Como se estivéssemos em palimpsesto de putas

Trecho do novo romance de Elvira Vigna
Ilustração: Elvira Vigna
02/04/2016

O que fica na minha cabeça não é João nem Lola.

É a garota do Fredimio.

Acho que a garota continua a fazer o que faz com João (levar o cara para um apartamento vazio onde trepa porque trepa, sem cobrar) ainda por muitos anos. Não sempre. Não com todos. Mas de vez em quando.

Volta de um trabalho mal pago, toma um banho demorado, põe uma roupinha que ela acha legal e vai, os saltos altos mal equilibrados nos buracos do calçamento da Prado Júnior. Pega um cara. Vai para o hotel puteiro que tem ao lado, na Princesa Isabel. Recebe o dinheiro.

E, de vez em quando, leva o cara para o apartamento dela no Fredimio. Faz isso sempre que o cara parece ser daqueles que ficam embaixo de orelhões, encostados em muros, sentados em cantos de sarjeta, esperando raios luminosos que passam em direção a um mundo melhor. Faz isso por vários anos.

Às vezes treina sozinha, no espelho.

“Tou com um amigo aqui.”

Fala alto, o que ela mesma acha estranho, a voz dela, ali, no apartamento em que não se escuta a voz de ninguém ao vivo. Ninguém que não esteja na TV.

Repete, dessa vez em tom menor:

“Tou com um amigo aqui.”

Tem medo de que, com a repetição a cada cara que entra, a frase saia com a entonação errada e o cara perceba que é mentira. Que ela é só uma boba que diz isso assim, para o ar, quando entra no apartamento, porque tem um pouco de medo, tantas histórias. Que a frase é só para que ele, o cara, não faça nada de muito estúpido porque tem gente logo ali depois do armário, gente para protegê-la.

Um tio. Uma amiga. Um dobermann muito feroz viciado em televisão.

“Isca!”

E ele mata qualquer um.

Nunca acontece nada de muito ruim com a garota.

Com o tempo, traz cada vez menos caras para o apartamento. Encontra cada vez menos caras parecendo ser do jeito certo, com o olhar perdido que é o certo. Às vezes fica na dúvida, ainda sentada na mesa da boate, hesitando, e resolve que não.

Aí, quando volta já de madrugada para o apartamento vazio, a TV inútil ligada com o mesmo som igual, sempre igual, sempre, ela toma outro banho, come uma coisa, escova os dentes e vai deitar. E fica olhando a luz preto e branco se mexendo, presa na tela, e que é a única luz. Aí, aos poucos, o mundo surge. Esse mundo, esse daqui, o que não é bom. O colorido. O da janela.

E ela se levanta.

Nota
O romance Como se estivéssemos em palimpsesto de putas será publicado em julho pela Companhia das Letras.

Elvira Vigna

É escritora e jornalista. É autora, entre outros, de Deixei ele lá e vim (2006), A um passo (2004), Coisas que os homens não entendemÀs seis em ponto (1998).

Rascunho