Poema de Cristiano Moreira

Leia trechos do poema "Performance para papagaios"
Ilustração: Raquel Matsushita
30/04/2020

Performance para papagaios
(excertos)

primeiro a rabiola esticada
na cerca de sarrafos
bem ali
sobre a mesa larga
urucum malva açafrão
compõem palheta de cores
para o corpo de baile

qualquer seda
assediada pelo vento
shhshshhshsh
deseja o voo
imita árvore, suas folhas de peixe
imita peixes
longe das superfícies

o prisma quebra
os ossos da cor metal
do chumbo quente
que atravessa os corpos
entre as linhas férreas
emaranha os papagaios
na marcação planejada
dos atentados

ao menos no ar
um cortejo de pipas
mistura gestos coloridos
para abrandar
a virulência na cidade.

*

num salto as sedas tomam forma
coladas na geometria vegetal
no alto ripas de bambu ensinam
balanço e flexibilidade
diante da foice afoita
a respiração do planeta

importa ensaiar o desvio
provocar o erro

nas pontas dos fios
coreografias que se afiam
contra o cerol macerado
nas mãos gordas do estado

debicar a pipa e liberar o carretel
driblar nuvem no vento e o corte
vibra a leveza, o engenho do pulso
que faz subir na linha uma catedral
no sorriso dos meninos
mergulho às avessas em alta apneia

*

uma ruma de gente na rua
caminha presa à sua
fome
ciranda na boca do estômago
ao lado do cão que gane

dentes de leão
ensinam a dispersão

o vento leva para o azul
um poema
como
um lais falando de pássaros
fitas de frevo em tarde serena

*

títeres com pés no chão
mantêm o coração
no cordel
agora é a vez das raias
cardume sem corrente
contra um mar invertido
o dia mostra o dorso
dobra o curso da tarde
papagaios parecem estrelas
e no terreiro rabos de arraia
faíscam nas pernas ligeiras
das morenas

sobre a laje
parecem faroleiros
espécie de sendero
que debica na guerrilha
um tipo de esquadrilha
que torce os corpos
enquanto a brisa e titereiros
com os olhares absortos
não entregam assim os pontos

ainda há fio e rabiola
enquanto a música na vitrola
diz que chega o fim da tarde
olhos na vigília ardem
para evitar o fim da linha

*

objetos voadores
rolam na orla
corcéis cravam trote lento
crinas douradas
quase tocam
a moleira da moçada
aplicam sobre a pipa
uma placa cintilante
cingem no indicador
a linha sem a navalha

lido o poema na pipa
feita em papel vegetal
enleia a língua na lata
rubra tinta sobre o sal

*

no fim da linha
o papagaio empina
o corpo
na outra extrema
ele quase gravita

placas de chumbo
nas solas dos sapatos
evitam o choque
durante o levante
sirene ao longe
apita
na rua ao lado levita
um velho conhecido
elefante

*

mesmo a esmo nas ruas
a pipa puxa o queixo pro céu

*

o sol curva o arco e desce
o carretel está no fim, a noite

*

ante as estrelas paira o papagaio
os dedos em riste sangram

*

os papagaios desaparecem no escuro
as mãos bailarinas restam exaustas

*

os papagaios
ideogramas legíveis no longe
suspensos
cardume cromático em falsa deriva
constelam o céu sobre o golpe

*

rompe-se o fio enrolado na lata
o apogeu do papagaio
meteorito sem peso
no chão chia a areia
sob os pés da molecada
caçadores dos astronautas
de papel de seda cortada

Cristiano Moreira

É poeta, professor e tipógrafo. Nascido em Itajaí (SC), em 1973, criado em Navegantes (SC). Estreou na poesia com Rebojo (2005). Dente de cachorro (2018) é seu livro de poesia mais recente. Editor da Papaterra Edições e Produções Culturais, dirige uma hospedaria com uma biblioteca rural e a Oficina Tipográfica Papel do Mato.

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