Como uma partida de futebol

Não sei de quem foi a idéia, mas no último domingo nos reunimos num campo neutro, o do Combate Barreirinha, para um amistoso entre o selecionado do interior e o da capital
Ilustração: Benett
01/07/2001

Não sei de quem foi a idéia, mas no último domingo nos reunimos num campo neutro, o do Combate Barreirinha, para um amistoso entre o selecionado do interior e o da capital. Pena que os jornais não noticiaram o acontecimento e não houve transmissão televisiva. Apenas o locutor Wilson Martins, revivendo seus tempos de PRB2, narrou a partida para uma rádio pirata.

O nosso time era capitaneado por Eloi Zanetti, que também fazia as vezes de treinador, obrigando-nos a decorar todos os lances de seu livro Administração, futebol e cia. (Negócio Editora). Tinham sido escalados para o time alguns representantes do interior: o ficcionista Domingos Pellegrini, o escritor e editor Roberto Gomes, o ex-atacante do Esporte Clube Comercial, hoje jogando no time literário do Rio de Janeiro, Jair Ferreira dos Santos, o poeta Foed Castro Chama, glória do Irati Futebol Clube, o escritor roseano Wilson Bueno e, na falta de gente melhor, este escriba perna de pau.

No time adversário, uma seleção de craques: Nego Pessoa, que já entrou driblando a própria sombra, Dalton Trevisan, estampando orgulhosa e merecidamente a camisa 10, Valêncio Xavier tagarelando como sempre, Cristóvão Tezza preparado para todos os gols que ele sempre faz, Jamil Snege com seu jeito (falso, descaradamente falso) de quem não quer nada e o capitão Ernani Buchmam, que repassou longamente uma tática de ação, para depois ver que o time ia ficar no velho esquema de sempre.

Como árbitro, tivemos a sorte de contar com um elemento alienígena, que não tinha motivos para torcer para nenhum dos lados, embora sempre seja visto nos textos de Valêncio Xavier: o poeta concretista Décio Pignatari, que trouxe vários cartões semióticos, para desespero do próprio Valêncio, que não conseguiu entender o que eles significavam.

A partida começou tumultuada.

Assim que Dalton Trevisan pegou a bola, fugiu com ela e não voltou mais para o campo. Para maior atraso, não tínhamos outra e foi preciso que o Jamil saísse pela vizinhança para adquirir, no câmbio negro, uma bola substituta. Conseguiu uma seminova, mas não era tão boa como a que desaparecera nos pés do grande craque que, tudo bem analisado, era o único com direito a bola oficial. Nós, uns mais outros menos, merecíamos mesmo era bola estropiada, dessas meio ovais, que vão aonde querem e não para o rumo que damos a ela.

Prudente, fiquei na defesa e, assim que sobrava alguma jogada, mandava a bola pra frente. Meu alvo preferido, seguindo minha perversa natureza de crítico, eram as canelas adversárias — e em mais de uma deixei hematomas leves, mas nem por isso menos dolorosos. Enquanto a gente se digladiava no campo, Wilson Martins irradiava com todo o entusiasmo os erros dos dois times, vibrando ainda mais quando alguém conseguia fazer alguma coisa certa.

Do nosso lado, quem liderava o placar era o italianão Pellegrini, que conseguiu furar mais vezes a barreira inimiga, emplacando dois belos gols. Roberto Gomes não deixou por menos e, fora as bolas na trave, fez um gol de bicicleta e passou o resto da partida sorrindo para si mesmo. Eloi Zanetti tentava organizar a equipe, mas assim que algum de nós pegava a bola saía em egoísta disparada, só voltando depois de perder o lance ou de errar o alvo. A salvação foi que o pessoal da capital também tinha o mesmo defeito e, com isso, a partida ficou mais ou menos equilibrada.

Cristóvão Tezza jogou com discrição e nos enfiou, com muita técnica, três golaços, sendo o artilheiro do amistoso. Jamil jogava bem até o meio do campo, mas se recusava a invadir nosso território. Valêncio, fincado sempre na banheira, em posições de impedimento que o árbitro não chegava a ver, conseguiu o seu gol quando uma bomba desferida por Nego Pessoa resvalou na cabeça dele e surpreendeu nosso goleiro, Wilson Bueno, que a esperava no outro canto da trave. Valêncio caiu atordoado e não chegou a entender bem a razão da pequena torcida gritar entusiasticamente o nome dele.

Eu e o Foed ficamos mais na retaguarda, prontos para todos os heroísmos, mas não tivemos oportunidade de mostrar nosso futebol. Quase no fim da partida, o Jamil segurou a bola com a mão, interrompendo uma jogada do Jair que seria gol na certa. No meio da área adversária, começou um tumulto que logo era pancadaria.

Cheguei acertando o inimigo, mas em poucos segundos os murros e chutes não tinham mais um alvo específico, era cada um por si — até Deus aproveitou para dar umas bordoadas e descontar as sacanagens que escrevemos contra ele. Levei uma joelhada anônima que me pôs no chão e logo choveram punhos ininterruptos sobre minha cabeça que, para azar de todos, é dura, muito dura.

A torcida invadiu o campo aumentando a confusão, que só acabou quando a polícia veio com cacetetes em riste e palavrões ríspidos. Décio Pignatari ainda brandia seus cartões semióticos, assustado com o futebol de várzea. Olhinhos apertados de prazer, Trevisan nos espiava por uma fresta do vestiário. Então, Wilson Martins, sem perder a classe, pôs fim ao jogo:

– O árbitro declara susssspeeeeeeenso mais um amistoso paranaense.

Fim da festa; animais novamente dóceis, ganhamos o caminho de casa, onde durante todo o inverno lamberemos em silêncio nossas feridas.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho