Corpo a terra

Conto inédito do argentino Martín Kohan
Ilustração: Theo Szczepanski
30/06/2015

Tradução: Vivian Schlesinger

As más notícias em geral chegam assim: envoltas em irrealidade. Ouviu, por telefone, que Antonio acabava de morrer em um acidente de avião e não lhe pareceu que isso pudesse estar correto. Precisou que lhe repetissem tudo, como é próprio de qualquer incredulidade, e ao desligar, o mundo normal lhe pareceu menor e mais pobre, como sucede com qualquer desgraça quando chega sem ser anunciada.

Antonio, a amizade de Antonio, contava demasiados anos em sua vida (mais de vinte) para poder admitir agora que não existiria mais. Conheceram-se no serviço militar e em uma noite de guarda se tornaram amigos. Estas noites de intempérie e escuridão presumiam a exigência de prestar atenção por horas a fio, ainda que, a rigor, não existisse nada em que essa atenção pudesse pousar. Vigiavam isso: o nada, que não houvesse nada, que não acontecesse nada. E nada acontecia.

Até que chegou a vez deles de montar guarda, aquela noite, e em um dado momento do cochilo e do silêncio, em um ponto bem próximo mas difícil de definir, escutou-se o ruído de alguns passos muito fortes. As folhas que escondiam o solo, já que se aproximava o outono, rangiam na calada e não deixavam margem à dúvida. Antonio então levantou a voz e perguntou: quem vive? Talvez não levantou a voz o suficiente, não se escutou, não houve resposta. Devia dizer a senha no mínimo mais uma vez, mas esqueceu-se ou assustou-se, e não o fez. O intruso estava próximo, certamente os haveria percebido. Antonio apontou seu fuzil ao coração da escuridão alarmante e apertou o gatilho sem vacilar. Melhor matar do que ser morto.

A arma travou (não era raro, era de se esperar: anos mais tarde, em plena guerra, aconteceria toda hora) e o tiro não saiu: não houve faísca, nem estampido, nem morte. Antonio desesperou-se, talvez até gemeu; mas justamente nesse momento abriu-se um claro em pleno olho do furacão e diante deles apresentou-se o sargento Giménez, alto, grosseiro e um pouco surdo. Ladrou seu controle de rotina, viciado em hostilidade, e uma vez cumprido esse dever, afastou-se sem se despedir. A amizade nasceu nesse momento, e para sempre. Porque ele sabia, não poderia não saber, que Antonio havia atirado, só por um milagre não havia matado o sargento Giménez. Ele sabia, tinha visto, e Antonio sabia que ele sabia. Estava entendido que não se diria nada. Foi o segredo compartilhado que os uniu, como a outros une uma paixão compartilhada, ou uma tristeza compartilhada. Para dotar esse segredo da mais absoluta perfeição, jamais mencionaram o assunto, nem mesmo, ou muito menos, entre eles.

Agora Antonio havia morrido. Havia morrido, ou havia se matado, como é moda dizer quando se trata de acidentes, como se não houvesse diferença alguma entre um acidente e um suicídio. Havia se matado. As circunstâncias não ajudavam em nada para admitir tal feito. Não havia quase nem uma gota de verossimilhança na catástrofe, quase nem um elemento que sustentasse o poder acreditar. Antonio estava viajando para o Brasil (finalmente a mostra integral de sua obra no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o salto ao circuito internacional de sua carreira de fotógrafo) e o avião em que voava, de grande envergadura, como poderia deduzir-se, havia triscado (nem batido nem tocado, apenas triscado) na asa de um aviãozinho (nem mesmo de outro avião, apenas de um aviãozinho).

A imprensa não pouparia, com certeza, as alusões a Davi e Golias. Porque depois desse revés no céu (já era inconcebível, por si, que na descomunal vastidão do céu, na extensão infinita desse nada, dois aviões, grande e pequeno, se encontrassem), o aviãozinho fraquejou, danificado, mas conseguiu manter-se em voo, enquanto o avião comercial, o das poderosas turbinas e os numerosos passageiros, foi o que se precipitou a terra e se destroçou. A conclusão de rigor se impôs: não houve sobreviventes. Os aviões caídos deixam-se reconhecer somente por pedaços. Uma letra arrancada por inteiro, um terço do logotipo, um resto de cor incendiada, servem para a identificação.

Sentiu-se um completo miserável, e por acaso, de certa forma, foi mesmo. Porque acabava de matar-se Antonio, seu amigo de sempre, seu amigo por excelência, e ele não pôde poupar-se, não pôde ou não quis, no minuto em que se inteirou do drama, esta especulação de puro egoísmo: tinha agora uma boa razão, urgente, irrepreensível, para telefonar a Agustina e conversar. Havia meses que não se falavam, porque não havia nem por que nem para quê, e estes períodos de silêncio e desconexão, cada vez mais prolongados, estavam sem dúvida destinados a impor-se como uma nova normalidade, com seu nada e com seu sempre. Mas esta desgraça era também uma desgraça para Agustina, ainda que o fosse de modo indireto; os dez anos de matrimônio com ele (nove e meio, quase dez) haviam sido também, entre outras tantas coisas, dez anos de amizade (nove e meio, quase dez) com Antonio.

Desculpa não era uma palavra adequada: o que tinha, agora, a seu alcance, era sem dúvida uma boa razão para telefonar-lhe. Poderia até sugerir-se, inclusive, que deixar de avisá-la seria toda uma falta de consideração: um desaforo de sua parte. Tinha de telefonar e tinha de dizer a ela. A morte de Antonio não deixava de ser, de certo modo, um assunto dos dois; pensar assim o reconfortou (ainda que notar que o reconfortava o mortificasse também). Não só poderia telefonar a Agustina: tinha de fazê-lo. Apesar disso, deu várias voltas antes de se decidir a digitar o número do telefone. Viu-se absurdo, ensaiando possíveis roteiros da conversa, praticando respostas conclusivas, testando insinuações.

Falaram pouco; tudo foi muito breve. Agustina ficou consternada, quis saber, amaldiçoou, soluçou; o esperado. Mas depois, ele mesmo não sabia por que, não houve mais o que dizer, e sua longa expectativa de falar, ao fim, com ela, foi se desfazendo muito rápido; convertida quase de repente em nada, antes de chegar a produzir algo, a encontrar algo, a significar algo, o devolvia ao abandono sem deixá-lo reagir. Fez uma tentativa, mesmo assim: propôs uma viagem; fez isso puramente por impulso, porque intuiu que sem isso restaria despedir-se.

Expressou-se com eloquência surpreendente: disse que a mostra de Antonio em São Paulo ocorreria e agora seria póstuma; que viajar para visitá-la e conhecê-la passava a ser, então, uma espécie de homenagem indispensável, uma prova de amizade que ele estava decidido a fazer. Agustina, ao ouvi-lo, comoveu-se, ou assim lhe pareceu, nem sempre é fácil perceber essas coisas em uma conversa telefônica. O que, lamentavelmente, não lhe avisou, ou preferiu não avisar, é que isso que ele lhe dizia era apenas um convite: a proposta de viajarem juntos. Ela entendeu como uma declaração pessoal, nada mais; o anúncio de que ele viajaria. Parabenizou-lhe, animou-lhe. Disse a ele que a ideia lhe parecia admirável. Que não devia deixar de fazê-lo.

Não houve enterro e não haveria, ao menos até que as autoridades conseguissem encontrar os corpos, distinguir entre eles, identificá-los, entre os restos do avião espalhados em plena selva; e aí faltaria o árduo trâmite de enviá-los a outro país, se fosse o caso. Pensou que a viagem ao Brasil serviria para satisfazer a íntima necessidade de algum ritual de despedida: honra fúnebre ou evocação pessoal. Dizem que os artistas não morrem, porque deixam um legado, ele sabia que não era certo, que morriam como qualquer um, descartava esse clichê como fraude e sentimentalismo. Mesmo assim admitiu que viajar a São Paulo, ao museu, para ver as fotos expostas de Antonio, seria quase como encontrar-se com ele, mesmo ainda que fosse para saber que o havia perdido.

Antes de partir conseguiu pensar, mesmo sem admiti-lo completamente, que talvez também viajasse porque, além dos motivos visíveis, assim lhe havia dito Agustina. Fazer a viagem supunha levar em conta essas palavras, e também, de alguma forma, retomar essa conversa. Era óbvio que, quando voltasse, não poderia deixar de telefonar-lhe. E até chegar a encontrar-se com ela, por que não, se lhe trouxesse, por exemplo, como favor ou prenda, um exemplar do catálogo da mostra, uma lembrança que ela não pudesse recusar.

A viagem de avião foi tão simples e tranquila, que era difícil admitir que nestas mesmas circunstâncias, agora tão inofensivas, outros pudessem haver encontrado a morte, uma morte por demais horrorosa. Ele foi se colocando no lugar de Antonio quase a cada momento da viagem, como se isso pudesse ajudar-lhe a entender o que havia acontecido. Não lhe serviu, claro; ao aterrissar e descer do avião, lhe pareceu ainda mais inconcebível, mais desconhecido, mais desesperador, chegarem ilesos, ele e os demais, os demais e tantos outros, e que Antonio, pelo mesmo caminho, ao contrário, desfigurado, irreconhecível, já não estivesse mais.

Em São Paulo não quis perder tempo. Deixou suas poucas coisas em um hotelzinho da Rua Augusta, e saiu imediatamente ao Museu de Arte Moderna da cidade. Caminhou com a mente em branco, ou tentando mantê-la em branco, enquanto os edifícios da avenida principal surgiam nos cruzamentos e o deixavam indiferente. O museu logo ficou visível: geométrico e suspenso, animado com cores fortes, ele próprio almejando ser arte. Em um cartaz vertical leu o nome de seu amigo: Antonio Reggi. Só então, só assim, entendeu que havia chegado, soube a que veio, acreditou entender o que o esperava.

Antes de entrar, apesar de que continuava ansioso, obrigou-se a dar umas voltas pelo parque localizado em frente. Era tão espessa essa folhagem, que em seguida pôde esquecer que estava em uma cidade; as folhas e a umidade se espremiam com tal decisão que o parque transformou-se num espaço fechado, sem céu nem ar livre. Ao sair, no entanto, continuava em São Paulo. E o museu continuava aí, do outro lado da avenida, anunciando uma mostra das fotos de Antonio. Atravessou já pronto para entrar. E entrou.

As fotos o impactaram, como sempre. Tê-las visto tantas vezes antes não atenuava em nada o efeito; costumava não encontrar palavras precisas com as quais expressar seu encantamento, o que lhe trazia algum incômodo com Antonio, não sabendo o que dizer-lhe e temendo que sua admiração acabasse parecendo duvidosa. Agora as contemplava e disfrutava sem mais preocupar-se, e podia ficar com isso, esse tipo de emoção que sentia podia plasmar-se em silêncio.

As fotos que não esperava, as que não conhecia e jamais suspeitara, estavam penduradas em uma parede lateral, um tanto discreta, como em uma seção separada da mostra. Poderia ter passado por elas rapidamente, a não ser por esta espécie de chamado que pressentiu ou adivinhou. Nunca as havia visto antes e, no entanto, sem que no começo tivesse atinado por que, um flash de reconhecimento o atingiu. Aproximou-se para vê-las e entendeu o motivo: nessas fotos (eram três, não muito grandes, em preto e branco) aparecia Agustina. Agustina: sua mulher. Sentada e nua nessa poltrona de vime que Antonio sabia haver, quatro ou cinco anos atrás, em um canto de sua casa onde a luz do sol, em algumas manhãs do ano, fazia brilhar intensamente. Agustina sentada e nua nessa mesma poltrona de vime, deixando o olhar perder-se em algum lugar que talvez fosse uma janela, talvez a porta que dava para o quintal.

A visão o sufocou; sentiu-se tão atordoado que teve de afastar-se, retroceder. Que eram essas fotos? Por que não havia sabido de sua existência? Por que Antonio jamais havia mencionado esse assunto? Por que Agustina não o havia mencionado? Propôs-se a voltar a vê-las, examiná-las. Perscrutá-las em detalhe, com a esperança, ou com o temor, de poder entender algo. Mas desistiu. Deu-se conta, justo a tempo, que não estaria em condições de enfrentar isso. As mãos ainda lhe tremiam, as costas continuavam empapadas de transpiração. Estava mareado.

Saiu à rua para respirar, para reencontrar-se com a normalidade das coisas. Mas estava em uma cidade alheia, diferente em quase tudo da sua, e essa estranheza o prejudicou. Seria capaz de voltar a entrar no museu e olhar as fotos de Augustina, sua mulher, essas fotos ignoradas que Antonio, alguma vez havia tirado de Augustina, sua mulher? Teve uma ideia melhor. Voltou ao museu, mas não à mostra. No andar térreo estava este setor onde se vendem livros de arte, postais, lembranças do museu, guloseimas. Aí comprou o catálogo (capa dura, papel acetinado) da exposição de Antonio Reggi. Levaria ao hotel, para poder revê-lo com cuidado.

Apressou-se em chegar, fechou as cortinas gastas da janelinha de seu quarto, abriu o livro sobre a pequena mesa de madeira que fazia as vezes de escrivaninha, folheou-o sentado na beirada da cadeira, os dedos tensos. Foi e voltou duas ou três vezes, da primeira à última página. As fotos de Augustina não estavam. A única explicação que ele encontrou, a única que cabia, por outro lado, para entender essa irregularidade, era que Antonio as havia suprimido do livro, que havia aceitado exibi-las somente no museu, em outra cidade, em outro país, aí onde seguramente ninguém (ninguém significava ninguém a quem pudesse importar; ninguém significava só uma coisa: ele) haveria de encontrá-las e vê-las.

Decidiu adiantar a volta a Buenos Aires. Pagou sem hesitar a multa referente à mudança na data do voo: em vez de quinta, uma terça. Deixou o catálogo sobre a mesa de cabeceira de seu quarto no hotel, bem em cima da Bíblia de costume. Que o levasse quem quisesse, se é que alguém o quereria. Durante o voo olhou para fora: todo esse nada, todo esse incomensurável nada. No instante em que o avião aterrissou, quando depois de flutuar e baquear, sentiu a pancada das rodas na pista, disse a si próprio que agora sim tinha uma boa razão para telefonar a Agustina, para encontra-se urgentemente com ela. De imediato, no entanto, compreendeu que era o contrário. Agora tinha uma razão inexorável para, muito além do que ele queria, não voltar a vê-la nunca mais.

Martín Kohan

Nasceu em Buenos Aires, em 1967. Professor de teoria literária na Universidade de Buenos Aires, publicou ensaios acadêmicos sobre temas tão diversos como Walter Benjamin, Eva Perón e José de San Martín. No campo da ficção, é autor de dois volumes de contos e de nove romances, entre os quais Duas vezes junho (Amauta Editorial), o premiado Ciências morais e Segundos fora (ambos pela Companhia das Letras).

Rascunho