Corpo discente (don’t call it a comeback)

Conto inédito de Luisa Geisler
Ilustração: Conde Baltazar
01/07/2023

Stakes se traduz como estacas[1].

As estacas[2] são altas[3].

A possibilidade de ganho[4]. O[5] que[6] se arriscaria[7]. O que está em jogo[8].

Não[9] é a bolsa[10].

É a possibilidade dos originais de Respiração artificial todos os dias.

Ao alcance das mãos.

O Chair do departamento escreveu um ensaio tocante sobre Piglia.

Chair se traduz como “cadeira”.

O voo[11] é cansativo. Era. Foi. Estava sendo[12]. Seria. Seja. Saiu 17h e chegou 9h[13]. O ar tão seco que o ranho dentro do nariz endurecia numa casquinha e, se tentasse tirar ou limpar[14], causava sangramento.

Poucas coisas te preparam tanto para uma entrevista numa universidade como Princeton quanto ser a primeira geração na pós-graduação, quanto ser queer, quanto ter que pagar as próprias contas, quanto só querer ficar estável num lugar que te desestabiliza[15]. Poucas coisas te preparam tanto pra uma entrevista na universidade de Princeton quanto ganhar um prêmio literário nacional aos 19 anos[16]. Menina[17] debochada, ela[18]. Ao mesmo tempo, meio puta da cara[19] também.

O avião frio demais, os joelhos batendo no assento da frente.

De qualquer forma, ela se prepara um pouco mais[20].

De JFK a cidade de Princeton, dois ou três trens[21] de dois andares[22]. Uma estação de trem com patos, provavelmente os patos mais bem-educados de todos os Estados Unidos. Da janela de um Uber com um motorista falante, ela olha arcos pontudos, abóbodas, abóbodas marcadas. E grama. Uma árvore com musgo. Lembra de musgo. Pilares de suporte que parecem não apoiar nada, que voam para o ar. Gente sobre gente.

No meio de Palmer[23] Square, a praça principal[24], a estátua de um tigre deitado. Como uma igreja, como se houvesse sido a primeira[25] definição de uma cidade[26]. Ao redor do tigre, lojas e ruas de arquitetura neogótica. Na frente do tigre, um hotel com uma placa do tour histórico da cidade de Princeton.

O hotel Nassau Inn foi fundado 260 anos antes. Ela pede um check-in adiantado[27]. O recepcionista diz que ainda está dentro do horário do café da manhã[28]. Ela não comeu[29], sente o cansaço[30].

Ela caminha até um salão no fundo do hotel, que à noite funciona como pub restaurante, o Doodle Tap Room[31]. Teto baixo, madeira escura, muitas flores vivas, nenhum esforço de modernidade. Ao entrar no salão de jantar, a primeira parede à direita mostra uma série de fotos emolduradas de alumni de Princeton[32]. As mesas têm rasuras de ex-alunos que estão sob um painel de vidro[33]. Turma de 23, siglas, “Chad 1938”.

Ela se serve no buffet de poucas opções vegetarianas. Aquece um bagel[34]. Ela se senta numa mesa de madeira escura. No centro da mesa, sob o vidro, entalhado, Dr. Einstein. Ela[35] solta[36] uma risada[37].

Ela come e pensa pouco. Ela tem um caderninho, onde vai colocando tudo o que ainda falta fazer.

A lista de tarefas, bolinhas: rever as fichas[39] brancas pra entrevista[40] (espanhol, inglês e português); desfazer a mala e passar[41] roupa[42]; lavar cabelo[43]; responder[44] e-mails[45]. Da bolinha das fichas, uma seta que manda: rever fotos[46] da equipe[47] de professores[48]. Exposição do acervo[49] de Toni Morrison na biblioteca?; ligar Helô?. Ela sublinha: tour do campus, do Programa de Latino-Americanos e da biblioteca[50] será às 2pm[51].

Quando enfim entra no quarto, ela se deita na cama com os pés na cabeceira.

O inchaço de pés que viajaram[52] no tempo[53] e espaço.

Ela fecha os olhos[54].

Stakes se traduz como estacas.

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Notas

[1] Eu não sei se ainda chamavam esse tipo de voo de red-eye. Não sei se em português ainda chamam de corujão.

[2] Que conste que trabalhei na University of New Mexico — não era exatamente bolsa. Durante quatro semestres, dei seis créditos de aulas em cima de estudar nove créditos como aluna. Já que parte da remuneração é a mensalidade da universidade e o seguro de saúde, o dinheiro em si ganho pelos trabalhadores universitários da UNM é considerado abaixo da linha da pobreza para o estado.

[3] Em 2020, durante a pandemia de coronavírus, relatos de bolsas atrasadas ou canceladas, o pavor de um segundo turno bolsonarista, meu sonho era poder fazer mestrado com alguma estabilidade. A resposta é essa. A University of New Mexico tem um calendário de todos os feriados decretados para os próximos dez anos. O sonho era estudar e ser paga pra isso.

[4] Eu sabia que o Novo México era um estado barato. E sabia que o custo de vida em Nova Jersey, a umas duas horas de trem da cidade de Nova York, triplicaria. A questão era que em Princeton, eu não ensinaria seis créditos. E a questão é que a bolsa (efetivamente, uma bolsa) quadruplicaria. Ela sabia e eu sabia.

[5] Em Princeton, eu receberia um salário durante o período de férias.

[6] Eu ensinaria por menos semestres.

[7] Quando recebi o e-mail me chamando para a visita ao campus e a entrevista em pessoa, eu já sabia que tinha sido aprovada no doutorado da University of Texas at Austin e esperava a resposta de uma entrevista em Cornell. A UT Austin é uma instituição de excelência, considerada uma “Ivy League pública”, um dos maiores departamentos de espanhol e português do país, de uma pesquisa altamente interdisciplinar, e hoje dona do maior acervo de originais de Gabriel García Márquez. O motivo de os arquivos de Gabo estarem nos Estados Unidos é uma discussão que não cabe a esse texto — mas é uma discussão.

[8] A quantidade de contexto necessária deixaria tudo muito chato. Pra começo de conversa, onde fica o Novo México. Pra segundo de conversa, por que a maioria dos estudos de português acontece dentro de um departamento de espanhol e português. Pra terceiro de conversa, como uma média é calculada em base 4 — no meu caso, 4,3/4. Que em inglês, o ponto é a vírgula, a vírgula é o ponto (“1,5 quilômetros” seriam “1.5 kilometers”, enquanto “1.000 reais” seriam “1,000 reales (sic)”). Aliás, que uma milha é 1,6 quilômetros.

[9] Que segundo o manual MLA, o ponto final fica depois da aspa.

[10] A definição de excepcionalismo.

[11] Saindo de Albuquerque (Mountain Time) pra tomar um voo de duas horas e chegar uma hora depois em Los Angeles (Pacific Time Zone) pra tomar um voo de seis horas que chegaria nove horas depois em Nova York (Eastern Time).

[12] Pela tempestade em Dallas, o voo tinha sido cancelado. O voo seria Albuquerque – Dallas – Newark. O voo de Dallas e Newark foi cancelado pela previsão de tempestade. O voo de Albuquerque a Dallas se manteve. A entrevista ocorreria a 2.400 km (1500 milhas) de distância. A única alteração possível era uma conexão Albuquerque – Los Angeles – Nova York (JFK). Ir para oeste pra seguir para Leste. Do Pacifico pra seguir pro Atlântico. Sim, Princeton reembolsaria a passagem, mas a carteira dela no momento não tinha dinheiro para uma nova passagem de uma nova rota para cancelar a original.

[13] Nos Estados Unidos, poucas pessoas entendem o uso de dias de 24 horas. Se você usar, eles chamam de “horário militar”.

[14] Fosse água, fosse cotonete, fosse dedo.

[15] Explicar pra eles a definição de USP. Explicar por que você pronuncia “urguis”. Explicar a eles que seus pais não são senadores, diplomatas, por que precisou de tempo depois de cada curso, por que não foi direto, por que você custou dois anos em Albuquerque pra comprar um Toyota de 2001.

[16] E ser objetificada cada vez que tentou falar de literatura. Depois, quando aos 20 fosse finalista do Jabuti, ouvir que “ela escreve que nem homem, né?”. Canoense estudando Relações Internacionais, mas, ainda assim ouvir que estava na literatura pelo dinheiro ou porque tinha influência.

[17] Menina.

[18] E minha língua, e meus pelos e minha testa franzida que habito.

[19] — Eu também escreveria bem assim se tivesse minha mãe preparando Toddy pra mim — eu já ouvi.

[20] No voo, no colo, cartões coloridos, fichas de estudo. Os verdes, os mais diretamente ligados à pesquisa. Em ordem, flashcards amarelos, rosa-choque e brancos. Brancos para perguntas da entrevista. Naquele momento, ela coca o nariz: ficha de fundo amarelo: um homem branco de cerca de setenta anos, uma camisa social, gravata e sorriso institucional.

– Professor Équis.

Formado em Columbia, Professor Équis havia sido amigo íntimo e biógrafo de Carlos Fuentes. Sua pesquisa envolvia conceitos junguianos que eu não entendia dentro de literatura latino-americana. A pesquisa era interessante. Repeti a resposta em português, espanhol e inglês. Virei a cartinha. Eu sei que acertei. Pra cada professor, uma opinião sobre um artigo, uma ideia geral da pesquisa, uma matéria que ensinasse.

[21] Trem aqui no léxico mineirês, penso eu.

[22] Camada sobre camada.

[23] A neblina no ar às 9h surpreende. A mim, não. Mas pra quem vem de Albuquerque, a neblina não é normal.

[24] Ela pensa que é a praça principal.

[25] Diversos tigres e estátuas de tigres na cidade-campus.

[26] A história não é essa, mas eu — meus olhos, minha fuça — achei que sim.

[27] Trinta dólares a menos no orçamento da viagem.

[28] — Is it included? – confirmei

— In your reservation, yes.

[29] O orçamento.

[30] Eu não sabia, mas eu sei que dentro do último trem pra estação Princeton Junction, o vírus SARS-CoV-2 entrou no meu corpo através de inalação de partículas virais suspensas no ar. Naquele momento, o vírus começou a buscar e a se ligar com células hospedeiras para iniciar a infecção. As proteínas se encaixam em receptores. Eu sei.

[31] Mais tarde, ao buscar o nome do lugar, vejo a resenha no Trip Advisor: 3,5 estrelas. Uma resenha com título “Racist in Yankee Doodle Tap Room”.

[32] Muitos homens brancos. Um astronauta (branco). A única mulher negra é Michelle Obama, com o rótulo 1981-1985.

[33] Tão preciosas, tão históricas, tantos alumnis.

[34] Além de pegar cream cheese e frutas em pleno inverno. Café preto.

[35] Uma pessoa gravou “Dr. Einstein” achando que Albert Einstein assinaria como Dr. Einstein, pensei.

[36] Preciso rir pra não enlouquecer.

[37] Ela não sabia, mas eu sei que a gravação é real e histórica. Aquela mesa rasurada por Albert Einstein é um ponto turístico. Eu sei.

[39] Motivação pessoal?

Bullet-points: pesquisa, ensinar.

Uma fraqueza da pesquisa?

Bullet points: autoras em excesso, restrição geográfica.

Por que Princeton? Pontos-bala. E se Princeton te rejeitar? Pontos-bala.

[40] — Olá, Luisa, tudo bem com você? — Professor Équis me cumprimenta em espanhol.

— Tudo bem, um pouco nervosa… mas bem — respondo em espanhol. Sorrio, menina debochada que somos.

— Você é tradutora, não é?

— Bom, apesar de que traduzir do inglês não seja bem a ênfase da minha pesquisa para o departamento no momento… Mas sim, por minha posição como autora, eu traduzi desde uma variedade de young adults até Joseph Conrad, Torrey Peters, George Orwell e participei de um projeto de tradução coletiva de Ulysses, que ainda não foi lançado.

— E como você traduziria Stately, plump Buck Mulligan came from the stairhead, bearing a bowl of lather on which a razor and a mirror lay crossed?

— Perdão?

— Como você traduziria a frase de abertura de Ulysses?

— Ao espanhol?

[41] Ela não sabe passar roupa. Eu sei, porque vi tutoriais no YouTube e mandei WhatsApps pra minha mãe.

[42] Uma mala de mão emprestada com cartelas e cartelas de Dorflex, mais peças de roupa do que precisaria usar em três semanas, um par de sapatos que nunca seria usado, itens de higiene e uma fita corporal para caso o sutiã começasse a marcar demais a camisa social, algo que tendia a acontecer em situações inconvenientes. Eu tinha comprado um blazer preto promocional e cortado a etiqueta cuidadosamente. Se passasse, eu me prometi, eu ficaria com ele.

[43] Ela no banho, com sabonete com cheiro de hotel, um afeto especial por lavar por entre as dobras de pele, como se ali houvesse algo, como se ali se limpasse algo importante, ela encarando o jato de água quente que vem direto no rosto. Ela fala, minha boca cheia de água, ela pratica a resposta de por que fazer um doutorado. O sonho de fazer pesquisa, de se tornar uma acadêmica, uma verdadeira scholar. Eu cuspindo a água. A água que entra no nariz e se mistura com o moco de sangue e deserto, água e água e água. O sonho de bater de porta em porta em editoras universitárias que irão cobrar milhões pelo livro de alunos pobres da pós-graduação. O sonho de se tornar professora temporária em cinco universidades diferentes que a contratarão sem seguro de saúde ou contribuição pra aposentadoria.

[44] Esses dias, um amigo me mandou um meme, em que vereadores de uma cidade de 50 mil habitantes anunciam as premiações para o prêmio de poesia municipal. Para o primeiro lugar, um porco.

[45] Eu sempre tenho e-mails pra responder.

[46] Cara crachá, cara crachá.

[47] Em nossa recepção, o Chair falou em português pra todos os alunos. Me transmitiu certeza. Ele fala que não gostaria que pensássemos em Princeton como uma instituição careta e nos pergunta como traduziríamos careta. Eu sei que careta e caretear em espanhol argentino são algo como “fingido” ou “agir com falsidade”. Ofereço a palavra cheto, que se aproxima mais de rico e arrogante. Não é a mesma coisa.

[48] Depois de ter entrado no meio literário aos 19 anos, eu aprendi a perguntar. Não me levem a mal, qualquer pessoa com menos privilégio que um homem branco heterossexual cis com um doutorado tem que perguntar. Tem que saber. Parte da falta de privilégio é a falta do improviso: não posso simplesmente sim, digo sim. É um compromisso de cinco anos. O corpo docente pede cartas de referência: o corpo discente, eu, também. Eu sei.

[49] Recém-adquirido.

[50] De Sor Inés Juana de la Cruz, cartas de Glauber Rocha, originais de Carlos Fuentes e Diamela Eltit, cartazes de protestos recentes no Peru em 2022.

[51] 2pm.

[52] Viajamos.

[53] Que é dinheiro.

[54] Pegamos no sono, eu, ela, o vírus, as bactérias dentro do intestino, as células mortas grudadas na pele.

Luisa Geisler

É escritora e tradutora. Autora de Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados (2018) e Enfim, capivaras (2019), entre outros. Venceu prêmios literários como o Jabuti (com o projeto coletivo Corpos secos), APCA e o Prêmio SESC de Literatura.

Rascunho