Tradução: Adriana Lisboa
A Peter Ingwersen, por Århus
Há tempos imemoriais, sua estirpe vem atravessando incólume perseguições e conspirações. Por que, então, tanto desassossego? Um erro terem se acreditado invulneráveis? A demora de seu companheiro a inquieta. E seu filho, estará a salvo no refúgio?
Talvez tenham se obstinado por demais em ignorar os sinais de outro ataque iminente. Mas não pode seguir ignorando-os agora que o retumbar da terra lhe anuncia o perigo cada vez mais próximo; agora que distingue com detalhe as escamas encouraçadas do adversário e entende de quem é o sangue gotejando na haste pontiaguda que também vai entrar por sua garganta e atravessar-lhe o coração.
Com a fugacidade de um relâmpago, em seu último alento alcança a se condoer da sorte que espera seu filho, tão pequeno e desvalido, sozinho.
Um artista anônimo pintou essa cena em 1497 numa nave da catedral de Århus, em Jutland. Para desencorajar devoções irresponsáveis, uma vez foi coberta por uma mão de pintura branca. Hoje, devidamente restaurada, nela se pode ver o guerreiro vencedor que, sem um único arranhão que humilhe sua armadura, pisoteia a dragonesa agonizante, enquanto no ângulo inferior esquerdo do afresco o dragãozinho se desespera numa caverna.
Caso sigam a interpretação oficial, os visitantes verão nele um símbolo do Maligno, sempre capaz de se ocultar, regenerar seu poder e regressar para novos delitos. Mas poderiam atrever-se a mirar com seus próprios olhos, a ver simplesmente o que estão vendo: a dor de uma inocente criatura órfã destinada à solidão.