Corpo delicado

Conto de Fernanda Nali
Ilustração: Eduardo Souza
01/11/2024

Tenho um corpo delicado. Disso sei por saber. Sei mesmo depois de noites sem que me encoste a pele, sem que tateie o tempo sulcando têmporas, pálpebras, mandíbulas: apenas um corpo. [Acordando agora, madrugada às claras.] As águas, como em um corpo, têm uma estrutura delicada. Os metais pesados se depositam no fundo. Escondidos nas margens da foz, a cor avermelhada finge que é terra. A superfície, clara, então parece intacta. [Tá um caos a cidade.] Como vão se tramando, pelos sótãos, saques e golpes de estado. Então depois surgem, como se do nada, como se deuses. [Eu sei. Acompanho tudo apreensivo.] Tem vezes que as únicas pessoas com quem converso são os homens que fazem as podas das árvores, eles sabem os nomes de todas as árvores. Conhecem todos os bichos de madeira. [Se você quiser conversar com um menino que mora nas árvores]. Nesses dias escrevo. [Ando cismado.] Amanheceu claro. Vai sair um disco inteiro aqui. Agora a madrugada tá sol. É sábado! Saio de casa. Áudio no telefone. E cantarolo por cima da melodia. Meu olhar se reveza entre as coordenadas do mapa no aplicativo e placas de radares nas ruas, que são inúmeros. Impossível estacionar fosse dia de semana. Mas é sábado. Desço o vidro da janela, procurando:

— É vaga.

— Tem certeza? Mais uma multa perco a carteira. Conheço pouco a cidade. Não sou daqui.

Também a gente.

Parece que fecha o tempo. [Mais tarde parece que vem chuva.] Está armando tempestade. E fica seguro dentro? A casa improvisada na calçada é uma lona azul plástica. É móvel. É pertinho de tudo: mercado, praça, gente, banheiro público. A fundação da cidade. Um menino cochila na barraca, provável seu filho. Localizo o edifício que me guia — a fachada coberta por andaimes e os muitos prédios do governo, como monumentos no deserto, erguidos na vontade de passar pelo que não são. Encontro o carro na volta? Atravesso como em procissão o pateo, o obelisco, o viaduto — abaixo a ladeira; as pedras portuguesas sobrevivem entre blocos cinzas de concreto betuminoso e banquinhas de camelô cobertas da mesma lona azul plástica. Escritórios decadentes pairam nos andares superiores, o térreo reservado aos pedintes, porteiros, vigilantes. Entro pela portaria gradeada, depois o elevador de portas pantográficas — uma relíquia que sobe rangendo. Outra porta, uma parede divisória de eucatex, uma ampla sala. Fui ingênua ao dizer que não sou da cidade? [O tempo fechou aí?]

Pescadores na praia, pés na areia, manhã ensolarada, puxando as redes. É Glauber Rocha, Barravento. [O tempo fechou aí?] A navalha na mão do homem de paletó branco. Corta. Um fuzil na mão do policial. [O tempo fechou aí?] Justapostos, o conflito é épico pelo movimento da câmera. A escolha dos planos mais próximos dos pés na areia. O movimento do narrador que não se vê. [O tempo fechou?] Não consigo ver pela janela com as cortinas fechadas. E com o ruído do ar-condicionado, como saber se a temperatura mudou? À minha frente a voz cantada. Que sotaque é esse? Anoto todas as suas palavras ou quase, registro como vou conseguindo. Ele sim é revolucionário, penso. Não eu. [Estou como que concha, um caramujo.] Compartilho no intervalo a imagem da embalagem de manteiga em lata três vezes mais cara que as populares como prova: uma revolução, não voto de pobreza.

[Deve ser a lua, a chuva, a cerração.] Quatro horas depois na sala emprestada do sindicato dos bancários, voltar ao chão em vertical pelo elevador: sim, o tempo mudou. Ainda que anoiteça a cidade me parece um palco aberto, mesmo se nessa hora tenho medo. De ser abordada? Não sei bem do quê. Mas a pé é tão difícil, mesmo à luz do dia. Viadutos, túneis, pontes, passarelas altas e suspensas. E tem os trechos em que, mesmo da calçada até a rua, o vermelho dos sinais e das viaturas da polícia multiplicam meu astigmatismo. Vão e voltam, se juntam às sirenes roucas, apitos, o estridente da buzina. Mas é sábado. [Áudio no telefone.] É fim de tarde quase noite. Na praça entre a viatura e a igreja, a multidão se condensa para a distribuição da sopa. Outros se abrigam nas marquises, se apoiam nas estátuas. Como chamar excluídos os oitenta por cento da população? Se as lojas do comércio fecham e ambulantes desaparecem, há sempre os que mantêm à risca o slogan da metrópole. Os homens de farda apalpando meninos no muro da casa da marquesa de santos podem vasculhar os bolsos sem decoro. Oscilo entre o disfarce de que apresso o passo, de que me apavoro. Estou mais protegida no automóvel. Eles não. De quem? Do quê? Da neblina, da cerração. Não sei bem, mas sei no fundo. Sei por algo que não lembro. Trinta quilômetros pra lembrar. Tenho um corpo delicado e isso agora sei por que os músculos se contraem e para essa menina à frente do volante, diante do para-brisa, esse frio é suportável?

Dou partida. As luzes dos faróis se lançam sobre mim e sobre ela, que durante a manobra fica para trás. Localizo o centro do meu mundo — é essa vontade de deslocamento e de um certo perigo que vale a pena correr numa cidade onde se quer estar estando em outro lugar. [O nevoeiro, a cerração. Cuidado.] Mesmo se a neblina turva o vidro e o ar que desembaça me congela, estou protegida enquanto me desloco. [Estarei no lago.] Saio da penumbra urbana para uma escuridão maior, danço sobre o asfalto enquanto deslizo nas curvas da subida, conheço o caminho. Sei o que me espera a estrada, estou segura até que a cancela se levante pelo trabalho do vigia, que da guarita me reconhece e não avisa minha chegada. Uma lombada divide o portal. Somente o movimento das rodas sobre as pedras e o facho do farol quebram o escuro reentrante e esse silêncio asséptico que me tomba o pensamento. Chego a salvo. Estaciono. O clarão que transpõe as grandes janelas na casa construída sobre um aclive se impõe majestoso sobre os meus modestos ombros. Como o interfone não funciona — ou o som dentro o torne ineficaz — espero do outro lado da rua até que leia o recado. De costas para a casa uso os calcanhares como apoio, encolho-me o mais confortavelmente sobre a grama; a luz que incide sobre o vapor de orvalho também ilumina o lago artificial desse condomínio fechado, e como a cena de narciso me projeto nas águas estancadas. Já sonhei esse lugar antes, já estive aqui antes no sono.

Da janela aberta do quarto vejo minha mãe desaparecer para o trabalho dentro da parati branca, numa manhã igualmente branca: nublava. E então o mundo existia além dos quarteirões de paralelepípedos no entorno da casa da infância. Havia esse lugar para onde ela ia e se demorava enquanto eu ficava, no buraco da ventana na companhia do zumbido da borrasca que sacodia as copas e me envolvia no aroma que se soltava como substância misteriosa, revelando-se muito pouco a pouco. Anos depois garoava como agora, formando-se uma névoa fria e seca incomum no litoral — era uma adolescente saindo do cinema da universidade para me encontrar do lado de fora, sempre deserto aos fins de semana. Adiava, lenta, a chegada até o ponto de ônibus — que demorava uma eternidade aos domingos, muitas vezes o perdia por querer, indo buscá-lo na praia apenas para prolongar esse intervalo comigo mesma — encarando o ar congelante que me cortava o rosto enquanto flashs das cenas sem corte do Tarkovski se prolongavam na minha cabeça e me distraíam até que o fim da tarde anoitecesse e esvaziasse definitivamente tudo, e a escuridão me lançasse à rara saudade de casa. Surgia como se repentino o medo, ignorando-o até despontar longe e difuso o letreiro eletrônico, que se aproximando inaugurava em mim o grande alívio. Feito o trajeto eu saltaria em disparada pelas avenidas até as ruelinhas de pedraria do bairro, ofegante, retardando tudo outra vez até abrir o portão com cadeado fechado em falso, já segura do lado de fora. Mas quando chego:

[Ando cismado.] As notas espaçadas do áudio agora dentro da casa, enquanto subo as escadas. O que você quer ouvir? A voz ecoa grave no salão de pé direito alto. Sobre o taco tiro os sapatos, piso a imensidão difícil do espaço confortável. Esse é o ponto — em que se desabam os tetos depois da borrasca. Ele que com os olhos de desvios me lança às profundezas terrosas da dúvida — do que já sei mas não me é assim agradável — e ao mesmo tempo me acolhe desajeitadamente em misterioso e afetuoso amplexo. [O que você quer?] Por um fio. [Ouvir?] Aquela primeira pergunta há sete anos um terreno estável, mas que com o tempo moveu o meu destino como predição das Moiras. Avanço a mão para cumprir a promessa. Mas falho. Não basta se mover pelo mundo — traçando um arco em volta da dimensão entre presente e passado? Aquilo que não leu porque não sabia ler nos olhares, que como vento não apreendo mas que reconheço por som e aroma. Não basta que seus arrulhos falem conosco, distraídos, enquanto dormirmos?

 Você por acaso não se lembra de ter visto… A missiva: não queira que eu vá embora. O relógio? Claro que irei. Quando a noite, a lua, a chuva passar. É manhã, o sol volta e esse deslocamento também terá certo encanto, como uma dança, e danço passo a passo sozinha com os pássaros. Posso cantar com as janelas abertas — ninguém ouve a minha voz. Os meus olhos estão abertos para o alto, os óculos e suas lentes de aumento desenham laivos reflexos multicores nos azuis, desço a serra de volta à cidade em velocidade constante, sozinha, sinais abertos. É domingo e de olhos imaginariamente fechados — estão abertos — recordo: no pulso esquerdo a lança do ponteiro aponta a moldura em madeira envolvida em couro azul marinho. O outro antebraço no apoio da porta do carro. As minhas mãos sobre o volante: dirijo. Meus pés descalços quase nem tocam o pedal. Você não passa as marchas, diz enquanto ri. Você, que vem comigo de carona porque tem a carteira suspensa. E os risos são também constrangimentos, conforto que amansa a alma quando passam. Não minto quando digo que não acelero. Sigo, deixando para trás rastros de fumaça acesos na luz que ainda há. O sinal aberto e por isso corto o cruzamento. [Sou tão organizado com essas coisas.] O corpo, sobre o cinto de segurança, bate. [Talvez o rapaz que veio para o conserto do banheiro…] É um passo em falso que acerta, obliquamente, o carro. Tudo feito de aço e é leve o chão que para em movimento um veículo no outro, em colapso. E muda a rota das rodas que deslizam, girando o cenário, enquanto em reflexo finalmente aperto o freio. E então se diz que antes de mergulhar para sempre se vê a vida inteira — o extremo silêncio no crescimento secreto das ervas daninhas, o cheiro escuro de sargaços a algas marinhas na praia, minha cabeça perdida com sede em algum lugar sem praia, a grande avenida transformada numa estrada de terra cinza que se abre em sais que se dissolvem, numa certeza fraca. A primeira reação de desencantamento, um olhar que vacila, o desamparo quando no avesso da barriga de minha mãe cresço em feto, ocupando e ampliando um espaço que antes era só seu. À frente tudo cinza se concentra: fios nos postes amontoados, arames farpados sobre muros e portas do comércio, fumaça e fuligem que paira no ar, o tempo que virou estranhamente nublado?

A imagem do relógio na timeline das redes sociais — por acaso. Devia ter escapado primeiro — a duração de um piscar de olhos. E então quem desviou de quem? De quem a falha? No que eu erro? No que eu erro, profundamente? Onde foi que errei? Em reflexo fui ágil, sei que estou viva. Matei alguém? Se o sinal estava aberto ou fechado, as linhas da faixa de pedestre vão conter como carimbo a goma. Também sou vulnerável. Como as linhas do tempo sulcando minha pele. [Onde?] É mentira que se tem consciência da batida. [Você está bem?] É mentira que a pessoa chora — e tudo parece que silencia e suspende [Em que lugar?] A pulsação dispara, tremem mãos e pés. Sei por que o metal curva sobre mim, sei por que contraio os músculos enquanto o dentro me cava um fora. [Vou aí?] E nos penetra como fuligem residual de minério cotidianamente invadindo invisível as janelas, nossas frestas, se instalando nos poros, depositando-se ao fundo, escondidos nos alvéolos. [Você viu?]. Sua cor avermelhada, de estanho, se confunde com sangue, a superfície, clara, então parece humana. [Você está bem?] Estou inteira.

Estou montanha. Por dentro uma cratera que estivesse sendo cavada durante anos, fende. [Vou aí?] Uma boina cinza se aproxima. [Precisa de ajuda?] Entrevejo os fios brancos do homem de camisa simples de botões. Uma pergunta é um jeito de afirmar algo? [Chame a polícia.] Destravo e empurro a porta no desespero de sair. Este senhor deve ter seus setenta anos. Este senhor, é claro, tem os olhos glaucomatosos. Não enxerga o sinal fechado. Tem os documentos vencidos. Não tem a licença, não tem aparelho de celular que funcione, anuncia o número fixo, que registro. É uma prosódia italiana, tronca, que junta as sílabas numa síncope difícil de traduzir, mas que me soa familiar. Não tem seguro, ainda sim garante: pagará o conserto. Faz um pedido: por favor, não chame a polícia.

Estou no tombadilho — uma lufada de nada me arde a pele, uma sede repentina me espreme. Quando uma coisa simplesmente é, a sua fragilidade incontornável. Os fatos como são. Um acidente em um cruzamento desimportante no subúrbio, sem sinal de viatura, sem necessidade de acionar guincho ou seguradora. Eu e meu algoz, imiscíveis, esse idoso que vê pouco e que caminha de volta para sua brasília bordô em frangalhos. Também voltarei ao carro. Abrirei a porta.

Entro e dentro quase não se dá conta do que se passou. Dentro não se vê tão disforme. Acompanho pelo retrovisor a silhueta cambaleante que desaparece. A cena isenta e amorfa: uma palavra ilegível no letreiro de um ônibus que surge ao fundo. Homens que atravessam a rua esfarelando-se, homens de pele escura que nunca vi e nunca mais verei. Não se parecem todos? Apenas esse corpo sensato reconheço: mãos e pés, esse pedaço de metal curvado que me trouxe até esse estado.

São circunstâncias acidentais que compõem a vida. Se é provável que nos enganemos sempre, não deve mesmo ser melhor tomá-las como são percebidas, esconsas, não o fim, mas o antes do início? Agora uma rua sem árvores sombreando-se. São Paulo antes parecia impossível. E então estou dentro. Viro a chave. O barulho da bomba do combustível acionada soa como grilos descompensados. À vista baça longe vejo muros em sequência que dão em passarelas. Pareado o telefone ao rádio, o áudio toca automático. Solto o freio de mão. “[…] a vida vem em ondas como o mar…”. Solto o pé da engrenagem. Anda. “Num indo e vindo infinito”.

“[…] não adianta fugir, nem mentir pra si mesmo…”.

Lonas azuis plásticas embaixo.

“Pra si mesmo agora…”

A estação de metrô ao lado. O som simultâneo ao que vejo instaura, sem transição, águas salgadas — cifradas no mais fundo som: alívio sobre meu corpo inteiro.

Fernanda Nali

Nasceu em Vitória (ES). É escritora, pesquisadora na área de literatura e gestora cultural. Publicou o romance Território inominado (Prêmio Secult/ES, Categoria Estreante, editora Cousa, 2028). Seu primeiro livro de poemas, A duração da sombra, será lançado em breve.

Rascunho