Desde o acidente já não lembro em linha reta. Todo texto é um exercício. Procuro avançar por partes. Há o capítulo da despedida, no aeroporto, que é claro e infalível. Depois, não me lembro bem de quantas horas de sono até o telefonema. O capítulo do telefonema é especialmente obscuro. Não sei quem ligou. Mas, curiosamente, me lembro bem da frase: “O senhor está só ou acompanhado?”. Por quê? “Houve um acidente.” A partir desse momento, já não sei o que vi. Foram muitas imagens, de tempos misturados. Vinham quando eu menos esperava, como convulsões. Às vezes, eram só fagulhas de uma cena que não se completava: um olhar, um gesto, o que tinha sobrado. Há o capítulo do enterro, por assim dizer, pois de enterro não teve praticamente nada: uma cerimônia coletiva em homenagem aos mortos, porque do avião não sobrou nem vestígio. Ela já não está aqui. Mas foi difícil me acostumar com a idéia — e não apenas por não ter visto nenhum corpo. Passados três meses, eu continuava a receber as faturas do cartão de crédito da nossa conta conjunta, com as mesmas compras que ela costumava fazer, os mesmos cosméticos, as roupas das suas lojas preferidas, a mensalidade da academia de ginástica e das aulas de ioga, almoços em restaurantes que ela costumava freqüentar com as amigas quando eu estava no escritório, como se ela continuasse viva. É lógico que no início tentei me convencer de que eram contas atrasadas, de quando ela ainda estava viva, mas as faturas continuavam a chegar e as datas das despesas eram sempre posteriores à sua morte. Tudo pago a crédito, muitas vezes por telefone ou on-line. Qualquer um teria suspeitado de um golpe, se as compras não fossem as mesmas que ela fazia e se não acabassem sendo entregues aqui em casa. Não desejo a ninguém a dor de um luto interrompido pelo mistério. O meu durou meses, como se ela ainda estivesse viva em algum lugar, fazendo compras, até o dia em que um amigo me pegou saindo de uma loja, carregado de pacotes de vestidos (eu vinha apenas retirar o que fora comprado por telefone, pois essa loja não fazia entrega em domicílio) e me disse, sorridente, que folgava em saber que eu afinal arrumara uma namorada, que dava gosto ver o meu entusiasmo, haja vista a quantidade de presentes, eu devia estar feliz. Me disse que já estava mesmo na hora de eu seguir em frente com a minha vida. E, a partir desse dia, nunca mais recebi nenhuma despesa no cartão de crédito dela.