Ano de 1976, presidente Ernesto Geisel. Ditadura militar, plenitude dos Anos de Chumbo. Muitos professores cassados, muitas prisões nos porões do DOI, com os presos políticos torturados até a morte, o horror, o horror no auge do desrespeito aos direitos humanos na aspiração da verdade e da justiça.
Paulo Emilio e eu passávamos as férias numa tranqüila fazenda da família de Décio de Almeida Prado em Olympia, interior de São Paulo. Fim de tarde. Conversávamos na espaçosa sala do casarão quando tocou o telefone, o interurbano era para mim. Com dificuldade ouvi a voz de Rubem Fonseca falando do Rio. Fala mais alto, Rubem, mais alto!, eu pedia e ele repetiu, eu estava sendo chamada para fazer parte de uma pequena comissão de escritores que iria a Brasília entregar ao ministro da Justiça, Armando Falcão, um manifesto contra a censura.
Brasília? eu repeti. E a voz de Rubem Fonseca ficou mais nítida em meio da ligação trepidante, era um importante manifesto contra a censura aos livros, mais de quatrocentos títulos de autores brasileiros e estrangeiros já estavam proibidos, o romance Araceli, meu amor, do escritor José Louzeiro, foi arrancado das livrarias por ser considerado um livro imoral. E ainda o livro de contos de Rubem Fonseca, Feliz ano novo (1975), também proibido com o pretexto de incentivar a violência. Então foi providenciado esse manifesto e que já contava com mil assinaturas de intelectuais, primeiros nomes da lista? Antonio Candido de Melo e Souza e Sérgio Buarque de Hollanda, o Manifesto dos Mil e tinha que ser entregue ao ministro com a maior urgência por essa pequena comissão da qual eu faria parte.
Fiquei em silêncio. Sou lenta nas decisões e isso vem desde o tempo da minha juventude, quando participava das partidas de vôlei e tinha que me desenrolar rapidamente, ah! tão rapidamente! Era a cortadora e não podia hesitar, a cortada tinha que ser agora, já!… Seria bom levantar as mãos e formar com elas um T quando o time ficava tumultuado, um pedido de Tempo, Tempo! mas a bola já avançava e não restava nada mais a fazer senão cortá-la no ar, vupt!…
A minha presença era necessária, avisou Rubem Fonseca com voz de general em pleno comando. Podem contar comigo, eu disse e pedi detalhes. Pois teria que ir ao Rio e de lá, com Hélio Silva, Nélida Piñon e o jovem Jefferson Ribeiro de Andrade seguiríamos para Brasília, mas em silêncio, a imprensa não poderia saber da manobra, só depois, quando o manifesto já tivesse sido entregue. Haveria uma reunião à noite em casa de José Louzeiro, eu teria que partir no dia seguinte. Combinado, respondi e fui abraçada carinhosamente por Paulo Emilio e Décio que pediram, Leve nossas assinaturas!
Viagem de ônibus para São Paulo, rápida parada no apartamento para fazer a valise e em seguida partir para o aeroporto. Miau! disse o meu gato na despedida. Acariciei-lhe a cabeça, Eu voltarei!
José Louzeiro abriu a porta, era quase noite. E os amigos em torno da mesa, Rubem Fonseca, Nélida Piñon, Ary Quintella, Cícero Sandroni e Jefferson Ribeiro de Andrade. Muitas cópias do manifesto que continuava recebendo adesões de todas as cidades do Brasil. Fiquei então sabendo, o movimento não tinha nascido em São Paulo, conforme eu imaginara, mas em Belo Horizonte e mais precisamente num café chamado Lua Nova, ponto preferido dos intelectuais. Daí o pequeno grupo formado por Rubem Fonseca, pelo crítico e professor cassado Fábio Lucas e ainda por Jefferson Ribeiro de Andrade, do Sindicato dos Jornalistas, partiu para a casa do escritor Murilo Rubião, onde o manifesto foi redigido. Coube a Rubem Fonseca a tarefa de divulgar e colher as adesões, trabalho que desenvolveu com paixão.
Hospedei-me num hotel em Copacabana e no dia seguinte fui para o encontro marcado no aeroporto, o historiador Hélio Silva, a querida amiga Nélida Piñon e o jovem Jefferson Ribeiro de Andrade. Então, Brasília? Brasília. No avião, tentamos ficar em assentos próximos mas só Hélio Silva e eu ficamos vizinhos, Nélida e Jefferson foram para assentos atrás. Não sou ficcionista como vocês, disse Hélio Silva, Sou historiador, lido nessa zona árida das pesquisas, minha função é pesquisar. O avião já tinha decolado quando o enfezado passageiro da janela, aquele que não quis trocar de lugar, abriu o jornal. Li então em negrito, Manifesto dos Mil Contra a Censura. Toquei no braço de Hélio Silva e segredei, Meu Deus! a notícia está ali no jornal com nossos nomes, vazou! Ele arqueou as sobrancelhas grisalhas e lançou um vago olhar para o jornal, Nada mais a fazer, já é história, disse e fez um comentário ao ver as nuvens galopantes através do vidro da janela, Vem aí uma tempestade.
Olhei na mesma direção. E o que significava aquele repentino aglomerado de nuvens furiosas fechando o cerco em redor do avião? E por que o enfezado passageiro não baixava aquela cortina, era sadomasoquista? A voz serena do piloto pairou sobre todas as coisas, Teremos algumas turbulências, apertem os cintos. Apertei no fundo do bolso a pequena imagem de Nossa Senhora da Aparecida e me lembrei daquelas frases empoladas que a gente costuma dizer nas entrevistas, A coragem é a maior das virtudes! Toquei no braço de Hélio Silva, Mas é uma conspiração de nuvens, sussurrei e ele guardou os óculos no bolso, Elas também conspiram, disse e sorriu, Se não cairmos, seremos presos.
Voltei-me para trás e vi a Nélida com o seu sorriso luminoso. Fechei os olhos. Quando os abri novamente o avião seguia tranqüilo pelo céu limpo, preparando para o pouso. Hélio Silva apertou meu ombro e me ajudou a apanhar a maleta. O nosso vizinho enfezado guardou o jornal no bolso e fez a pergunta em voz baixa, Vocês são comunistas? Respondi no mesmo tom, Sou do São Paulo Futebol Clube que vai bater o Corinthians no próximo sábado. Quantos aos outros, isso eu não sei.
Calados mas felizes, tomamos o nosso café no aeroporto. Então aconteceu o que já prevíamos, o ministro da Justiça não nos recebeu mas toda a imprensa já estava a nossa espera. Subimos (ou descemos?) a pequena escada do Palácio e entramos com as cópias do manifesto na sala repleta de jornalistas. Primeiramente, Nélida Piñon nos apresentou fazendo um breve relato da nossa missão. Em seguida nos espalhamos para as entrevistas.
Um jornalista pediu-me detalhes, E então? Tinha algum livro ameaçado de proibição? Contei-lhe que em 1973 publiquei um romance, As meninas, e no qual uma das personagens, exatamente uma jovem subversiva, lê um panfleto que Paulo Emilio e eu recebemos pelo correio. Era o relato desesperado de um preso político torturado provavelmente até a morte. A solução que encontrei foi reproduzir o panfleto que essa menina subversiva vai lendo para uma freira: “Primeiro me perguntaram se eu pertencia a algum grupo político. Neguei. Enrolaram então alguns fios em redor dos meus dedos, iniciando-se a tortura elétrica: deram-me choques inicialmente fracos que foram se tornando cada vez mais fortes. Depois, obrigaram-me a tirar a roupa, fiquei nu e desprotegido. Primeiro me bateram com as mãos e em seguida com cassetetes, principalmente nas mãos. Molharam-me todo, para que os choques elétricos tivessem mais efeito. Pensei que fosse então morrer. Mas resisti e resisti também às surras que me abriram um talho fundo no meu cotovelo. Na ferida o sargento Simões e o cabo Passos enfiaram um fio. Obrigaram-me então a aplicar choques em mim mesmo e nos meus amigos. Para que eu não gritasse enfiaram-me um sapato dentro da minha boca. Outras vezes, panos fétidos. Após algumas horas a cerimônia atingiu seu ápice quando me penduraram no pau-de-arara: amarraram minhas mãos diante dos joelhos, atrás dos quais enfiaram uma vara, cujas pontas eram colocadas em mesas. Fiquei pairando no ar. Enfiaram então um fio no reto e fixaram outros fios na boca, nas orelhas e mãos. Nos dias seguintes o processo se repetiu com maior duração e violência…”.
O jornalista me ouviu em silêncio. Dobrei a cópia da página 146 e 147 do livro e guardei-o na bolsa. E etcetera, etcetera, murmurei. Então esse meu romance saiu em 1973. Ele ficou me olhando meio perplexo. E ainda não foi censurado?, perguntou e contei-lhe então o que Paulo Emilio tinha ouvido, o censor chegou até a página 72 ou 73 e não foi adiante porque achou o livro muito chato.
Rimos juntos enquanto Hélio Silva já nos chamava, missão cumprida! Tínhamos que ir para o aeroporto. Na saída despedi-me da bela estátua da Justiça e olhei para o céu azul.
Conspiração de nuvens integra o próximo livro de Lygia Fagundes Telles, organizado pelo jornalista e escritor Suênio Campos de Lucena, previsto para sair em abril de 2007 pela Editora Rocco.