava namorando e que seu namorado era amável, confiável e fiel, a sífilis chegou para apagar as ilusões.
Estela empurra a cadeira da mesa do computador e acende outro cigarro.
— Cada coisa que eu atraio!
Nesta noite, Estela conversa com o que resta da sua alma. Sabe que irá perdê-la em doses homeopáticas até se ver, um dia, como uma mulher sem alma, à beira do suicídio. Não que fosse se matar de fato, estilo tiro na cabeça, ou se enforcar nas vigas da casa, ou se jogar do terraço de algum edifício público. Não! Seu suicídio seria mais doloroso, porque lento e permanente. Ela sabe que se mata um pouquinho a cada relação equivocada e alimentada. E a cada vez que se lança numa história imaginária e mentirosa que cria para si, enquanto repete, eles me enganam e me traem. Até esse momento, Estela não se acha responsável pelos constantes fracassos afetivos, nem imagina em que teia está presa. A noite quente, a vodca, a ira e o registro de outra decepção criam uma nova paisagem na sua mente.
— Não é possível. Eu vivo na penumbra. Não consigo distinguir quem pode me dar amor de quem nem mesmo tem amor para dar a si próprio. Acorde, Estela. Vinte e seis anos se repetindo e colecionando casos amorosos frustrantes. E cheguei ao Raul. Mas este vai ser o ponto final, ou não dançarei o próximo espetáculo.
Estela tinha vinte e três anos e estava montando um espetáculo de dança. Boa bailarina, o físico a favoreceu: pequena, magra, cabelos estilo Chanel, ultracurtos e lábios grossos. Era seu primeiro espetáculo solo, uma produção independente. Precisava registrá-lo em vídeo, mas não tinha verba para isso. Decidiu ir a uma produtora que lhe indicaram, de um moçada legal, disseram. Foi recebida por um dos sócios, Raul, e lhe propôs uma parceria. Ele aceitou, encantado com a garota de espírito livre e corpo falante.
— Você fala até com os pés — comentaria ele mais tarde. Marcaram o dia da gravação.
Estela dançou com alma (ou com o que restava dela!), jogou charme para Raul através do olhar da câmera, dialogou com ela, como se estivesse confidenciando segredos ao vivo. Ele correspondeu, sugeriu planos e tocava no seu corpo com o pretexto de indicar uma cena que ficaria “demais” no vídeo. A sedução foi mútua.
— Eu me apaixonei, logo que bati os olhos. Sabe, o cara tem uma conversa animada e é boa pessoa, dá pra sentir — diria mais tarde para a amiga Lúcia.
— Vai devagar, Estela. Atitudes são mais importantes que palavras, lembre-se disso.
Um ligava, o outro respondia. Passaram a se encontrar toda semana, desculpas não faltavam: edição do vídeo, refazer uma cena, conversar sobre o produto final. Inventavam histórias para se verem e transarem.
— Nossa, que delícia, Raul.
— Estela, não vou mais te largar.
— Nem eu.
A relação foi acontecendo sem esforço, sem traições, e Estela se convenceu que tinha encontrado o cara. Em pouco tempo, assumiram publicamente o caso. Raul tinha atitudes, sim, pensava Estela, tantas, que a mantinha a rédeas curtas e se esquivava, toda vez que ela acenava para uma relação mais séria, com casamento à vista, filhos, família.
— Coisa careta! Não combina com seu jeito de ser.
Ela calava e acreditava. Para ser aceita, seguia suas orientações, afinal ele era o máximo, tipo intelectual moderninho, óculos redondos na cara, frequentava programas cult, locais da moda, papo-cabeça e fala mansa. Mais tarde, ela viria a descobrir que ele não era tão brilhante, tampouco tinha uma inteligência privilegiada. Mais repetia o que lia e ouvia do que opinava seguindo critérios pessoais. Meses depois foram morar juntos, contrariando as famílias que queriam vê-los casados de forma tradicional: cartório, véu e grinalda.
— Raul, se é importante para os seus pais e para os meus, o que custa a gente se casar no civil? A gente faz uma cerimônia simples.
— Que bobagem! O que importa é o amor entre nós e não um papel. Isso é importante para eles, não pra nós, não é?
— Não sei…
— Calma, Estelinha, vai por mim, eu sei o que é melhor pra nós.
Estela cedeu e prevaleceu a opinião de Raul. Tempos depois, aconteceu a primeira situação, que acendeu o pisca-alerta. Raul chegou em casa numa sexta à tarde, eufórico. Trazia duas garrafas de vinho, pizza e mais algumas coisinhas. Eles jantaram, riram e se beijaram, até ele apresentar a sobremesa.
— Veja o que eu trouxe para a gente se divertir!
— O que é isso?
— Você vai delirar, a gente vai às nuvens!
— Eu não quero. Você sabe que eu não gosto de nada além de um baseado.
— Bobagem, na boa, você vai adorar, eu sei, isso não faz mal, apenas vai deixar você mais alegrinha.
— Não quero, Raul.
— Vai! Não seja tão careta.
Ele estava excitado. Encharcou um lenço com um spray e o pressionou contra o nariz de Estela, sem que ela pudesse se esquivar. Em segundos, ela amoleceu, tonteou e começou a rir. Raul colocou o comprimido na boca de Estela e a fez engolir. O coração acelerou e ela já não sentia mais o corpo. Naquela noite, o tempo e as coisas passaram a acontecer numa frequência alterada, uma espécie de sonho, no qual ela era dominada pelo marido, que a manipulava como se fosse um fantoche. Estela não conseguia reagir, sentia apenas que ele a penetrava e batia em suas nádegas. Quando voltou a si, já era quase de manhã e estava com o corpo dolorido. Foi tomar um banho e percebeu sangue no ânus. A cabeça latejava e não conseguia ter clareza do que havia acontecido. Ao ver a casa em desordem, o frasco de lança-perfume vazio, comprimidos coloridos e garrafas de vinho e uísque espalhadas pela mesa, deduziu que a farra havia sido grande e sem o seu consentimento. Raul dormia e roncava.
Dias depois, após ter refletido sobre o ocorrido, Estela esperou por Raul. Assim que ele entrou em casa, disparou.
— Precisamos conversar. O que aconteceu na sexta, não foi bom para mim e você passou dos limites.
— Agora não vai dar, Estelinha, vou tomar um banho, ligeirinho, e voltar para a produtora. Tô com muito trabalho atrasado — e, rindo, continuou — Você estava tão gostosa!
— Cretino.
Ele se voltou para Estela e a puxou para si, pelo colar de fios que ela estava usando.
— Cara, menos! Você está me machucando.
— Que é? Vai dizer que não gostou. Vai dar uma de santinha, agora?
— Ei, me solta, não estou te reconhecendo.
Raul largou o colar e a empurrou para o sofá.
— Calma, Estelinha, estou brincando, isso não vai se repetir, eu prometo. Foi só uma experiência, pensa nisso — se abaixou e beijou os lábios da mulher.
O tempo que se seguiu só apresentou o tédio como novidade. Estela passou a viver com um homem ausente e começou a se sentir só. Raul chegava em casa tarde, sempre com a desculpa de que estava com muito trabalho. Mergulhado em seus próprios pensamentos, ficava mais de meia hora lendo literatura erótica no banheiro. Distraía-se zapeando a TV, sem fixar em programa algum, enquanto devorava pacotes de biscoitos. Estava hipnotizado por esta amante dominadora, uma das muitas que apareceriam dali em diante.
— Vou dar uma saída, vou até a produtora.
— Mas você acabou de voltar.
— Estou com trabalho atrasado.
Dava um beijo em Estela e saía. Quando voltava, ela já estava dormindo. No dia seguinte, a mesma rotina. Muitas vezes a presença dele sufocava Estela: o som alto, a televisão ligada, enquanto ela queria estudar. Estela não reclamava para não o incomodar, apenas pedia para que abaixasse o volume, mas não encontrava eco. Justificava as atitudes do marido como estresse do trabalho. Mas quando ele ia para cama antes dela, exigia as coisas do seu jeito.
— Dá pra apagar a luz, Estela? Não consigo dormir com ela acesa.
Estela contentava-se com o abajur na minúscula cozinha. Não havia rota de fuga, a não ser o banheiro e a porta da rua. O tempo foi trazendo um esfriamento na relação e o sexo passou a ficar escasso. Estavam se transformando em perigosos estranhos, num espaço em comum. Um dia, Estela se colocou entre ele e a televisão.
— Raul, o que está acontecendo com a gente? Estamos cada vez mais distantes.
— É verdade! Um marasmo, né? Nosso casamento precisa de pequenas perversões! — respondeu rindo.
— Perversões, é? Acho que você anda trazendo a ficção pra realidade.
— Eu tenho um espírito libertino, meu bem.
— Devia ter me falado isso antes, para eu escolher se queria ficar com um cara de espírito libertino.
— Bobagem, Estelinha, vem cá, vem.
Raul puxou Estela para junto de si e iniciou um ritual de beija, apalpa, amassa. Estela cedeu.
— Acho que a gente devia viver todas as experiências que surgirem. Já imaginou como seria legal se a gente morasse numa casa bem grande, eu, você… a gente podia buscar a Vivi para morar conosco. Posso ser o seu iniciador no amor e no sexo. O que acha?
— Vá pro inferno e leve a Vivi com você.
Estela se livrou dos braços de Raul, pegou a bolsa e saiu. Essa conversa representou o início do fim. As fantasias ocupavam muito espaço e a casa ficou pequena para todas, como Vivi, sua sobrinha de quinze anos.
— E se a gente vivesse uma relação aberta? Se Sartre e Beauvoir viveram uma, no século passado, por que a gente não experimenta isso agora?
— Tá, e depois eu mando a conta do psicanalista para os dois?
Estela desculpava o comportamento de Raul, suas fantasias, mau humor e ausência com argumentos que iam do amor ao tesão.
— Raul está em crise de adolescência, só pode ser isso. Vai amadurecer, eu sei, é só uma fase, e devo estar ao seu lado pra ajudá-lo. Amanhã, depois, ele vai perceber que fantasia deve ficar restrita à cabeça.
Quando ela o questionava, ele a envolvia e Estela se deixava levar pelo calor do momento.
— Ah, vai Estela, cadê seu espírito libertário? Gatinha, você sabe que eu te amo e quero o melhor pra você, não é?
E voltavam a fazer sexo, na mesa, no chão, no banheiro. Estela ia ficando, aceitava as ideias de Raul, que se infiltravam, subliminarmente, na sua mente, convencida de que eram adequadas para a situação. Passou a se vestir como ele: jeans, camiseta e tênis. Nunca mais os vestidos rodados, sandália com salto, regatas e tops. Lia os livros que ele indicava, assistia aos filmes que ele escolhia. Confidências só com Lúcia.
— Puxa, nós somos tão parecidos, esta relação não pode acabar.
Mesmo quando não concordava, aprendeu a dizer sim, com medo de contrariá-lo e perdê-lo. Concordava porque o amava e satisfazê-lo lhe fazia bem. Queria vê-lo feliz, ainda que custasse a própria felicidade. Enquanto isso murchava e se perdia. Um dia resolveu mudar de aparência para ver se mudava a relação.
– Oiiii, gostou do meu novo penteado?
Estela havia feito permanente no cabelo e o deixou encaracolado.
— Nossa! Você está a cara da Telma.
Estela saiu de casa e foi direto para o salão de beleza.
— Corte tudo.
— Pixie cut? — perguntou o cabelereiro.
— Não, máquina zero.
Telma fora uma namoradinha da faculdade. Seu nome já havia surgido nas conversas dos dois e quando Raul começou a voltar tarde, Estela desconfiou.
— Você tem se encontrado com a Telma?
— É… a gente se encontrou, fomos tomar um café.
— E o que mais?
— Nada!
— Vocês transaram?
— Não… imagine, você está louca.
— Raul não minta pra mim. Odeio isso.
— Calma, você está muito nervosa. Olha só, nós somos muito jovens para viver uma relação monogâmica.
— Então admite que transaram?
E tudo acabava em choro, beijos e sexo. Raul a convenceu de que foi apenas um casinho sem consequências e que não ia mais vê-la.
— Sei lá, esse marasmo… considere que foi apenas uma tentativa de reavivar nosso casamento. Que tal?
E, num café com Lúcia, a amiga a alertou:
— Até quando vai acreditar nele?
— Eu amo o Raul.
— E ele te ama?
— Claro que me ama. Ele é honesto, né? Admitiu a transa.
— E tudo bem pra você, ele transar com outras?
— Ele vai mudar, eu sei, é apenas uma fase.
— Primeira tentativa de salvar a relação e primeiro mau-caratismo assumido, né, Estela.
— Lúcia, agora você está sendo cruel.
— Eu?
Estela se envolveu em um novo espetáculo e passou a viajar com ele. O trabalho fez com que esquecesse as questões familiares, e não pensou mais nas fantasias de Raul. Começava a crer que o casamento havia encontrado uma boa rota. Vivia bons momentos, sucesso com o trabalho e boas críticas para o espetáculo, até o dia que resolveu voltar antes do previsto. Não encontrou Raul em casa, deduziu que pudesse estar na produtora e resolveu fazer uma surpresa. Tocou a campainha e estranhou a demora dele em atender. Quando a porta se abriu, encontrou um Raul com expressão de garoto arteiro. Ela conhecia muito bem aquela cara.
— Esteeela, não esperava que você fosse voltar tão cedo.
O batom vermelho limpado com o dorso da mão deixara vestígios no rosto dele.
— Vou pegar as minhas coisas e a gente vai pra casa comemorar sua chegada — Raul colocou os dois braços no batente da porta, como para impedir a passagem.
— Sai da minha frente.
À revelia dele, ela entrou e seguiu o rastro de perfume, até chegar à ilha de edição onde estava a mulher que editava para ele, também de cara borrada e roupas amassadas. Estela não disse uma palavra. Saiu atordoada e, na impossibilidade de arrebentar os dois, arrebentou o carro da garota com uma pedra.
— Lúcia, estou me tornando violenta, estou ruindo. A lucidez me abandona e começo a ter atitudes inesperadas. Sabe que eu liguei para a casa da Telma e falei pra mãe dela, que a filha dela era uma vaca, e que ficava se encontrando com o meu marido? Depois destruí o carro daquela outra. Ele que pague o conserto. Minha nossa, não dá mais, essa relação está acabando comigo.
Raul passou três dias na casa dos pais e voltou de cabeça baixa, feito cachorrinho, com o rabo entre as pernas. Não era mais o cínico arrogante que reivindicava liberdade sexual, mas um cara arrependido e choroso, que prometeu que isso nunca mais iria acontecer. Estela acreditou. Por seis meses a relação ficou na normalidade, cada um envolvido nas suas coisas. O final de ano chegou e Estela foi passar o Natal com a família. Foi só, porque Raul disse que queria ficar sozinho para se encontrar, nas palavras dele e, quando ela voltou, cheia de planos para celebrar a virada de ano, encontrou apenas um bilhete de Raul.
Fui atrás da minha fantasia. Fui encontrar a Vivi.
Vivi morava a mil quilômetros da cidade deles. Estela em estado de choque. Boca aberta, um braço largado ao longo do corpo, o outro na altura dos olhos, com a mão rígida segurando o bilhete. O olhar petrificado fixava o bilhete, a voz repetiu mecanicamente, fui atrás da minha fantasia, fui encontrar a Vivi, fui encontrar a Vivi, fui encontrar a Vivi…
Estela ligou para a cunhada, que a atendeu surpresa.
— Raul está chegando para encontrar a Vivi, ou já está aí, não sei…
— Tá aqui, sim!
— E você o deixou entrar?
— E o que você queria que eu fizesse?
— Como assim? O que eu queria que fizesse? Mande-o pro inferno, feche a porta na cara dele… Ele foi atrás da Vivi, entendeu?
— Ah, mas isso eu não posso fazer.
Estela desliga o telefone sem dizer uma palavra. Vai à cozinha e pega a garrafa de vodca. Enche um copo. Liga o som. Abre o computador na pasta-mestre Canela com Pimenta e revive cada história.
— A letra R nem vai entrar nesta pasta. Ela será deletada, como todas as memórias do meu coração. Talvez, ainda dê tempo de recuperar a minha alma. Tadinha, estraçalhada. Isso foi demais! Não dá, não dá mais, Estela, ou é isso ou o suicídio, de fato… você quer isso? Não quer, certo? Minha raiva vai me ajudar. Vamos lá, garota. Você ainda tem muitos anos pra viver.
Estela bebe, dança, chora, grita, revive as memórias até este momento, quando decide que já é hora. Vai até a área de serviço, abre a caixa de ferramentas e pega um martelo. Para em frente à coleção de carrinhos de controle remoto de Raul e quebra todos, um por um. Aproxima-se da parede, olha para os quadros, rompe os vidros, rasga as gravuras. Liga o som outra vez, abre uma garrafa de cerveja e bebe num gole só. Pega a câmera fotográfica do Raul e a atira pela janela. Uma queda de quinze andares será o suficiente para destruí-la. No apartamento ficam apenas os vestígios: a tampa e as lentes, destruídas. Pega uma bacia de alumínio e leva ao banheiro. Na estante escolhe os livros que ele mais lê: Trópico de Câncer, Delta de Vênus, A Casa dos Budas Ditosos e outros. Arranca as capas que ficam espalhadas pela sala, o miolo vai para a bacia. Os vinis são quebrados, um a um. A vitrola antiga, também, torna-se impossível de recuperar. Peças de arte, que ele dizia, veja, Estelinha, não é uma beleza?, viram caco. Rasga o sofá de couro, o preferido dele. Escolhe as roupas de que ele mais gosta, joga na bacia. Pega as fotos que estão juntos e joga na bacia. Liga a impressora e imprime todo o conteúdo da pasta-mestre Canela com Pimenta, e depois a deleta. Mais uma cerveja.
Estela está muda, nenhuma lágrima, nenhuma indecisão. Vai ao banheiro com os impressos e junta-os aos miolos dos livros e às roupas. Joga álcool em tudo e risca o fósforo. Rapidamente as lembranças viram cinzas. Enquanto anda pela casa, olha a destruição. Acha pouco. Rasga o colchão e joga em cima dele a sua foto nua. A foto que Raul fez há três anos. Vai ao banheiro e urina sobre as cinzas e os vestígios do que foi queimado. Lava o rosto. Olha para a sua mala, ainda como veio da viagem. Escolhe mais algumas roupas no armário e enfia numa sacola, junto com o computador e outros objetos. Sai. Tranca a porta e joga a chave na lixeira.
NOTA
O conto Dança integra Fragilidades, primeiro livro de Cléo Busatto voltado ao público adulto, a ser lançado em breve pela CLB Editora.