D de descoberta

Um conto de Sonia Coutinho
Sonia Coutinho: escrita corajosa.
01/02/2003

Eu, o escritor. Preparado para começar minha história.

Antes de mais nada, inventando a mim mesmo. Serei um fotógrafo. Sempre tive vontade de viver de fotografia.

Estou num clube em Teresópolis. Montanhas por toda parte, em torno. O ar fino e fresco, de um azul intenso, envolvendo tudo. (Extraio este clube do mais fundo da minha memória.)

Não muito longe de mim, ao lado da piscina, estão uma mulher e um homem. Ela, bonita, mas com uma expressão triste e preocupada, uns 34 anos. Ele, moreno, com uns 50, talvez.

Eu já conhecia essa mulher. Identifico seu permanente ar perplexo, algo ingênuo. Tenho a impressão de que foi minha vizinha, em algum lugar, talvez em Botafogo.

Mas ela não dá o menor sinal de me reconhecer. Talvez por estar tão absorta em seus pensamentos.

Claro, naquele período em Botafogo tivemos um pequeno namoro platônico.

Engraçado, naquele tempo eu a achava aristocrática, agora distingo nela um leve toque suburbano próspero.

Deve vir do homem com quem está — e que invento como seu marido. Digamos, um homem excessivamente sério, formal, que gosta de usar terno e gravata. Com certeza, um advogado.

Sim, daquele tipo com escritório no Centro.

Decido chamar a mulher de Clara. Embora admita que há algo irônico nesse nome. Clareza, ela nunca teve.

É uma mulher obscura.

A obscuridade de Clara vem da sexualidade dela.

Num dado momento, perdeu-se, de alguma forma, de sua sexualidade. (Um trauma infantil? Que trauma?)

Quanto namorou pela primeira vez, na adolescência, teve uma imensa decepção. Não sentia nada quando os namorados a beijavam.

Disse a seus pais que tinha a impressão de que uma peça do seu mecanismo interior estava fora do lugar.

Foi aí que começou com uma série de psicanalistas.

Se não se conhece, sexualmente, uma coisa está sendo obrigada a reconhecer — não suporta mais fazer sexo com esse marido.

Que jamais se chamaria de algo básico, como João.

No que há de suburbano nesse homem, vejo um toque de perversidade. Como num personagem de Nelson Rodrigues.

Não aprofundarei isso. Vou ficar por aqui mesmo. Mas pelo menos o batizarei de Nelson, decido.

A tristeza de Clara, num dia tão lindo, num clube que ama, vem do fato de estar descobrindo que, apesar da vida agradável que Nelson lhe proporciona, vai separar-se dele.

Até bofetada já levou, num dia em que se recusou a transar.

Nelson acha que ela está ali, com ou sem vontade, para lhe prestar esse serviço.

E Clara sente que não suportará fazer o papel até o fim.

Até aqui, a análise pelo menos já a fez compreender que se sente, a respeito de sexo, de forma diferente das pessoas em geral. Que sexo, para ela, não é o que devia ser.

Mas como? É o que falta descobrir.

Alguns elementos do mistério já estão mais ou menos devassados. Por exemplo, percebe que a vontade de fazer sexo não lhe vem nunca de forma espontânea.

Um gesto de carinho não se transforma em sensualidade, como vê acontecer com algumas amigas.

Tem de pensar em alguma outra coisa. Às vezes, em mulheres, é verdade. Ou ver fotos, vídeos em que apareçam homens e mulheres transando. Barra pesada, que lhe causa nojo e não combina com sua personalidade. Mas é a única maneira de se excitar.

Preferia passar sem isso, acomodar-se numa vida cômoda.

Mas Nelson vem com suas exigências.

E agora lembra, com profunda amargura, como ele era gentil e carinhoso, no início.

Volto ao que invento ver. Clara e Nelson em roupa de banho, sentados ao lado da piscina em cadeiras de madeira pintada de branco, olhando as montanhas em torno. E pressentindo o fim.

Como tudo é complicado para ela, pensa Clara. Tem de forçar sua natureza, de alguma forma, para transar com Nelson. Às vezes, ele a lambe até que goze, mas ela não gosta disso, fica ressentida por ser obrigada a gozar assim.

Agora, sem que eles notem, ergo minha câmara, focalizo os dois. Utilizo minha lente zoom. Com um leve zumbido, o casal distante se aproxima do meu olho.

Percebo os detalhes dos rostos. Nelson, cabelos lisos puxados para trás, parecendo engomados; lábios finos, talvez cruéis.

Clara, pele muito branca, traços regulares. A expressão do seu rosto, vista de tão perto, é introspectiva e insatisfeita.

Um dia azul da serra, transparente, naquela hora em que o sol esquenta e se pode tomar um banho de piscina, mesmo com a água gelada. Depois, fica-se sentado ao sol, com uma profunda sensação de estímulo e vitalidade pelo corpo inteiro. Algo que uma pessoa poderia chamar de felicidade.

Mas Clara está muito infeliz. Olhando para o rosto de Nelson, avalia o descontentamento dele.

A noite da véspera, negara-se outra vez.

E, como quem suborna uma criança, Nelson a leva para os lugares de que ela mais gosta, como este clube, mas sexo vem como uma cobrança. Se não o atender, pode ter certeza de que ele lhe estragará o fim de semana, de uma forma ou de outra.

É o que faz neste momento, com seu silêncio emburrado ou respostas irritadas.

Numa brincadeira minha, particular, eu os invento agora inteiramente imóveis, como se atendessem ao meu pedido de uma pose. E, junto com eles, tudo se imobiliza.

É como se o tempo tivesse parado.

Lanço uma rápida olhada em torno. O rapaz que pulou do trampolim fica detido em pleno ar, antes de chegar à água da piscina.

E, na mesa vizinha, há uma moça com um imenso sanduíche interminavelmente enfiado na boca, um segundo antes da dentada.

Bato a foto, volta o movimento.

Observo mais uma vez, encantado, as encostas verdes que um dia foram tão familiares para mim (tive um apartamento aqui, há alguns anos), com suas pequenas flores amarelas.

Clara lembra o início de seu relacionamento com Nelson.

O caso foi estimulado pelo contentamento de sua mãe, viúva com uma pensão insignificante, diante do pretendente rico.

Naquele momento, era praticamente Clara quem sustentava a casa, com seu emprego numa firma de advocacia.

Então, embora não sentisse a mínima atração por Neslon, preferiu acreditar que tudo se resolveria quando estivessem juntos.

Enquanto isso, com o psicanalista da ocasião, ela sondava o que poderia haver por trás de sua estranha frigidez, intercalada por furiosos ardores solitários.

Foi nessa fase que, certa noite, num pesadelo, teve uma visão. Ela ainda era menina, brincava sozinha no recanto de um parque… Aproximava-se um estranho e apalpava suas partes íntimas… Ela gozava e, depois, vomitava.

Verdade, ou apenas um pesadelo mesmo? O psicanalista não sabia. Eu também não sei. Estou com preguiça de criar isso.

E aqui, antes de contar o Acontecimento ao Lado da Piscina, que ocorrerá dentro de alguns instantes, invento mais alguns detalhes sobre como a história de Clara e Nelson começou.

Os dois trabalhavam na mesma firma. Ela, simples secretária, ele, ligado aos escalões superiores.

Conheceram-se num elevador que ficou parado no escuro, entre dois andares. A situação mais íntima do mundo.

Tendo voltado a luz, pareceu a coisa mais natural do mundo que ele a convidasse para jantar naquela mesma noite e ela aceitasse.

E, afinal, Clara se viu diante de um homem que estava disposto a ouvir o que ela tinha para dizer, embora também não deixasse de espiar as suas pernas. (São lindas, interponho eu.)

E ela falou sobre coisas “elevadas.” Tudo o que guardava dentro de si e em que ainda acreditava. Questões existenciais, dúvidas metafísicas. Nelson ficou impressionado.

Era a sofisticação que faltava em sua vida de homem abastado, mas de origem humilde e nascido no interior de Pernambuco.

Poucos dias depois, levou-a para conhecer seu apartamento. Morava sozinho havia dois anos, separara-se de sua primeira mulher. Não tinha filhos.

Tudo muito conveniente. Clara adorou o apartamento. Era na Lagoa, com uma vista linda. Havia plantas, água e montanha.

No dia em que transaram pela primeira vez, pouco antes de ir para a cama ele fez o convite: por que não moravam juntos?

Se desse certo, casariam, mais adiante.

A transa foi péssima, como sempre, mas a perspectiva da união interessou Clara. Ela fingiu prazer.

Estava cansada de morar com a mãe viúva, naquele apartamento apertado, de viver com dinheiro curto.

Então, aceitou morar com Nelson. E ele cumpriu a promessa. Apenas alguns meses depois, casaram-se de papel passado.

Naquele tempo, Nelson mostrava-se gentil, eram um casal cheio de ternura. Todo fim de tarde ela se postava à janela do apartamento, esperando vê-lo aparecer lá embaixo. Quando Nelson se atrasava, ficava preocupada.

Ela achava a relação dos dois uma coisa sólida, que lhe dava uma segurança como nunca sentira.

Mas aí foram surgindo as manifestações do aborrecimento de Nelson com a “indiferença sexual” que ela já não conseguia mais esconder. E que culminaram na bofetada.

Vou justificar, afinal, o título da minha história. D para descoberta. Chegou a hora de Clara matar a charada de sua vida.

Eu, do meu posto de observação, vejo tudo.

Junto à piscina, pouco adiante, duas meninas com trajes de ginástica, malhas muito justas, fazem movimentos de dança, lentamente. De repente, num gesto imprevisível, aproximam bruscamente os sexos, num gesto quase obsceno, pelve contra pelve.

E há a reação imediata em Clara, que as espiava. Uma excitação tão funda e incontrolável que a leva em segundos a um orgasmo, apenas com a ajuda de um leve aperto das coxas.

Deus do céu! Está estarrecida.

A segunda reação de Clara — continuo observando/inventando — é tentar disfarçar o que se passou com ela. Olha rapidamente em torno, assustada. Será que alguém notou?

Percebe que uma mulher, próxima das meninas, talvez uma professora de ginástica, viu o que elas fizeram e agora as repreende.

Será imaginação sua, ou a mulher lhe lança também um olhar de censura? Já Nelson, felizmente nada viu.

Acabou de dizer alguma coisa, agora, mas Clara não chegou a ouvir. Balbucia uma resposta qualquer, neutra.

Está ainda pasma, com a sensação que teve. Com Nelson, jamais sentiu algo parecido.

Foi uma coisa tão profunda que a deixou, apesar do embaraço, relaxada, leve. E, não tem dúvidas: é uma coisa, anh, definitiva, dessas que não têm retorno.

Adianto que talvez Clara vá pensar nesse episódio esta noite e nas seguintes. Todas as vezes em que lembrar daquele gesto brusco das duas meninas, e usar suas mãos, atingirá um orgasmo.

A etapa seguinte, cogito eu, talvez seja ela começar a olhar atentamente para meninas de biquíni na praia, ou com shorts bem curtinhos, mostrando o início das nádegas.

Quem sabe, começará a comprar revistas pornográficas masculinas, para espiar as moças de pernas abertas, sexo à mostra.

Será que terá um caso com outra mulher?

Ou talvez o episódio seja simplesmente absorvido, esquecido.

Talvez ela continue a viver como sempre viveu.

Não sei, não decidi ainda. E talvez não decida nunca, deixe as coisas por aqui mesmo.

Sim, vou limitar-me a contar os pensamentos de Clara, neste momento. Ela imagina, assustada: “Então, minha preferência sexual é outra? É essa que descobri agora?”

As duas meninas continuam na piscina.

Clara torna a olhar para a professora de ginástica e percebe que a outra observa seu rosto, que deve ter revelado muito.

O importante, neste momento, conclui, num súbito pânico, é sair logo dali.

— Vamos almoçar? — pergunta a Nelson, com uma voz um pouco trêmula. — Estou com muita fome.

Os dois caminham agora em direção ao restaurante do clube. Pegam seus pratos e talheres e seguem para a mesa do bufê.

Clara se sente tão esquisita, é outra mulher e, ao mesmo tempo, a mesma. Deitar com as duas meninas. Como seria bom.

Mas o que importa, agora, é esquecer isso, mesmo que apenas temporariamente. E almoçar. E falar de outras coisas.

Então, aproxima-se rapidamente da mesa comprida e vai enchendo seu prato de salada, com fingida animação.

Saio do computador.

Vou até a varandinha do meu apartamento, observo minha nesga de Lagoa. E fico pensando se o dinheiro que ainda tenho investido daria para comprar uma máquina fotográfica boa que desejo tanto, com toda a parafernália de equipamentos.

Sonia Coutinho

Autora de Os venenos de Lucrécia e O último verão de Copacabana, entre outros.

Rascunho