Contos de Evandro Affonso Ferreira

Dois contos de Evandro Affonso Ferreira
01/06/2001

Abespinhado

Foda-se o misticismo aritmológico do pensamento pitagórico, estou preocupado porra nenhuma se Bentinho tem a fronte guarnecida por chavelhos chifres que tais, danem-se as bactérias hipermófilas, foda-se Mário de Andrade e sua literatura pan-brasílica, foda-se Esaú que renunciou à primogenitura por um prato de lentilha e Simão que quis comprar de São Pedro o dom de fazer milagres, dane-se Prometeu aquele ladravaz olímpico que roubou para os homens o fogo do céu, pouco se me dá as teorias modernas da expansão e da contração do universo, foda-se a tese da origem lógica das figuras abstratas e da geração física das realidades concretas de Filolau,
não me acrescenta nada saber que Mondrian queria que a arte fosse desnaturalizada, dane-se a violação dos direitos de hospitalidade de Páris, estou cagando e andando para o astucioso Hamlet que se faz de louco para garantir a própria segurança, mesma coisa para para Édipo que é o assassino do homem cujo assassino procura, flat ubi vult o vento sopra aonde quer, foda-se, fodam-se as cinco virtudes as cinco faculdades as dez forças as dezoito substâncias de Buda, não me interessa saber que o nome de
David aparece mais de mil vezes na Bíblia, que o Evangelho de Lucas tem o maior número de parábolas de Jesus, danem-se as revelações apocalípticas, azar se as coisas da criação são contrárias ao homem e vice-versa, não agüento mais ouvir que a teoria geral da relatividade de Einstein se formula num âmbito de uma geometria não-euclidiana, já que descreve melhor o universo em que vivemos, danem-se os mistérios da transubstanciação, não estou interessado na verdadeira significacão da isotopia, não me acrescenta nada saber que tipos diferentes de estromatólitos proterozóicos habitam os mais diversos ambientes há dois bilhões de anos, fodam-se as moléculas
átomos prótons nêutrons elétrons quarks tudo todos inclusive este revestimento interno calorífero sobre a sala de reunião de professores desta universidade em que me encontro currupaco-papaco preso há mais de um mês, porra.

Arre lá!

Funambulesco pensa que pode me lançar à margem, hoje sou uma Bovary pronta para o adultério, coração enfrouxecido não tem mais espaço para candidezas flamejamentos quimeras quejandos, chega, séculos por assim dizer de resignação, agora resolvi levantar o estandarte da revolta, vida toda agüentei o balandrau sem tugir nem mugir, amargura sempre entrou tengo-tengo aqui no peito, arre lá, adeus impassividade adeus atimia adeus perrengagem adeus desassossego adeus submissão, chega, desforra já entrou em ebulição, vou agir às escâncaras, sob a esplendência solar, rataplã rataplã rataplã, que rufem todos os tambores do brejo, primeiro bufonídeo plebeu que coaxar nos meus ouvidos, fuque-fuque-fuque, chega, marido funambulesco pensa que pode fazer in perpetuum gato-sapato dos meus sentimentos só porque foi príncipe um dia.

Evandro Affonso Ferreira

Nasceu em Minas Gerais, em 1945. Está radicado em São Paulo há 40 anos. É autor, entre outros, de Minha mãe se matou sem dizer adeus, Grogotó! e Catrâmbias!.

Rascunho