Sua visão estava dobrada, borrada. Tentava, mas não conseguia falar. O silêncio ao seu redor era abafado, surdo. Procurava, em sua mente, lembrar das últimas horas, mas só conseguia ouvir o som da arquibancada, os aplausos entusiasmados com os pulos do Cem Kilo, a voz do velho trovador berrando. Subitamente, os aplausos se transformam em sussurros, em gritos agudos e correria. Lembra de um vulto branco e depois de uma total escuridão.
A cabeça ainda dói quando percebe que não está sozinho no quarto. Um homem vestido com botas de couro, calça jeans, com uma camisa quadriculada azul e branca e um chapéu preto com detalhes em dourado está sentado de costas para a janela, no sofá bege da enfermaria. Não conseguia ver seu rosto pois a forte luz que entrava pela persiana deixava somente a silhueta do homem à sua frente visível.
Vendo a curiosidade no seu rosto, o estranho homem apenas sorriu e, brincando com um chaveiro de ouro, em forma de chifre, na mão esquerda, inclinou-se um pouco no sofá.
— Está melhor? — A voz do sujeito era calma e suave. Não tente falar ainda, a anestesia é um pouco forte, mas logo você estará melhor. Por enquanto, enquanto você se recupera, podemos falar um pouco de negócios?
A cabeça latejava, mas com menos intensidade. Tentava reconhecer o estranho homem magro sentado no sofá. Novamente, a lembrança mais intensa era a do vulto branco vindo furiosamente em sua direção. O ar começava a ficar quente à medida que aquela enorme sombra branca corria, derrubando e destruindo tudo em seu caminho até ele.
O homem de chapéu apenas observava seu arfar, como que deliciado com a falta de ar do paciente.
— Negócios, negócios, negócios. A melhor coisa que um homem pode ter: negócios. Principalmente aqueles que trazem prazer, mulheres e muito dinheiro. Negócios como aqueles que você tem, não? Acho que você não lembra mais como os seus negócios deram tão certo. Apresentado por alguém, amigo de outro amigo, a bola vai crescendo, a máquina vai gerando dinheiro e mais dinheiro. Lembra daqueles rodeios improvisados, feitos nas fazendas do interior? Sem luzes ou holofotes, apenas um punhado de caipiras rodeando um cavalo, uns trocados em cima de um barril de cachaça, umas risadas. Lembra de como saiu de lá, com um punhado de notas gastas e mil idéias na cabeça? Foi o destino que fez você encontrar aqueles jovens fazendeiros, ansiosos por alguma novidade na vida sem graça da região. Todos herdaram terras, gado e outras coisas sem esforço, sem precisar trabalhar para reconhecer o quanto é duro obter terras, carros e cavalos. E eles apostavam. E como apostavam. Apostavam na sua idéia. Sem perceber, você já tinha metade das terras e uma grande quantidade de carros. Animais das melhores raças. Tudo graças ao brilhantismo das conversas e das idéias que pulavam na sua mente, querendo sair. Os fazendeiros conheciam outros fazendeiros que conheciam advogados que conheciam prefeitos que conheciam… Entre um aperto de mão e outro, a máquina inchava e mais dinheiro entrava.
O homem de chapéu suspirou por um momento, levantou-se do sofá, percorreu o quanto com o olhar. Quando achou a garrafa de água, dirigiu-se a ela e se serviu como se tivesse se servido de uísque. Retornou ao sofá, cruzou as pernas e continuou a falar, indiferente aos grunhidos do paciente na cama.
— Mas, para melhorar os trocados, é claro que temos que fazer algumas coisas diferentes, às vezes. Como o cavalo do Sr. Ivan, aquele caipira milionário que se vestia como se morasse num chiqueiro com os porcos, de calça jeans enlameada e suja e camisa rasgada. Você não suportava o cheiro daquele homem. Aquele cavalo esperneava muito bem, poucos foram os que conseguiram montá-lo. Aquele cavalo, com certeza, deixaria o jogo muito interessante, se ele fosse seu, claro. Como não era, e a parte dos lucros maior seria para o dono do animal, o coitado sofreu um “acidente” que lhe quebrou a perna. Sr. Ivan, apesar de não sacrificar o bicho, nunca mais teve a ótima parte do bolo.
Sorriu. Olhou para o paciente na cama do hospital, com o tubo de soro no braço esquerdo. Amassou o copo de plástico e o jogou no lixo.
— O boi da velha Krodva também. Desde bezerro, a polaca mandara seus empregados bater nele com paus ou laçar seu pescoço e carregá-lo de uma ponta a outra com a corda sufocando o pescoço, tudo para aumentar sua fúria. No auge da noite, ele era a estrela. Era tão brabo que quebrou a perna de dois peões de rodeio numa noite, sem falar nos palhaços feridos pelos seus coices e pulos. Lembra de como ele acabou? Naquela noite você resolveu dobrar as apostas e não queria que nada prejudicasse o bom andamento das coisas. Você mandou amarrar a virilha do animal com uma corda que continha pequeninos cacos de vidros colados, para que o bicho ficasse com tanta dor que espernearia feito o diabo diante da cruz. Um bom plano, se o peão que fosse amarrar a corda não gostasse de apertar o nó. Ao abrir a porteira, o bicho já estava com tanta dor que saltou quase meio metro. Quanto mais esperneava, mais a corda rasgava-lhe a carne. O caipira apertou tanto que a corda rasgou, de tantos pulos e coices, a virilha do pobre animal. Enquanto esperneava e urrava de dor, jogava sangue por toda a porteira, banhando palhaços e o assustado cowboy que o montava.
Ele se lembrava disso. Dos urros agonizantes do velho boi e de como ele se curvou e morreu, sob o olhar arregalado de todos que estavam lá naquela noite. A polaca Krodva estava em choque. Os palhaços vomitavam e desviavam os olhos para longe do animal. O acontecido foi abafado, mas custou muito caro calar os repórteres e a mídia.
— Conheço você? — perguntou, com uma voz rouca e débil. O vulto branco continuava na sua mente, jogando ar quente no seu rosto, correndo em sua direção.
Sem dar atenção à pergunta, o homem de chapéu novamente pega a garrafa de água, se serve calmamente e retorna ao sofá. Sentado, cruzou as pernas e terminando seu copo de água continuou.
— Mas agora tudo mudou — disse, com tom alegre. — Agora, graças ao velho Cem Kilo, as coisas mudaram, não? Os animais deixarão de ser um mero brinquedo para a diversão de homens. Chega de maltratar e machucar os pobres bichos.
— Como assim? — indagou o paciente, com a mão na cabeça latejante. — Alguma associação proibiu os rodeios?
O homem de chapéu gargalhou. Sorriu, respirou fundo e gargalhou novamente. Para o paciente, aquela era uma risada louca, demoníaca. Gritou para que parasse, mas o homem continuava a mostrar os dentes tortos e amarelos num sorriso quase maníaco. Falando ainda com um riso fraco na voz, retrucou com um olhar fixo no paciente, inclinando sua cabeça para o paciente.
— Associação nenhuma, meu velho. Apenas o Cem Kilo. Um único bicho. Tente lembrar, cowboy.
O paciente se horrorizou ao ver o rosto do homem de chapéu, Era o seu rosto. A memória veio com um flash e as imagens agora eram nítidas. O Cem Kilo no meio da arena, pulando e coiceando como um louco. O peão cai, o velho boi pisa em sua perna, quebrando-a. O animal se vira e parece encará-lo. Com toda a fúria, o Cem Kilo avança, levantando a poeira da arena. Os aplausos se transformam em gritos e as pessoas começam a se amontoar na arquibancada. Nada detém o gigante que corre com todas as forças de encontro a ele. As pessoas gritam, se acotovelam e tentam subir a arquibancada. Paralisado de pavor, ele só consegue ver a montanha branca vindo em sua direção. O ar quente lhe sufocando. Os empurrões e por fim o choque. O barulho foi estrondoso como um trovão e a escuridão era áspera e dolorida.
Voltando do torpor da lembrança, olhou para baixo e começou a gritar, pois não sentia mais as pernas. Horrorizado, viu a si mesmo sorrir, ajeitar o chapéu na cabeça e sair do quarto assobiando alegremente.