Copistas

Conto inédito de Marco Aurélio Cremasco
Ilustração: Fp Rodrigues
07/10/2015

Senhorita, não a condeno por não se lembrar de mim. Encontramo-nos, certa ocasião, na residência do senhor Max Brod. O meu nome é Franz Kafka. Claro que me recordei imediatamente daquele senhor que havia conhecido em Praga; 13 de agosto, salvo o meu engano. Estávamos na sala do piano. Sentou-se a uma distância recomendável aos desconhecidos. Disseram-me que era um escritor em começo de carreira e lá estava para conversar com o senhor Brod a respeito de um livro. Não sei como, mas ele soube que eu tinha uma queda por copiar manuscritos. Levantou-se e aproximou-se. Estendeu a mão, revelando os dedos, finos e intermináveis. Conversamos sobre Praga (ele era de lá) e sobre a minha profissão. Revelou-me a vergonha de não levar jeito com a novidade das máquinas de escrever e preferira redigir os textos a punho, contudo o resultado era repugnante. Pelas tantas, o senhor Brod o chamou… deixando-me depositária de incontáveis cartas que trocamos. Para o senhor K. a melhor forma de vida era encarcerar a existência em uma caverna, cujo compromisso seria o de escrever, tendo como companhia o lívido bruxulear de uma vela. As pessoas que importariam, em tal situação de clausura, seriam aquelas para servir-lhe as refeições, postas na entrada sem-fim da caverna. Ele vivia como se… Felice! — disse carinhosamente Nora Bernacle. — Os escritores são homens da caverna. Podem ir do susto à descoberta sem pressa e aprisiona-nos em um mundo alienado; exterior para nós, interior para eles. Quanto a mim? Conheci Jim em Nassau Street. Éramos jovens; ele dois anos mais velho e estava ridículo naquelas sapatilhas brancas e boné de marinheiro. O que se pode dizer de um dublinense? Em cinco dias eu recebi uma carta. Ah, como eles adoram escrevê-las. Nela, confessou que poderia estar cego, pois fitou a cabeça de outra ruiva pensando ser a minha. Como não soubesse que irlandesa que se preze tem o dever de ter cabelos avermelhados. Insistiu em ver-me. No dia seguinte ao da carta encontramo-nos à margem do rio Liffey e a percorremos até o cais. Creio que foi nesse dia que eu o transformei em homem. Caminhávamos dentro de nós, descobrindo monstros e assassinos. O sonho da vida termina, não importa o dia. Ele, como a maioria dos escritores, vive feito pérola em ostra fechada. Quanto a mim? Tenho de arrastar-me do fogão à geladeira e preparar o café da manhã, o almoço e o jantar, ao passo que o nosso rei está lá: escrevendo e ordenando. Eles fazem filhos, esquecendo-se de criá-los. Enfurnam-se em um universo do tamanho de uma ervilha. Não me importo com o que o mundo pensa, entretanto o mundo seria melhor caso governado por mulheres. Jim sempre me perguntava se as suas minhas palavras eram obscuras, pouco sabendo que a escuridão encontra-se em nossas almas. Querida Felice, nós somos as luzes dos escritores. Não teria tanta certeza, Nora. — interrompeu Sofia. Liev, bem mais velho, trazia no corpo a volúpia que tanto me encantou quanto me engravidou. Dei à luz, tive a minha cota de dor e voltei à vida com mais temor. Algo ruiu em mim. Ele escrevia. Autoritário, dizia-se voltado para as grandes causas, restando-me a prenhez de seus filhos. Ele quis escrever um painel sem igual da alma humana; pintar um quadro no qual a retratasse torpe e grandiosa. Trouxe isso para dentro de casa, alegando que apenas Deus nos permite viver. Debrucei na cópia de sua obra mais grandiosa por seis versões angustiantes. Sofri a desgraça e a glória de cada personagem daquela história. A cada versão uma palavra minha era incorporada e, no final, fizeram-se parágrafos de tal modo que a sétima e derradeira versão, no mínimo, metade era minha. A guerra que se instalou entre nós somente encontrou paz quando ele, octogenário, decidiu tomar um trem para não retornar; nem nesta vida. A propósito, vocês souberam quem morreu? Um grande artista — disse Felice Bauer. Irreparável — asseverou Sofia Tolstoi. Um grande homem, isso sim — sorriu maliciosa Nora Barnacle, esfregando as mãos como se masturbasse um fantasma. Desculpe-me, senhoras, não pude recusar o convite da curiosidade — interrompeu uma quarta mulher que estava sentada, de costas, em uma mesa contígua. Sem dúvida, as senhoras têm razão sobre os adjetivos de meu ex-marido. Ele não era Franz Kafka, Liev Tolstoi ou James Joyce. Não escrevia, simplesmente. Comunicava-se com os mortais, assim ele nos denominava, pela pintura. Para o bem da verdade, poucos tiveram tanta influência em vida ou provocado paixões. Era capaz de fazer da própria existência uma tela primorosa, entre outras tantas obras-primas que criou. Nada o tirava do ateliê. As raras vezes que sentia na pele o raio de Sol ou o rasgo discreto da chuva era para levar o cachorro a passeio, avassalando-se em tornados de tormentos. Egoísta, não tolerava inexperiência ou aqueles sem talento. Buscava a perfeição e refutava com veemência qualquer falha ou fragilidade. A sua obra é recheada de sombras e as cores que aparecem aqui e acolá traduzem espécie de aborto, pois ele procurou dar vida à morte, povoar de pavor o que poderia ser frescor. Mesquinho, impiedoso; desses capazes de surrar seus modelos com sussurros depreciativos, a ponto de provocar pânico, lágrimas de humilhação para nelas lavar o pincel. As suas pinturas, com certeza, estão valorizadas, não pela técnica, única, que o elevou a mestre inconteste na arte que se dedicou, como também por tê-lo tornado carrasco de si mesmo por nunca ter amado alguém e ter dedicado a vida à natureza-morta que o limitava na solidão da criação. Quem não quiser, senhoras, ter vida de santo torne-se artista ou escritor, mas quem eleger a existência masoquista dos mártires, case-se com um.

Marco Aurélio Cremasco

Nasceu em Guaraci (PR). Tem publicado os livros de poemas Vampisales (Editora da UEM, 1984), Viola caipira (edição do autor, 1995), A criação (Prêmio Xerox/Livro Aberto, Editora Cone Sul, 1997), fromIndiana (edição do autor, 2000), As coisas de João Flores (Editora Patuá, 2014); o livro de contos Histórias prováveis (Editora Record, 2007) e o romance Santo Reis da Luz Divina (Prêmio Sesc de Literatura, finalista do Prêmio Jabuti, Editora Record, 2004).

Rascunho