Contemas

Extraídos de lugaresmos, obra inédita de Jorge Pieiro
Jorge Pieiro
01/08/2003

1.Panapletos

Balada da inocência perdida, I

 tenho das balas atiradas contra o sábio o esboço das trajetórias a pólvora alvoroçada pelo indicador iconoclasta a súbita inglória

teu fígado mastigo de abutre tu, assassina, a que me prometeste a palavra roubaste-a para quê? de que te serve esse fel se não percebes o açúcar dos delírios?

foges agora de mim o rumor da sombra te oculta saúda-te embora invisível o teu fim te vejo parábola dos projetos asfixiados com a tatuagem na íris sonho peso das balas estampidas contra ti ave, sorte! ave morta!

profano-te

 Balada da inocência perdida, II

um corte todo olho em sangue e abuso do teu seio não esqueço o sol eclipsado de virgem a fúria do receio e do fogo e pó nas asas de borboleta

me vigio entre a figa e a sorte um segredo é a metamorfose de uma lâmina em desuso

pêlos em teu lençol bordado com a honra da morte será amor o que amordaço de gemido?

desgraçaste o anjo com teu púbis voraz semente a culpa resta a pira incandescente deu-se a palavra a um deus silencioso: selaste os vazios com os fios de adaga

2. lugaresmos

1. Não se sabe da coruja dentro da coruja: do pássaro, esse pesadelo nunca mais terei.

Há uma árvore azul. O homem quis cortá-la. Mas o perigo iminente dos dedos sangrando desfez o desejo. Que homem é esse tão indefeso ao sentimento? que homem é esse que se rebaixa ao pulso da natureza? que homem é esse?

Vi a fogueira crescendo depois da noite. Adoeci o dia em mim. Que homem sou? a última espécie dos vampiros, dos bichos sobrenaturais, a humanidade da pústula? Se sei que sou Deus, destino. Se sei que último dos anjos, escarro.

Pensei. Penso novamente no pássaro. A coruja dentro da coruja. O fim do ovo, o fim da vida. Nesta ilha, em que tudo é tarde, as estradas são as mesmas. As pedras desiguais. E por que não haveria de sê-las?

O coração está em carne-vida, o sal marinho invisível amaldiçoa o orvalho ainda por vir. O pedaço de terra que há no navio-fantasma se desiguala, é outra ilha. Há fogo nas labaredas dos olhos. Nunca ver o que há é real. Só amanhãs. Aqui é o pesadelo contínuo. A coruja dentro da coruja. O soluço da pedra. A titica da albatroz. O lodo no dentre do tubarão. A pedra da luxúria enfaixada pelo dedo de Deus. Aqui é o pesadelo. O chão seco. O fogo por existir o quase fim. No fim.

2. Que importaria sobreviver, se persistiria a angústia, o oco na garganta destruindo o desejo?

Amar a mulher de Deus. Mas quem é a mulher de deus? Sem imagem, dessemelhante, o corpo a resto. Amar o vício com saber. Mas que vício amar, se mais não há sabor?

Ele dormia. Talvez sonhasse coisas. E sonhava interrogações, às quais não sabia responder. Ele desejava o deserto. Mas a areia já fora tomada pelo tempo. O tempo-oráculo. O tempo do caso…

Ele sabia que jamais caminharia pela mesma estrada dos palhaços divinos. Era um anjo. Repleto de fantasmas e demônios. De tudo sabia.

Porque ele não quis ficar, muitos foram. Porque ele nunca insistiu, pediu para desistir. E como esses covardes não puderam combater essa dor?

Fez-se feliz de infeliz. Bebeu o mel da olheira das cadelas. Cultivou a árvore do luar. Mito lógico. Indefeso. Disse que tudo era perfeito. Mas preferiu um parto. E foi. Bebeu-se. Pelo olfato. Sinestésico. E foi.

Que importa para ele agora essa angústia lírica atravessada na garganta do poeta? Que importa a nostalgia do desejo de também partir? Apenas uma sombra a atravessar. Mas vai longe. Como um covarde pode combater esta dor?

Fez-se feliz sem flor. Um pedúnculo. Espinhos. Menos ou nada.

4. Nunca desci daquela árvore. Os pássaros me chamam de estátua. Preciso de um banho. Mas nunca desci daquela árvore. Embaixo, uns correm, outros exploram vícios, alguns morrem.

Poucos me chamam. Não consigo mais entendê-los. A árvore que cresceu ou a língua se perdeu no emaranhado das folhas?

Nunca desci daquela árvore no centro do piquenique. Havia uma mulher que acenava constantemente. Chorava. Vi-a várias vezes, como se visse alguém conhecida. Desistiu, por fim.

E eu deixei de sonhar. Desde aquele tempo, continuo aqui. Agora é tarde, não sei mais descer daquela árvore.

13. Entre mim e ti este cavalo morto rodeado pelos pássaros. Os pássaros sem cadeados nos bicos. Entre mim e ti, rarefeita a náusea deste cavalo morto, a iluminada tragédia dos bichos. Entre mim e ti a escova de aço desta crina de cavalo morto lambendo nossa ferida de brios. Entre mim e ti este desterro, o barranco, pedregulho do ocaso prestes a cavalo morto nos trilhos. O fim do espantalho, este desespero dos pássaros saboreando tragédias entre mim e ti.

 17. A estrela longe. O bafo do silêncio. O meio da noite sangra. O orgulho da noite é sangrar. O fogo entre as mãos. O fio agudo da navalha deformando o seio na dor. Das entranhas, das frestas orgânicas o sangue é uma tempestade. Sangue de todas as uretras afogando a luz do quarto. É uma dor, não mais que uma dor, e o medo dessa dor.

No quarto aprisionado, os pulsos escondidos nas vísceras. O sangue jorra em um cálice sem salvação. A vida é mesmo um milagre sem peixes.

Ainda não foi a morte. O amor que morde. A morte não chega tão facilmente. Feito essa vida se escorrendo, aborto de um gesto.

 20. Pontos de chegada em nunca existir. Partidas a penas. A outros inícios sem referência. Ao nunca enfim infinito mais vez a se distanciar de quem desse pensa em aproximar-se.

Nada, o que existe mais depois do início. Mistério de uma esquina sem dúvidas, tal o encontro com o inefável.

3. antes do fim, inquisições do panapleu

ativos descobridores da panacéia literária, ou delas cobaias, o aprendizado pela palavra é a busca eterna e infinda da perfeição.

criadores e criaturas somos os seres mais imperfeitos.

relato essas insinuações, apenas para fragmentar o mais-que-imperfeito

 …e escrevemos sempre em miúdo por que miúdas são as origens. mas, sobretudo, porque assim é em panaplo

poesia não é só uma tragédia

poeta é quem engole luz e se bronha como manoel de barros

estamos na idade do fragmento. era nociva ou denunciante. isso é um recomeço

é saboroso não chegar ao fim. de onde vem o começo? aonde leva o fim?

se as estruturas são rígidas ou frouxas como na aleatoriedade da vida, cabe a cada um escolher a sua forma de (im)perfeição.

realidade e virtualidade simbolizam apenas: que é mais real, o homem ou a sua representação? que é mais virtual, a perfeição ou a impureza de ser?

a literatura é a disciplina comum de todas as coisas. e a melhor maneira de esfregar o nosso cérebro é sofre-lo no dos outros…

e palavra, por mais especial que seja, é sempre um punhal que nos busca o coração como alvo, enquanto somos cúmplices

pergunto. em qual pássaro vôo azul; a noite é um cão rosnando; das janelas, os edifícios estão em seus quadradinhos abafados; o céu enegrecido abocanha estrelas; e a vida é um osso ancestral prestes a romper?

em saudade legítima, isso são presságios de guerra e sabedoria.

mas em rosto de tristeza não cabe só um dilúvio.

há outras certezas.

digo. meu medo é o de escolher um paraíso falsificado. se descobrir, algum dia, certamente terei vencido a melancolia dos espaços vazios.

thomas de quincey: “as mínimas coisas do universo podem ser segredos das maiores”                    

acalentamos o sacrifício por uma dose de clarividência. o que buscamos é a novidade? a intromissão da glória? uma estética? o espírito que nos emudece se derrete em chumbos…

possivelmente, desconfiamos de quaisquer parâmetros cartesianos na (i)lógica poética. e, de outra forma, mesmo abstraindo-nos de todas as convenções, sequer alcançamos o teor sagrado do espírito que borbulha, que ousa ramificar nervosamente a servidão da nossa mente.

a natureza humana é pródiga na incerteza. esse é o precipício da escritura. e a razão desse escrutínio de entranhas se estabelece muito anteriormente à própria ação. o que se passa em certas linhas invisíveis, só alguns percebem. porque não há mais que uns a resistir nesse universo milimétrico do imaginário. outros, são apenas os que descobrem os instintos, as obviedades, os anelídeos do jardim…

a vocação do pássaro não está na gênese do vôo, mas no bicar da casca do ovo.

stefann van den bremt: “onde estamos? em nenhuma parte, nas palavras. e ainda aí estamos no exílio”                    

há que se considerar o fragmento como o aperitivo que precede as grandes transpirações.

insólito, o fragmento aniquila a unidade comum apropriada pelo senso. em contrapartida, elastece o imaginário, e as concepções se desvinculam da cadeia formal do pensamento.

a liberdade é uma frase mantida em sua própria consistência. essa abertura de infinito é que pode/deve negar, ou não, as estruturas de uma vida.

o fragmento, pois, é a unidade simbólica do processo da inteligência, onde vivemos exilados.

o que se escreve é um contra-senso diante de uma tumultuada ilusão. isto garante uma efemeridade ou o desabrigo da imortalidade.

um relato, talvez. ou a ausência de palavras que se despedaçam oníricas.

bendito é o lugar onde não somos…

sérgio campos: “pois o que sei e fiz trouxe da ausência / e refazer é meu melhor invento”

jamais haveria agonia poética, caso a natureza humana fosse exemplarmente reconhecida pelo poder memorial de seus escolhidos.

conhecer e recriar sem limites o óbvio é a melhor forma de descobrir o ninho dos dragões ou de perpetuar o estreluzir após seu auto-apocalipse ou de repassar a sagração dos antigos sinos da catedral de todas as emoções universais.

escolher a fortuna da poesia é debulhar o acaso. é nessa esfera que a ausência invalida a exatidão. por isso mesmo é que investir nos segredos é perpetuar a própria vida naquilo que se repete cotidianamente. revelar é reinventar a natureza e suas obviedades…

lezama lima: “…então o papel é uma rede? e mais: o pensamento

pescado tem que ser um peixe morto?

o destino reconhece que o homem vive suas circunstâncias entre o afogamento neurótico da busca e o deslumbramento delirante da lua sob os pés. em ambos os casos, os motivos são paradoxalmente suficientes para transformarem qualquer vida em resquícios. o meio-termo de uma existência apenas transpira em eventualidades.

atento, ponho-me no equilíbrio de um salto. e o que represento ou admito representar é o júbilo do pretérito; é o misterioso segredo do acaso; a corda de náilon azul do insucesso; a pedra milenar…

as visões que escolho são as possibilidades de vôo diante do abismo perseguido.

m.h. simonsen: “considera-se racional quem se comporta de acordo com a teoria”        

porque ninguém foi chamado a entender da criação; porque ninguém deve se desesperar ante a causa aflita da incompreensão do mundo e de suas idiossincrasias; porque tudo estará resolvido independentemente do programado apocalipse…

porque desconhecer é a prática viva da descoberta, a tarefa de nosso tempo é abusar da linguagem, é lançar a enigmática garrafa de sos no oceano igual ao azul e à profundeza, é desordenar o senso comum, em benefício de todas as dúvidas.

diante de uma hecatombe, o compromisso de babel.

a intenção de um arauto, antes de gargalhar frente à vítima arrependida. é esconder a lâmina da arma na carne do anjo-da-guarda.

assim seja o irracional!

quando será que todos os segredos se proclamaraão? quando um oceano aliviar a sede? desistir o deserto de suas miragens? fugir o fogo das águas?

ser eterno é muito longo, sem repouso. convém aos cucos emudecerem.

… a vida se calibra com a morte!

carlos de oliveira: “…até que a tesoura de deus nos corta da vida como nos cortam o cordão umbilical ao nascer.”                    

relato. entre a vida e a morte,o fragmento do tempo.

uma folha dá-se ao mormaço da solidão em alvoroço. este sacrifício contínuo de palavras e imagens regam pomares de acaso.

relato: o grande tempo… até que a oscilação do pêndulo dê-se ao enguiço das engrenagens…

quando será que todos os segredos se proclamarão? quando um oceano aliviar a sede? desistir o deserto de suas miragens? fugir o fogo das águas?

ser eterno é muito longo, sem repouso. convém aos cucos emudecerem.

…pois a vida se calibra com a morte.

uma linha a mais nas mãos de cada dia, enquanto a noite não destoa de suas estrelas. mesmo com esse palco desarmado, a vida é uma vítima sublime. quem desconhece o lugar? quem não é uma frenética aparição com dúvidas eternas?

a marca desses poderes é uma pedra verde. não somos mais que humanos. há kryptonitas em nossas algemas. apesar de tudo.

a reflexão é a empresa do mistério. a algaravia do silêncio. a esperança é o corte no primeiro umbigo. o modelo especular da divindade ante a descrença e a possibilidade do vôo diante do abismo. como corromper a ordem das divindades? a minha gana é de silêncio enfeitado como um duende nômade e perverso… a tua presença me desfaz de árvores. o que pode acontecer quando a mortalha do corpo se despede e acorda a imortalidade do espírito.

essa melodia do diabo amoroso… de eras o refúgio no torso do vácuo… o espelho de olhos obtusos: o amor selva dos galhos e mar onde se findam os afetos de fato…

na hora do eterno a confissão do réu por supor o abcesso ou decerto o segredo.

campos de carvalho: “quanto mais claro eu me torno por dentro, mais obscuro se torna o mundo e o dia dentro dele”                    

não existe conflito: o belo é um diamante perdido. se há ilusão de encontrá-lo, o desejo representa a verdade mais íntima. o que está inscrito na caverna mais abissal.

o amor é uma estrela de ficção, um lume emprestado. afinal, tudo não é ficção, até a nossa súbita morte? todas as visões atingem o improvável do belo e do amor.

conto isso, para desafiar o célebre e o obscuro. reconto o próprio conflito…

françois jacob: “o nosso cérebro não está habituado a aceitar o acaso como razão das coisas.”         

ainda relato: cansei das mortes premeditadas pelos deuses. o azedo ou o mel não são apenas obstáculos passageiros à viagem ao zinco final dos futuros.

como uma flor na pele, descobri a necessidade do breu na faísca dos seixos.

agora, só preciso escolher o elemento vital das vertigens para tornar-me abismo…

paul éluard: “não há modelo para quem procure o que jamais viu.”        

o invisível crepita. que outra afirmação permite-se diante de rumores? há um mercado de sombras em burburinho dentro de cada nós. e jamais poderemos expulsar essas sombras.

um dia, seremos parte dessa multidão. e a perda da inocência reviverá o prazer nessa cópula com o inusitado. qual desses dias, o justo?

derek walcott: “o silêncio é serrado ao meio por uma libélula”          

todo homem devia colecionar ninhos vazios. neles, sacrificados pelo abandono, revela-se o aprendizado do vôo. a primeira queda, a glória. assim como o silêncio interrompido pela visão, ninhos vazios recuperam a inocência dos segredos.

é quando se descobre que o destino é suave e voa, corpo seguro que inventa precipícios…

Jorge Pieiro

Autor de Neverness, Fragmentos de panaplo e Caos portátil, entre outros. Integra as antologias Geração 90 – manuscritos de computador e Geração 90 – os transgressores.

Rascunho